O que teria levado
Santa Joana de Chantal a abandonar seus parentes, rompendo vínculos afetivos,
para fundar uma Congregação religiosa de contemplativas? Dir-se-ia que da
formação recebida do suave São Francisco de Sales resultariam atitudes bem
diversas.
A consideração de algumas
características do espírito desta grande Santa e de seu formador projeta luz
sobre o problema e nos ajuda a compreender os desígnios de Deus.
Santa Joana Francisca
Frémiot de Chantal, que viveu de 1572 a 1641, fundou, com São Francisco de Sales,
a Ordem da Visitação. Era viúva do Barão de Chantal, com quem tivera seis
filhos. Depois do falecimento de seu marido, ela começou a sentir um atrativo para
percorrer as vias mais altas da vida espiritual e passou, então, a ser
influenciada por São Francisco de Sales.
Objeto de uma ”suave”
formação
Este Santo, como sabemos,
era famoso pela suavidade. Ele escreveu livros de vida espiritual que jamais
seria suficiente elogiar, por exemplo, a “Filoteia” e o “Tratado do Amor de
Deus”. Entretanto, sobre a suavidade dele muita coisa de errado se diz. Temos
em Santa Joana de Chantal um exemplo a respeito do modo pelo qual ele tratava
as senhoras a quem queria influenciar.
Certa ocasião, São
Francisco de Sales encontrava-se com Madame de Chantal — a futura Santa Joana
de Chantal — em um jantar, e ela estava muito bem vestida. Então ele
perguntou-lhe: “Madame, a senhora pensaria de novo em casar-se?” E ela, um
pouco assustada com a pergunta, respondeu: “Mas, Monsenhor, não!” Disse ele:
“Numa casa onde não há artigo para vender, não se põe tabuleta...” Quer dizer,
por que a senhora está tão enfeitada, se não quer se casar? Aí percebemos qual
era a qualidade dessa doçura. O dito não deixava até de ter uma ironia bem
mordiscante e beliscante!
Passou sobre o corpo de
seu próprio filho
Sob o bafejo da orientação
dele, Joana de Chantal foi se transformando numa grande santa. Em certo
momento, ela quis adotar o estado religioso. Deu-se, então, este episódio
clássico de sua vida, fruto da direção de São Francisco de Sales:
Chegado o dia de sua
partida, Santa Joana, que era viúva, devia deixar os seus familiares para ir
para o convento que ela ia fundar. A santa viúva, que morava com seu sogro,
ajoelhou-se pedindo-lhe a bênção e que lhe perdoasse se lhe desgostara em
alguma coisa, e recomendou-lhe seu filho. O ancião de 86 anos estava
inconsolável, abraçou sua nora e desejou-lhe completa felicidade. Os habitantes
da região de Monteron, sobretudo os pobres, acreditando que com essa partida
tudo perdiam, testemunhavam publicamente a sua dor. Em Dijon, ela fortificou-se
com a Santa Comunhão contra a fraqueza que ela previa aproximar-se quando da
separação de seu filho.
Enfim, chegando a hora,
disse adeus a todos os seus parentes. Depois, ajoelhando-se aos pés de seu pai,
pediu-lhe a bênção e que cuidasse do filho que ela deixava. Monsieur Frémiot, o
velho presidente do Parlamento de Bourgoin, sentia-se desfalecer. Abraçou
chorando a sua filha e disse: “Meu Deus, não me compete mudar os vossos
desígnios. Eu vos ofereço esta filha querida, recebei-a e consolai-me.” Depois,
deu-lhe a bênção e ajudou-a a se erguer.
Vemos o trágico da
cena! Santa Joana de Chantal era viúva, uma pessoa boníssima, cumpridora dos
seus deveres de família e capaz de atrair toda a amizade, todo o afeto de uma
família boa. Portanto, era muitíssimo estimada por todos os seus. Quando ela
era o arrimo — do ponto de vista afetivo e não financeiro — de seu velho sogro,
de seu pai, de seu filho, Deus a tocou com a graça da vocação e pediu-lhe que
estraçalhasse aqueles vínculos de afeto constituídos em torno dela, para ser
fundadora de uma nova família religiosa. E fundadora contemplativa, de maneira
tal que não mais a poderiam ver. E ela, cuja bondade tinha criado aqueles vínculos,
era chamada a renunciar a eles e, por assim dizer, destruí-los. Era uma superação
de toda a vida anterior dela. Santa Joana até então tinha sido ótima, como membro
de família. Deus pedia-lhe que oferecesse algo a mais do que a bondade que se
tem na família, e era a bondade que se adquire adotando o estado religioso e rompendo
com os laços de família, entretanto, tão santos. E então, se determina aqui uma
situação trágica: ela vai abandonar seu sogro, seu pai e seu filho.
Uma cena que não se passaria hoje
Atualmente se perdeu o
senso de gravidade das coisas. Se imaginássemos a mesma situação realizada
hoje, teríamos uma diferença muito grande de ambientes que constituiria no
seguinte: tudo se passaria com muito menos solenidade e gravidade. Não podemos
supor hoje uma senhora viúva, moça, que deixe a casa paterna para entrar em um
convento e que faz todo esse cerimonial antes de ir embora: ajoelha-se diante
do ancião de 86 anos, pede-lhe perdão por tudo quanto lhe fez, e lhe roga a bênção;
e o ancião, quase como uma figura de tragédia grega, se despede dela com
lágrimas e a entrega a Deus. Depois, a despedida de seu velho pai: nova genuflexão,
novas lágrimas. E por fim o lance dramático do filho, que se pendurou ao
pescoço da mãe, pedindo-lhe para não entrar no convento. Ela recusou-se. Ele,
então, deitou-se na soleira da porta e disse: “Já que eu não tive força para
vos reter, ao menos se dirá que a senhora passou sobre o corpo de seu filho
para ir para o convento.” Quer dizer, “a senhora está me abandonando!”
Percebemos o trágico de todos esses lances.
Por que em nossos dias
esta cena não se passaria com tanto cerimonial? Porque fomos habituados a não
entrar no fundo do significado das coisas, e a nos incomodarmos somente conosco.
Resultado, para o velho sogro o problema importante é o jornal que chega de
manhã, o leitezinho que ele toma, a televisão, o chinelo, a saúde, os cuidados pessoais
de toda ordem. Lê uma notícia sobre transplante de coração para ver se seria
possível transplantar um nele, prolongando sua vida por mais 30 anos. Isso é o
importante! A nora, que vai ou não para o convento, é uma coisa acessória, porque,
se ela faltar, ele contrata uma enfermeira, e a vida continua do mesmo jeito.
Ademais, a ideia de ir
para o convento não se reveste daquele aspecto semitrágico de antigamente. O
senso da Cruz, da gravidade das coisas, o senso de toda a renúncia que
significa alguém tornar-se religioso, o senso de toda a dignidade que a pessoa
assume ao abraçar esse estado, daquele conúbio com Nosso Senhor Jesus Cristo com
toda a serenidade que traz, os espíritos perderam a noção disto. O resultado é
que os grandes lances não têm mais essa acuidade, esse caráter dramático; são
episódios banais.
As pessoas assistem, na
televisão ou no cinema, a tantos dramas, romances, tantas despedidas, tantos
reencontros, que todo mundo está saturado. Assim, os atos da vida cotidiana que
teriam grandeza se esvaziam completamente.
Profundidade de espírito e amor a Deus
Então, qual é a grande
lição que devemos tirar daí? Antes de tudo, considerar o espírito profundo de
Santa Joana de Chantal que correspondeu à vocação, compreendeu que a família é uma
instituição tal que, quando Deus lhe dá tudo, ela se supera e tende a produzir
religiosos, missionários, guerreiros, apóstolos que são obrigados a se separar
dela. E esta espécie de superação, por onde ela se entrega completamente, é a
glória da família.
Também a profundidade
de espírito desta Santa — renunciando a tudo para ser religiosa — e do ambiente
de Civilização Cristã em que ela vivia, onde tudo se media, se pesava, e que,
por causa disso, se revestiam de solenidade e de características próprias todos
os atos da vida.
Essa profundidade de
espírito prepara a alma para amar a Deus. O Reino dos Céus é dos violentos, está
escrito no Evangelho. O Reino dos Céus é dos profundos, pois é a violência dos
profundos — tantas vezes chamados de fanáticos pela linguagem da impiedade — que
agrada a Deus.
Peçamos a Nossa Senhora
que nos obtenha essa profundidade de espírito, e que nosso Movimento procure
incutir em seus membros, de todos os modos, essa profundidade, que é a
seriedade, a abnegação, e o contrário do egoísmo, de modo a termos almas
capazes de encher-se da graça de Deus, nosso Senhor, concedida pelas mãos de
Maria.
Suavidade e exigência
Santa Joana de Chantal
fundou a Ordem da Visitação cujas freiras são estritamente contemplativas.
Encontramos nessa Ordem outro traço do espírito dela e de São Francisco de
Sales: o sentido de não ter propriedade particular é levado tão longe nessa
Ordem, que as religiosas se consagram a serviços comuns, por exemplo, bordados,
vendidos para a manutenção delas. São Francisco de Sales, que fez essa regra
com Santa Joana de Chantal, determinou o seguinte: nunca uma freira faça um
bordado inteiro; os bordados são rotativos dentro da casa, para ninguém ter
apego ao trabalho que fez.
Vemos como, nos últimos
pormenores, foi levada longe a noção de propriedade comum para produzir o
desapego completo. De tal maneira o direito de propriedade é de acordo com a
natureza humana, que quando um indivíduo é chamado a um estado de vida no qual
não deve possuir, é necessário um grande zelo para não se apegar à propriedade.
Por isso os grandes fundadores de Ordens tomam muito cuidado para evitar
qualquer forma de apego, de apropriação.
Dois aspectos dignos de
nota são, em primeiro lugar, a importância das Ordens contemplativas. Numa
época cheia dessas Ordens e em que havia muitas vocações para elas, São
Francisco de Sales funda, com Santa Joana, mais uma Ordem contemplativa. Vemos,
assim, o quanto isso é um tesouro que nunca haverá na Igreja em quantidade suficiente.
Não há o que baste, desde que a Ordem seja realmente fervorosa.
Outra consideração interessante
é a necessidade dessas Ordens contemplativas constituírem famílias de almas na
Igreja, cada uma com seu espírito próprio, formando uma espécie de mosaico onde
se vê um tom diverso em cada Ordem. Na Visitação, a suavidade, mas, de outro
lado, a extrema exigência em tudo aquilo que se refere à verdadeira virtude.
Temos, assim, alguns dados
que podem servir para uma meditação sobre a vida de Santa Joana de Chantal.
Plinio Correa de
Oliveira -Extraído de conferências de 21/8/1965 e 20/8/1968
1) Não possuímos os
dados bibliográficos da ficha lida por Dr. Plinio nesta conferência.
2) Cf. Mt 11, 12.
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