Paris viveu
dias de apogeu durante o reinado de Luís XIV. Convergia naquele então para a
França, num ininterrupto desfile cujo palco principal era o Palácio de
Versailles, toda espécie de manifestações do poderio francês no campo das
artes, das ciências, das letras e das conquistas militares, compondo uma página
notável nos anais desta nação.
Entretanto, ao
lado de tantos triunfos avançava silenciosamente uma grave crise religiosa,
própria a desviar os espíritos do cumprimento dos preceitos cristãos e
atraí-los para ideais cada vez mais distantes dos pregados pelo Divino
Redentor. Era a diminuição de fervor que, no século seguinte, acabaria
determinando os trágicos episódios da Revolução Francesa.
No seio da
deslumbrante Cidade Luz, onde tudo era charme, brilho e requinte, nem todos se
mostravam indiferentes a esta realidade mais profunda. Movidos pela graça,
muitos homens de valor e influência, aos quais coube um papel decisivo no
desenrolar dos fatos da época, aperceberam-se da gravidade do momento e se
dedicaram com ardor à luta por um elevado objetivo: colocar Deus no centro
daquela sociedade, como o verdadeiro Senhor das almas.
Irmanados por
estes anseios eles formaram, sob o impulso de certo sacerdote chamado Pedro de
Bérulle, um numeroso grupo de eclesiásticos provenientes de várias regiões do
país, empenhados todos em progredir nas vias da santidade. A lista dos
integrantes deste círculo é extensa, mas podemos enumerar aqui alguns de seus
expoentes: São Francisco de Sales, São Vicente de Paulo, Carlos de Condren,
João Tiago Olier e aquele que é celebrado pela Igreja a 19 de agosto: São João
Eudes.
Membro eminente da escola francesa de espiritualidade
Era na
residência de madame Bárbara Acarie que se realizavam os encontros do grupo.
Digna representante das melhores tradições e qualidades da nobreza parisiense,
ela abria as portas de sua mansão a cada semana para receber os clérigos,
vários membros da aristocracia e leigos desejosos de um maior aprofundamento em
temas católicos, sobretudo teológicos, bem como de uma entrega mais profunda à
oração e à meditação.
Neste ambiente
marcado pelo ardor religioso formou-se um corpo de elite, hoje conhecido como a
escola francesa de espiritualidade. Curiosamente, muitos dos que ali marcavam
presença pertenciam a diversas congregações religiosas e possuíam formação
heterogênea. Essas diferenças, porém, eram superadas pela caridade de todos e
constituíam, inclusive, um fator de enriquecimento.
O padre João
Eudes era um sacerdote vindo da Normandia ainda nos anos da juventude para
integrar a Congregação do Oratório, recém-fundada por Bérulle. Dedicado
pregador de missões populares, ele também se distinguia naquele círculo por uma
palavra fácil e penetrante, por seu conhecimento doutrinário profundo e por
traços místicos que o uniam com vínculos estreitos a Cristo e à sua Mãe
Santíssima.
As multidões
por ele convertidas testemunhavam o calor de sua pregação. E quando falava ao
seleto conjunto do Palacete Acarie, repetia com a mesma força persuasiva
admoestações como esta: "Tudo quanto se relaciona com a divindade de
Jesus, com sua santa humanidade, com os estados e mistérios de sua vida
maravilhosa, no tempo e na eternidade, se reveste de um caráter de grandeza e
de uma dignidade infinita, que sobrepujam nossa compreensão humanamente
limitada [...]. O Juízo Universal que o Filho de Deus pronunciará no fim dos
tempos não terá outro fim senão o de tributar, mediante a tremenda justiça de
Nosso Senhor, uma suprema homenagem a todos os seus mistérios, proclamando,
perante toda a humanidade, quanto esta fez ou omitiu na meditação e amor aos mistérios
de Cristo, ao longo de todos os séculos e em todos os lugares do
universo".1
Escolhido para o serviço da Igreja
Nascido em 14
de novembro de 1601 no vilarejo de Ri, próximo a Argentan, João Eudes foi uma
resposta da Providência às súplicas de seus pais. Acabrunhados pela perspectiva
de não terem filhos, peregrinaram a um santuário mariano para implorar esta
graça e ali consagraram de antemão a Nossa Senhora o fruto de sua união. Em
pouco tempo nascia-lhes o menino, que apressaram em conduzir à fonte batismal.
A família pôde
comprovar, logo nos anos da infância, como o oferecimento fora de fato aceito:
percebia-se a olhos vistos a vocação religiosa da criança. Ainda pequeno não
poupava esforços para comungar com assiduidade, contrariando a tendência
jansenista então reinante, como ele mesmo o atesta: "Estando numa paróquia
onde muito poucas pessoas comungavam fora da Páscoa, comecei por volta dos 12
anos a conhecer a Deus, por uma graça especial de sua divina bondade, e a
comungar todos os meses, após ter feito uma Confissão geral. Foi na festa de
Pentecostes que Ele me concedeu a graça de fazer a Primeira Comunhão. [...]
Pouco tempo depois, Ele me deu também a graça de Lhe consagrar meu corpo pelo
voto de castidade".2
Inscrito por
seu pai no colégio jesuíta de Caen, revelou-se ali um aluno de raras qualidades
- "o devoto Eudes",3 como gostavam de chamá-lo. Estudou depois
teologia com máximo proveito na universidade desta mesma cidade normanda. Aos
19 anos ouviu em seu interior o chamado à vida eclesiástica, e recebeu do Bispo
diocesano a tonsura e as ordens menores.
Sua vocação,
todavia, estava por florescer. Foi no contato com os membros do recém-fundado
Oratório de Bérulle que João Eudes sentiu-se interpelado pela graça a dar um
passo decisivo: tomar parte naquela nova família espiritual, dedicada a honrar
o mistério do sacerdócio de Jesus Cristo. Impressionado pelo exemplo de vida
dos clérigos que a integravam, ele se apresentou às portas do convento para
pedir admissão e "seu pedido foi favoravelmente acolhido pelo superior da
comunidade de Caen, o padre Aquiles de Harlay-Sancy, que escreveu de imediato
ao padre Bérulle".4
Vocação missionária
Com passo
resoluto este jovem de 22 anos ingressa na Congregação do Oratório, de onde é
enviado pouco depois para o noviciado de Paris. Sua ordenação sacerdotal teria
lugar apenas dois anos mais tarde; contudo, já no mês seguinte ele realizaria a
primeira missão.
Ouçamo-lo
narrar as razões que o levaram a abraçar desde cedo esta causa, que seria a de
toda a sua vida: "Algo deplorável até às lágrimas de sangue é ver que,
dentre o tão grande número de homens que povoam a Terra, que foram batizados e,
em consequência, admitidos na condição de filhos de Deus, membros de Jesus
Cristo e templos vivos do Espírito Santo, portanto obrigados a levar uma vida
conforme a estas divinas qualidades, muito mais numerosos são os que vivem como
animais, como pagãos e até mesmo como demônios; quase não há quem se comporte
como verdadeiro cristão".
Os períodos
transcorridos na glamorosa capital contrastavam com o árduo exercício do
ministério nas regiões onde a população católica vivia abandonada. Por isso,
São João Eudes exclamava com justa indignação: "Que fazem em Paris tantos
doutores e tantos bacharéis, enquanto as almas perecem aos milhares por falta
de quem lhes estenda a mão para tirá-las da perdição e preservá-las do fogo
eterno? Decerto, creia-me, eu iria a Paris gritar na Sorbonne e nas outras
faculdades: ‘Fogo! Fogo! O fogo do inferno incendeia todo o universo! Vinde,
senhores doutores, vinde, senhores bacharéis, vinde, senhores padres, vinde
todos, senhores eclesiásticos, vinde ajudar a apagá-lo!'".
Os resultados
de sua pregação podiam ser medidos pela afluência do público, que não raras
vezes acorria aos milhares às praças das catedrais. Os números correspondiam
não somente à assistência, como também ao de Sacramentos administrados:
"É de partir o coração de piedade ver um grande número desta pobre gente
vinda de três ou quatro lugares, apesar dos maus caminhos, pedir, entre
lágrimas, para ser atendida em Confissão, e que permanece de seis a oito dias
sem poder ser atendida, dormindo à noite nos pórticos e nos mercados, qualquer
que seja o tempo".
Calcula-se que
nas longas décadas dedicadas a esta forma específica de apostolado, São João
Eudes organizou cerca de 110 missões, que duravam normalmente vários meses e
abrangiam vastos territórios. Nem sequer o rei Luís XIV e a rainha Ana
d'Áustria deixaram de ser beneficiados por seus ensinamentos, pois o Santo
realizou uma concorrida pregação em Versailles, na qual recriminou com termos
severos a má conduta dos soberanos. Reconhecendo-se merecedores daquelas
palavras, ambos passaram a dedicar-lhe uma alta estima e a favorecê-lo sempre
que se apresentava alguma ocasião.
Aurora da devoção ao Sagrado Coração de Jesus
Nesse contexto
de fecunda atividade pastoral, verificou São João Eudes os estragos feitos pela
heresia jansenista, então em plena expansão. Os adeptos desta corrente nefasta,
que fingiam possuir uma elevada espiritualidade, levavam as pessoas a duvidar
da misericórdia de Deus, na errada crença de estarem excluídos do número dos
eleitos. Assim, incontáveis católicos abandonavam a prática da Fé, por
desespero da salvação.
Firmemente
convencido do contrário, logo se pôs ele a campo para reverter este quadro. Sua
atuação missionária tinha o claro propósito de aproximar do amor divino as
almas arrependidas e infundir-lhes a certeza de nunca serem abandonadas por
Deus, mesmo carregadas de graves culpas. Fiel a um chamado interior que o movia
a pregar esta bondade, o santo sacerdote não tardou em relacionar a caridade
infinita de Cristo com o seu Coração humano-divino, órgão no qual habita toda a
plenitude da divindade.
Com efeito,
"São João Eudes é o primeiro teólogo que tratou do objeto próprio da
devoção ao Coração de Jesus", afirma Lebrun.8 Transbordante de entusiasmo,
proclama o Santo: "O Coração augusto de Jesus é uma Fornalha de Amor que
espalha seu fogo e suas chamas por todos os lados, no Céu, na Terra e em todo o
universo. [...] Todas as criaturas existentes na Terra, mesmo as insensíveis,
inanimadas e irracionais, experimentam os incríveis efeitos da bondade deste
magnífico Coração".
E para fixar
na mente dos fiéis esta doutrina, ele compôs uma Missa e Ofício em honra ao
Sagrado Coração de Jesus, cujos textos atestam até hoje a unção, a piedade e a
pureza de doutrina de seu autor. Graças a São João Eudes, o Divino Coração foi
honrado oficialmente pela primeira vez na História da Igreja, o que lhe valeu o
título de "autor do culto litúrgico aos Sagrados Corações de Jesus e
Maria",10 outorgado por Leão XIII, e o de "pai, doutor e
apóstolo"11 deste mesmo culto, conferido por São Pio X ao beatificá-lo.
Quando as revelações a Santa Margarida Maria Alacoque ocorreram em
Paray-le-Monial, no ano de 1675, havia já um povo preparado para corresponder
ao seu apelo de amor.
O Coração de Jesus e Maria
A um passo tão
ousado, logo se seguiram duras reprovações por parte daqueles que não queriam
reconhecer neste culto o sopro do Espírito Santo. Sem titubear, o Santo lhes
deu uma réplica sagaz: "Se esta devoção é objetada pela novidade, eu responderei
que a novidade é muito perniciosa nas coisas da Fé, mas muito boa nas coisas da
piedade".
Convicto de
que esta nova devoção tinha sua origem num desígnio providencial, São João
Eudes mostrou, por argumentos teológicos, que o Coração de Jesus e o de Maria
não têm diferenças entre si, mas constituem, pela união existente entre ambos,
um só e mesmo Coração. "Jamais tivemos, no entanto, a intenção de separar
duas coisas que Deus uniu tão estreitamente, como são o Coração augustíssimo do
Filho de Deus e o de sua Bem-Aventurada Mãe: pelo contrário, nosso propósito
foi sempre, desde os primórdios de nossa congregação, de contemplar e honrar
estes dois amáveis Corações como um mesmo Coração, em unidade de espírito, de
sentimento e de afeição, como está manifestamente expresso na saudação que
fazemos todos os dias ao Divino Coração de Jesus e Maria, bem como na oração e
em várias partes do Ofício e da Missa que celebramos na festa do Sagrado
Coração de Maria Virgem".
Duas novas congregações para a Igreja
Seus 78 anos
de vida foram uma constante lição de perseverança, sem esmorecer na luta contra
os inimigos da Igreja ávidos de arrebatar as ovelhas do redil de Cristo; uma
doação de si até o último alento, pelo bem das almas. Sinal de ser esta entrega
uma oferenda grata a Deus foi a missão realizada na idade de 70 anos, na qual
gozou de energias sobre-humanas: "Deus me deu tanta força nesta missão,
que eu preguei quase todos os dias, durante doze semanas, a uma enorme
assembleia reunida na catedral, com o mesmo vigor que possuía na idade de 30
anos. É por isto que tomei a resolução de empregar neste trabalho o resto de
minha vida".
O maior de
todos os embates foi sua saída do Oratório - ao qual estava ligado por laços de
profunda afeição -, a fim de fundar duas novas famílias religiosas para a Santa
Igreja: a Congregação de Jesus e Maria, em 1643, voltada à formação do clero e
a perpetuar as missões paroquiais; e o Refúgio de Nossa Senhora da Caridade, em
1651, destinado a socorrer mulheres em situação de risco.
Deus lhe havia
reservado também esta coroa: estabelecer uma descendência espiritual empenhada
em glorificá-Lo segundo o carisma que norteou sua existência. Hoje, decorridos
mais de três séculos da morte de São João Eudes, seus filhos e filhas fazem
ecoar, através de meritórias obras de evangelização ao redor do mundo, um brado
que ele repetia a todo instante e que resume o ideal que animou este gigante da
Fé: "Viva Jesus e Maria!".
1
SÃO JOÃO EUDES. Obras. Vida y reino de Jesús en las almas cristianas. Bogotá: San Juan Eudes, 1956, p.181-182.
2 GEORGES, CJM, Émile.
Saint Jean Eudes. Paris: Lethielleux, 1925, p.7.
3 Idem, p.9.
4 Idem, p.12.
5 AMOURIAUX, CJM,
Jean-Michel; MILCENT, CJM, Paul. Saint Jean Eudes, par ses écrits.
Paris: Médiaspaul, 2001, p.81.
6
Idem, p.83.
7
Idem, p.84.
8 LEBRUN, CJM, Charles. La
spiritualité de Saint Jean Eudes. Versailles: Liberius, 1933, p.44.
9 AMOURIAUX; MILCENT, op.
cit., p.148.
10 LEÃO XIII. Decreto do
heroísmo das virtudes de São João Eudes, de 8/1/1903.
11
SÃO PIO X. Carta apostólica de beatificação de São João Eudes, de 11/4/1909.
12 AMOURIAUX; MILCENT, op.
cit., p.151.
13
Idem, p.150.
14
Idem, p.93.
15
Idem, p.108.
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