Corria o ano de 1791.
Num frio domingo de janeiro, os habitantes de Le Louroux-Béconnais, localidade
próxima de Angers, comprimiam-se na igreja. Um sentimento de ansiedade os
dominava, pois o prefeito Jean Boré os convocara para assistir, terminada a
Missa, ao juramento que o pároco Noël Pinot estava intimado a prestar ante a
junta municipal ali reunida.
No dia 12 de julho do
ano anterior, a Assembleia Constituinte aprovara a Constituição Civil do Clero,
com a qual visava reestruturar as circunscrições eclesiásticas da França e
converter os Bispos e sacerdotes em cidadãos-funcionários. Para garantir sua
aplicação, todos os clérigos deviam jurar fidelidade a ela, sob risco de sofrer
uma severa repressão da parte das autoridades revolucionárias.
Entre a população do
Anjou,1 marcadamente religiosa e muito influenciada pelo recente apostolado de
São Luís de Montfort, o descontentamento e a inconformidade com tão injusta
imposição eram patentes. “Cada um, padres e fiéis, tinha os olhos fixos no
padre Pinot, para saber como e em que medida ele resistiria às ordens do
governo. Tal era seu renome de virtude e santidade que seu exemplo, em qualquer
sentido, teria grande repercussão e arrastaria numerosos imitadores”.2
Mas naquela manhã de
inverno, o pároco de Louroux não parecia ter pressa em pronunciar seu
juramento. Demorou-se tanto na sacristia, retirando os paramentos e rezando
suas orações após a Comunhão, que o prefeito foi buscá-lo, exigindo-lhe
imediata submissão às suas ordens, sob pena de ser demitido de suas funções.
Por única resposta, obteve uma recusa tão firme quanto calma, baseada num
irretorquível argumento: nem a lei nem o prefeito poderiam retirar-lhe os
poderes que de Deus recebera.
Pároco entregue à sua
missão
Grande foi a alegria
do povo perante essa atitude. Na verdade, ninguém duvidara da integridade do padre
Pinot, a quem todos conheciam de sobra e ao qual devotavam profunda afeição.
Desde sua chegada àquela paróquia, a maior de toda a diocese, ele se entregara
à sua missão com o mesmo ardor com o qual cuidara, durante sete anos, da
capelania do Hospital dos Incuráveis, em Angers.
Infatigável,
percorria as distâncias que o separavam das aldeias mais afastadas
desdobrando-se em atenções e não poupando esforços. Segundo o testemunho de
seus contemporâneos, a virtude na qual mais se distinguia era, sem dúvida, a
caridade. “Ele se dava todo a todos, e oferecia aos fiéis e ao clero dos
arredores o modelo acabado da perfeição sacerdotal”.3
Como pároco exemplar,
preocupava-se sobremaneira em distribuir os Sacramentos, converter os
pecadores, resgatar os extraviados e dar a todos uma sólida formação cristã. No
púlpito revelava-se um teólogo seguro; no confessionário, um inigualável
diretor de consciências; na catequese, um mestre ameno e atraente.
Virtudes aparentemente opostas
Após o tormentoso
episódio ocorrido com o prefeito, o padre Pinot decidiu quebrar o silêncio e
afirmar de público sua posição. Alguns domingos depois, ante os oficiais
municipais e o próprio prefeito, acompanhados por numerosa assembleia, pronun
pronunciou
um longo discurso, expondo as razões pelas quais rejeitava aquele decreto.
Sua voz clara,
resoluta e eloquente ressoou no recinto sagrado, afirmando ser seu dever
rejeitar a Constituição Civil do Clero, contrária aos princípios da Igreja e
cujo juramento o tornaria indigno de seu ministério. Bem conhecia ele as
tribulações que o aguardavam, mas o receio de perder o cargo, a liberdade ou
mesmo a própria vida, jamais o faria capitular.
Todos os presentes,
acostumados à habitual bondade e doçura de seu pároco, viam agora reluzir nele grande
firmeza e intransigência. Maravilhoso equilíbrio, do qual só as almas santas
são capazes, sabendo harmonizar virtudes aparentemente opostas, que, no
entanto, se complementam de modo admirável.
De mãos amarradas, como um malfeitor
Poucos dias depois,
cem homens da Guarda Nacional atravessaram durante a noite e em silêncio a
pequena cidade, e cercaram a casa paroquial, trazendo um mandato de arresto
para o cidadão Pinot. Ele mesmo, interrompendo as preces que costumava prolongar
madrugada adentro, veio abrir a porta. Recebeu-os com cortesia, deixou-se
algemar sem resistência e foi conduzido a Angers.
Impossível não
estabelecer um paralelo entre esse incidente e o sucedido no Horto das Oliveiras,
quando o Redentor do mundo entregou-Se livremente nas mãos dos ímpios. O tardio
da hora, o número exorbitante de soldados — explicável apenas pelo medo de uma reação
popular — e sua insolência recordam as narrativas evangélicas (cf. Lc 22, 47-54).
Mais ainda, a determinação nobre e serena da vítima diante dos perseguidores é
imitação fiel da sublime atitude do Prisioneiro do Getsêmani.
Obrigado a desfilar
pelas ruas de Angers de mãos amarradas como um malfeitor, o padre Pinot foi
encarcerado na prisão. Poucos dias depois, recebeu a sentença pelos seus
“crimes”: deveria permanecer por dois anos a oito léguas de distância de sua
paróquia.
"Convertedor irresistível e incorrigível”
Decidiu, então,
exercer o ministério em outras cidades do Anjou. Angers, Corzé, Beaupréau e
toda a região de Mauges se beneficiaram durante longos meses de seu apostolado,
cujos frutos não demoraram a exasperar seus adversários. À sua passagem, a vida
cristã se incrementava, o fervor crescia e — o que lhes parecia pior — muitos
sacerdotes juramentados retratavam-se e voltavam à comunhão com a Igreja.
Como crescia cada vez
mais a fama desse “convertedor irresistível e incorrigível, que por toda parte
ressuscitava Jesus Cristo nas almas”,4 as autoridades resolveram dar-lhe caça e
lançá-lo num calabouço, na esperança de fazê-lo calar-se definitivamente. Mas, por
especial proteção de Deus, ele sempre conseguia escapar, viajando de aldeia em
aldeia e passando de casa em casa sem cessar sua atividade missionária.
Uma preocupação,
porém, ensombrecia-lhe o espírito: os habitantes de Louroux estavam privados da
assistência sacramental havia mais de dois anos...
Ainda não havia chegado sua hora
Angers |
Em meados de 1793, um
acontecimento inesperado veio facilitar a atuação do padre Pinot. As vitórias
do exército da Vendeia em Thouars, Saumur e Angers deixaram desimpedido o
caminho de Louroux para o nosso fiel sacerdote. Sua chegada à antiga paróquia
foi um autêntico triunfo: aquela gente simples, mas de fé robusta, recebeu-o
ávida de seus ensinamentos, saudosa de suas cerimônias religiosas.
Não obstante, pouco
durou aquela paz: a derrota do exército vandeano diante de Nantes, em 29 de
junho, redundou num recrudescimento do Terror. O virtuoso sacerdote via-se
novamente em perigo de vida; todavia, decidido a não deixar seu rebanho, optou
por permanecer clandestinamente no território paroquial.
Durante o dia
ocultava-se em granjas e moinhos isolados, dividindo as horas entre a oração, a
leitura e o sono. E quando as primeiras sombras da noite envolviam os bosques e
os campos, saía da reclusão e exercia seu ministério: ouvia Confissões,
assistia doentes, batizava crianças, realizava casamentos. À meia-noite
celebrava a Eucaristia num estábulo, num celeiro ou mesmo ao relento, para uma
assistência sempre numerosa.
Suas movimentações
noturnas, embora discretas, despertaram a suspeita dos esbirros da
municipalidade. Muitas vezes esteve na iminência de ser apanhado, e em certa
ocasião, precisou esconder-se num amontoado de roupas; em outra, deitou-se sob
o feno de uma manjedoura; pouco depois, escapou do refúgio no qual se
encontrava minutos antes da irrupção de um contingente da Guarda Nacional...
A Divina Providência
velava sobre aquele filho dileto, pois ainda não era chegada sua hora; mas ele,
convicto de que cedo ou tarde acabaria por cair nas mãos dos perseguidores,
alegrava-se na expectativa do martírio.
Traído e humilhado como Cristo
Na noite de 9 de
fevereiro de 1794, quando se preparava para celebrar a Missa numa casa da
aldeia de La Milanderie, ouviram-se fortes golpes na porta. Escondeu-se numa
arca de madeira, com todos os ornamentos litúrgicos e o próprio cálice,
enquanto a dona da casa foi abrir. Cinquenta homens invadiram a humilde
moradia, proferindo ameaças e revistando tudo minuciosamente. Encontraram-no,
afinal, e fizeram-no sair, em meio a insultos e zombarias.
O Divino Mestre — a
quem o padre Pinot tanto procurara imitar — reservava para seu fiel ministro
atrozes sofrimentos, desejando configurá-lo mais a Si. Com efeito, na origem
desta detenção estava um delator outrora socorrido pelas esmolas do bom pároco:
tendo divisado seu benfeitor no quintal da casa, apressara-se em denunciá-lo às
autoridades, atraído, como Judas, pela remuneração prometida.
O padre Pinot foi
conduzido de imediato a Louroux, onde teve lugar uma ignominiosa cena, reflexo
da Paixão de Cristo: juízes e guardas cuspiram-lhe no rosto, esbofetearam-no e
feriram-no a pauladas. Um deles, que também havia sido objeto dos favores do
caridoso pároco, ouviu da inocente vítima estas palavras, qual paternal convite
e terrível censura: “Infeliz; entretanto, não te fiz senão o bem!”.5
Após breve
interrogatório, o prisioneiro foi transferido para Angers, onde, à espera do
julgamento, permaneceu dez dias num escuro e inóspito cárcere, alimentado
apenas a pão e água.
Perante o tribunal,
respondeu às perguntas com segurança e serenidade. Afirmou não ter jurado a
Constituição porque sua consciência o impedia, e não se haver exilado, segundo
a exigência das leis, porque devia cuidar da paróquia a ele confiada por Jesus
Cristo, por meio de sua Igreja.
Em sua fronte resplandecia a alegria dos eleitos
Em consequência, o
cidadão Noël Pinot foi condenado à guilhotina. Ouviu a sentença com paz, e acolheu
com alegria a decisão dos carrascos de ser executado com seus paramentos
sacerdotais. Revestido, pois, de amicto, alva, estola e casula, atravessou a
cidade até o local onde se erguia o sinistro cadafalso, que logo se tornaria
para ele o pórtico da eterna bem-aventurança.
Narra o padre Gruget,
testemunha ocular do fato: “O mártir rezava em profundo recolhimento. Sua fisionomia
estava calma e em sua fronte serena resplandecia a alegria dos eleitos.
Podia-se, por assim dizer, acompanhar os cânticos de ação de graças que
brotavam de seu coração”. 6
Junto à guilhotina,
antes de pisar no primeiro degrau da escada, elevou os olhos e, tomado de sobrenatural
entusiasmo, exclamou: “Introibo ad altare Dei! — E me aproximarei do altar de
Deus” (Sl 42, 4).
Com estas palavras
iniciava-se a Missa na antiga Liturgia, e o padre Pinot as pronunciara
incontáveis vezes antes de subir os degraus do altar. Mas agora galgava o patíbulo
para fazer a imolação de si mesmo, o holocausto
derradeiro de sua vida! O sangue do servo misturar-se-ia ao do Senhor, como as gotas
de água que, no Ofertório, o celebrante mescla ao vinho para se tornarem, com este,
uma única bebida de salvação.
Subiu com passo
firme, pressuroso de encontrar-se com Deus. Num instante a lâmina da guilhotina
executou sua tarefa, interrompendo sua vida terrena e fazendo-o nascer para o
Céu. Era o dia 21 de fevereiro de 1794.
Noël Pinot acabava de
render o espírito ao Criador. Alma sacerdotal, compenetrada da dignidade de sua
missão; alma inteiramente cônscia de ser mero instrumento nas mãos de Deus,
desempenhando com humildade seu ministério; alma esquecida de si mesma para só
fazer brilhar seu caráter sagrado; alma de fogo, sempre arrastando os outros
para o bem; alma que soube antepor os direitos da Igreja a seus interesses
pessoais ainda que isso lhe custasse à própria vida!
Com sua morte, legou
à posteridade um insigne memorial de heroísmo e santidade, “um nobre exemplo de
zelo generoso, segundo o qual é preciso dar a vida pelas santas e veneráveis
Leis” (II Mac 6, 27).
1 Histórica região da
França que corresponde, em termos gerais, ao atual departamento de Maine et
Loire. Sua capital era Angers.
2 SÉGUR, Anatole de. Un admirable martyre sous la Terreur. Paris:
Charles Amat, 1904,
p.36.
3 Idem, p.26.
4 Idem, p.70.
5 Idem, p.124.
6 GRUGET, apud SÉGUR, op. cit., p.155.
Irmã Clara Isabel
Morazzani Arráiz, EP – Revista Arautos do Evangelho fev 2014
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