A escritora polonesa
Maria Winovska, em seu livro Maranatá, conta este caso, que ela garante ser
autêntico:
O irmão porteiro do
Mosteiro da Cartucha avisou o Superior: - Está na sala de visitas um homem que
pede a admissão na nossa Ordem para fazer penitência. Tenha cuidado, Padre.
Parece-me um bandido da pior espécie.
-Veremos, irmão. As
aparências, por vezes, enganam-nos. Dizendo isto, caminhou para a sala de
visitas. Ao vê-lo, o recém-chegado, que se chamava Bogdan Grelha, levantou-se
desajeitadamente, e balbuciou por entre dentes:
- Bom dia!
- Sente-se - disse
amavelmente o Superior - e declare o que quer.
- Ele venceu-me -
suspirou o homem - e eu me vi forçado a dirigir-me para este convento a fim de
começar uma vida de penitência.
- Quem é que o venceu?-
indagou o Superior.
- O Padre Miguel. O Sr.
o conhece?
- Claro que o conheço,
ou antes, conhecia.
O Padre Miguel tinha
sido condenado à morte. Antes da execução que tardou um mês, o Padre Superior
fez todo o possível por visitá-lo e acompanhá-lo nos últimos dias. Mas todas as
tentativas tropeçaram na recusa categórica: “Proibida a entrada ao Clero”.
- Eu fui o seu
carcereiro - continuou Grelha - durante as três semanas que precederam a sua
morte. Às minhas ordens estavam os condenados à pena capital.
- Deixou-lhe algum
recado para mim? - perguntou com ansiedade o Superior.
- Sim. Na véspera da
execução pediu-me que viesse falar com o senhor e lhe contasse sucedido. Por
isso aqui estou.
No espírito do Padre
Superior surgiu uma dúvida: diante de quem estaria? De um espião? De um
intrujão? Desde a instalação do regime comunista na Polônia, todos os
sacerdotes andavam espiados e perseguidos. Por isso o Padre atreveu-se:
- E quem me garante que
você não está a tecer-me uma armadilha?
- Estou lhe falando a
verdade. O Padre Miguel, na véspera da morte, disse-me: Bogdan Grelha, se o
Padre Bruno, agora Superior do convento, não te quiser acreditar, lembra-lhe a
nossa conversa e o juramento que fizemos no topo de uma ameixoeira, quando
tínhamos apenas 11 anos.
O Padre Superior ficou abalado com a recordação dessa
conversa que tinha um segredo absoluto entre ele e o falecido sacerdote. O
homem não era, um mentiroso. Por isso declarou:
- Continue.
- Como ele estava quando
mo entregaram para o matar! A camisa colara-se-lhe à pele, tanto era o sangue
que nela havia. Mas aquele condenado não perdia a calma, o que me causava
admiração, porque muitos outros chegavam a desesperar. Não é assim tão fácil ser
carcereiro dos condenados à morte: Lançam altos gritos, batem uns nos outros,
amaldiçoam, desesperam... Mas ele, nada disso! E como o insultavam!
Aconteceu-me ver-lhe as costas e peito: era como se não fosse homem, mas pele
de zebra, de tal modo o tinham esfacelado. Aquele sacerdote não me tratava como
inimigo. Uma vez, à noite, depois da distribuição da sopa, entrei na sua cela e
foi aí que tudo começou... Perguntei-lhe à queima roupa:
- Porque me sorris,
assim? Não sabes que daqui a dez dias vamos te enforcar?
- Isso não é desgraça;
uma desgraça é estar na inimizade com Deus - respondeu ele.
- Então ri-te do teu Deus - exclamei,
sarcástico. Ele não vai sair do Seu lugar para te salvar.
- Que necessidade tem de
o fazer? Ele mesmo deixou-se voluntariamente pregar na Cruz para nos salvar.
- Salvar? Isso são
conversas de freiras, mas não de homens como tu e como eu, embora sejas
sacerdote. E por isso mesmo que te prenderam. Quanto a mim, é outra coisa. Olha
para as minhas mãos. Sabes tu quanto sangue já passou por elas? Matei muitos
homens. Perdi mesmo a conta. E, por isso, não será nunca para mim essa tua
maldita Cruz.
- Precisamente para ti
- respondeu o Padre Miguel. O Senhor
morreu também por ti.
O Padre Superior ouvia
impressionado, mas mais comovido ainda se mostrava Bogdan Grelha, que continuou
o seu relato:
- Ao ouvir tais coisas,
até pensei que ele não estaria bom da cabeça. No outro dia, depois da sopa,
perguntei-lhe: Ouve lá, Padre! Foi por brincadeira que ontem me disseste
aquelas tolices?
- Que tolices? - perguntou.
- Essa coisa do teu Deus
e da Sua Cruz. É que eu me rio de tudo isso.
- Mas Deus não Se ri de
ti - afirmou ele - Deus ama-te.
- Ainda mais essa! Deus
amar-me a mim? Olha que eu sou um monstro. E contei-lhe a minha desgraçada
vida, toda a minha horrível vida... Éramos 11 na família. Meu pai era pedreiro.
Certo dia, desmaiou e caiu dos andaimes. Levantaram apenas um saco de ossos.
Minha mãe começou, então, a ganhar a vida lavando roupa. Tinha eu seis anos.
Lembro-me de que, à noite, as suas mãos estavam inchadas de tanto esfregar. Não
tinha tempo para se ocupar de nós. Vivíamos na rua. Minhas irmãs, aos 15 anos,
meteram-se na má vida, e eu aprendi a roubar. Tinha 16 anos, quando a minha mãe
morreu. Realmente sofreu muito, coitadinha! Pouco antes do falecimento
disse-me:
- Bogdan, meu filho, não
andes mais com esses gatunos. Felizmente faleceu antes que me prendessem. Com
tal profissão vai-se longe. É um desporto. Eu não roubava por fome: roubava por
roubar, como mais tarde, matava por matar. Dava-me verdadeiro prazer ver as
minhas mãos a escorrer sangue.
- Mas isso é verdade? -
inquiriu o Superior.
- Sim, continuou Grelha.
Eu contei todos os meus crimes ao Padre Miguel. A velha que asfixiei, a criança
que me beijava as mãos, estas mãos, e me suplicava: tenha piedade de mim! Mas
eu não tive e acabei com ela. Depois veio a guerra. Vida desordenada. Estive em
Ivov, na cadeia. Os bolchevistas libertaram-me e vivíamos juntos como
camaradas. Foi então que eles me propuseram um novo trabalho.“Eles prenderam-te
a ti, agora prende-os tu a eles”. A cadeia precisava de especialistas como eu,
para matar os condenados. Pagavam-me bem. Todas as vezes que me mandavam um
condenado à morte dizia comigo mesmo: “Mais um a menos!”. Até o dia em que me
encontrei com esse sacerdote condenado, que tanto me comoveu. Contei-lhe toda a
história da minha triste vida. Isso levou-me algumas noites, mas ele escutava
sempre com paciência. Uma vez à noite perguntou-me:
- É tudo, meu filho? -
Repare como me chamou: “meu filho!”. Aquele santo sacerdote, continuou:
- O Sangue de Cristo
pode lavar tudo. Queres que te dê a absolvição de todos os teus pecados? Eu
ofereço a minha vida por ti.
- Isto é que eu nunca
poderia ter esperado. A princípio até sorri. Mas depois desfiz-me em lágrimas.
Pela primeira vez, depois de longos anos, começou a despertar em mim o
aborrecimento do mal e o desejo de mudar de vida. Pensava comigo mesmo: mas
será isto verdade? O Sangue de Cristo poderá lavar a minha alma? Os meus crimes
terão perdão?... Comecei a passar longas horas à noite conversando com ele, que
me falava da fé, do amor de Deus, do arrependimento dos pecados, da penitência
e da confissão. Em pequeno, tinha aprendido a catequese. Mas há quantos anos!
Fiquei impressionado com tudo, desejando pôr termo à minha vida criminosa. Na
véspera da sua morte chamou-me:
- Bogdan, não poderias
arranjar-me um pouco de vinho e pão ázimo, pão de natal? (pão sem fermento
usado na Polônia na festa do Natal). Queria tanto celebrar a minha última
Missa!
- Para lhe fazer a
vontade, fui a uma loja. Comprei uma garrafinha de vinho branco e uma vizinha
deu-me um pedaço de pão de Natal. Levei-lhe tudo. Antes da Missa deu-me a
absolvição dos pecados e beijou-me. Perguntei-lhe:
- Como podes tu beijar
um desgraçado como eu?
- Se eu não sou como tu
- respondeu ele - o mérito não é meu; protegeu-me a graça de Deus. Tanto eu
como tu fomos salvos pela Sua infinita misericórdia.
- Foi isso que me disse,
palavra por palavra. Nunca me esquecerei dessa noite, a última que ele passou
no mundo e em que celebrou pela última vez. Um copo de alumínio serviu de
cálice e depois... depois...(nesse momento Bogdan escondeu a cara) e depois deu-me
a comunhão, a mim, pobre pecador!
O seus soluços
interromperam o seu relato. A custo continuou:
- Deu-me o endereço
deste convento e o nome do seu Superior. Mandou-me contar-lhe tudo e pôr em
prática o que o senhor me dissesse. Mas eu tinha vergonha de vir, enquanto
estivesse naquele emprego miserável. Logo depois da morte do Padre, pedi
demissão. Eles não me queriam deixar ir porque, na verdade, eu era um
especialista na matéria. Mas o médico atestou que os meus nervos não podiam
aguentar mais. Deixaram-me partir. Agora aqui estou. Diga-me o que devo fazer.
Queria ficar neste convento para fazer penitência pelos meus pecados.
O Padre Superior fechou
os olhos e ficou calado por uns momentos. Por fim disse:
- Meu filho, recebo-te
como um dom, graças ao testamento do meu antigo companheiro, o santo Padre
Miguel, mártir da fé. Mas fixa bem na memória: A tua vida passada ficou lavada
pelo Sangue de Cristo. Proíbo-te de falar dela, exceto na confissão ou diante
da imagem de Jesus crucificado. Proíbo-te mesmo de pensar nela a não ser que
tal pensamento encha o teu coração de gratidão pela grandíssima misericórdia
que Jesus te demonstrou”.
Esta comovedora história
vem descrita na revista “Cruzada” de Abril de 1985, donde transcrevemos com a
devida vênia.
Por aqui se vê o
trabalho da graça divina que é capaz, por um lado, de perdoar ao maior pecador;
por outro lado, demonstra a ação da mesma graça naqueles que os altos desígnios
de Deus chamam à glória do martírio por amor da fé.
Fonte:
Jornal “Missionário do Sofrimento”, Setembro-Outubro de 1985, n. 110, Porto - Portugal.
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