Dentro dos muros de um mosteiro, nas
misteriosas terras orientais da Armênia antiga, escolheu este monge a melhor
parte: aprendeu a conversar, no tempo, com o Senhor das Alturas, para gozar de
seu convívio na eternidade.
Existe algum nexo entre o homem contemporâneo, cercado de avançados
meios de comunicação, e um monge armênio do século X, vivendo em estrito
recolhimento num mosteiro perto do Lago de Van - hoje pertencente à Turquia -,
rodeado de montanhas quase sempre nevadas? O que há de tão original e profundo
no pensamento de São Gregório de Narek para ter sido declarado Doutor da
Igreja?
Decerto perguntas como estas terão passado pela mente de quem leu a notícia
divulgada há um ano pela Sala de Imprensa da Santa Sé.1 Vamos juntos tentar
descobrir a resposta.
O ser humano precisa se comunicar
Todos nós temos um desejo muito forte de nos comunicar com os demais. O
homem é um "animal político", na definição de Aristóteles; segundo
São Tomás, um "animal social".3 Isto se explica pelo fato de termos
nascido todos com uma particularidade denominada por Cícero "instinto de
sociabilidade".4
Paradigmática é a historia de Helen Keller, famosa norte-americana que ficou
cega e surda antes de completar dois anos de idade, devido a uma grave
enfermidade. Desprovida dos principais sentidos, vivia ela como que apartada do
mundo. Depois de aprender, ainda criança, com sua preceptora, Anne Sullivan, a
se comunicar por meio do tato, conseguiu aos poucos desenvolver um universo de
potencialidades latentes em sua alma e acabou por tornar-se educadora,
escritora, conferencista e advogada.
Para satisfazer esta necessidade humana fundamental, com quem precisamos
nos comunicar? Sem dúvida com nossos semelhantes. Não obstante, podem eles
explicar as incógnitas inerentes à nossa existência? Não. Por isso, nosso mais
forte desejo de comunicação volta-se para um Ser superior, capaz de preencher
nossas lacunas e limitações.
Quiçá seja este o ponto mais atraente da personalidade um tanto misteriosa de São Gregório de Narek: sabia ele estar em constante comunicação com Deus.
Quiçá seja este o ponto mais atraente da personalidade um tanto misteriosa de São Gregório de Narek: sabia ele estar em constante comunicação com Deus.
Uma
vida inteira no mosteiro de Narek
Gregório nasceu em Andzevatsik, província de Vaspurakan na antiga
Armênia, por volta do ano de 950, numa família culta e cristã. Havendo falecido
sua mãe quando ele estava em tenra infância, o pai - nomeado Arcebispo de
Andzevatsik, tendo decidido abraçar a vida eclesiástica - confiou a educação do
menino a um parente de nome Ananias, cognominado "o Filósofo",5 abade
do mosteiro de Narek, importante centro cultural de então.
Instruído nas Sagradas Escrituras e nas letras, destacou-se pela
austeridade de sua via ascética e pelo espírito de oração. Depois de ordenado
sacerdote foi designado mestre de noviços. Com o falecimento de Ananias, o
elegeram abade do mosteiro e ali viveu até sua morte, por volta de 1005.
Em seu tempo, a Armênia estava em relativa tranquilidade. Não se haviam
dado as invasões mongólicas e turcas que mudaram a fisionomia do país e era uma
época de criatividade e paz, o que possibilitou à nação um florescimento das
artes - literatura, pintura, arquitetura, teologia -, no qual São Gregório
desempenhou papel primordial, enquanto poeta místico, compositor e literato.
Como sua fama de santidade passou do mosteiro de Narek para os mosteiros circunvizinhos, São Gregório converteu-se num reformador de monges. Entretanto, sua radical fidelidade à observância das regras monásticas contrariava o relaxamento de alguns noviços. Estes, movidos ademais pela inveja, promoveram contra ele uma infame perseguição, acusando-o de disseminar heresias em seus ensinamentos. Em consequência, São Gregório foi deposto de seus cargos.
Como sua fama de santidade passou do mosteiro de Narek para os mosteiros circunvizinhos, São Gregório converteu-se num reformador de monges. Entretanto, sua radical fidelidade à observância das regras monásticas contrariava o relaxamento de alguns noviços. Estes, movidos ademais pela inveja, promoveram contra ele uma infame perseguição, acusando-o de disseminar heresias em seus ensinamentos. Em consequência, São Gregório foi deposto de seus cargos.
Não tardou a Providência vir em auxílio de seu fiel servidor. Contam
antigas crônicas que os Bispos designaram dois monges sábios para interrogarem
o santo abade a respeito de suas supostas heresias. Estes, porém, julgaram ser
mais eficiente submetê-lo a uma prova. Apresentaram-se em sua cela, no período
quaresmal de abstinência de carne prescrito pela regra, e lhe ofereceram um
delicioso patê de pombinhos como se fosse de peixe. Mal entraram, Gregório
interrompeu a oração, abriu a janela, começou a bater palmas e a gritar aos
pássaros que por ali gorjeavam: "Vinde, passarinhos, brincar com o peixe
que se come hoje".6 Entenderam os dois monges que aquela facilidade em
descobrir e livrar-se da cilada era uma testemunha eloquente da santidade de
Gregório e, portanto, da ortodoxia de sua doutrina.
Seu
testamento espiritual: o "Livro das Orações"
Nos relatos dos Santos Evangelhos, a mais emblemática manifestação do
desejo humano de comunicar-se com Deus talvez tenha se dado no momento em que
os Apóstolos pediram a Jesus: "Senhor, ensina-nos a rezar"
(Lc 11, 1). E Cristo lhes ensinou a oração perfeita: o Pai-Nosso.
Zeloso imitador do Mestre e cheio de desvelo pela salvação das almas,
São Gregório compôs o Livro das Orações - também conhecido por Livro das
Lamentações ou Tragédie -, constituído de 95 orações ou capítulos, todos em
verso. Segundo consta, foi terminado em 1002 e escrito durante uma dolorosa
enfermidade. É o que revela uma de suas orações: "Abatido por meus crimes,
sobre o leito de minhas doenças e o monturo de meus pecados, não sou mais que
um cadáver vivo, um morto que ainda fala. [...] Então, como ao jovem chamado à
vida para acalmar a aflição de sua mãe, Tu me devolverás minha alma pecadora tão
renovada como a dele"
São Gregório considerava esta sua obra-prima como um verdadeiro
testamento espiritual e exprimiu o ardente desejo de que as orações ali
contidas fizessem sentir sua presença depois da morte: "Que em vez de mim,
em lugar de minha voz, este livro ressoe como outro eu mesmo”.
Queria que estes escritos servissem de baliza e esteio para os homens
falarem com Deus nas mais variadas circunstâncias. Assim como Davi louva a Deus
no Livro dos Salmos, e pede perdão pelas suas faltas confiando numa
misericórdia que há de vir, São Gregório também o faz, mas em função da Misericórdia
que já veio ao mundo, morreu e ressuscitou. Há quem compare o esforço de se
reconciliar com Deus que pervade o Livro das Orações com as famosas Confissões
de Santo Agostinho.
"Tu ouves os suspiros dos
cativos"
"Se reconhecemos os nossos pecados, (Deus aí está) fiel e justo
para nos perdoar os pecados e para nos purificar de toda iniquidade"
(I Jo 1, 9), ensina o Discípulo Amado. Fiel a tal pensamento, o santo
monge sustenta que não adianta tentar esconder as faltas de Deus, pois Ele tudo
vê. E nos dá o exemplo, acusando-se delas, das quais faz uma longa lista:
pequei contra tua imensa bondade, pequei contra a piedade de teu celeste amor,
pequei contra Ti que nos criaste do nada, pequei contra a beleza de teu dia que
nunca acaba, contra os mistérios de teus graciosos dons;9 contra Aquele de quem
recebemos o perdão "mais pela graça do que pela penitência".10 Por
isso, a Deus ele pede que venha em nosso auxílio como médico e não "como
um juiz para um interrogatório".
Já bem perto do fim do livro, como também de sua vida, na prece
intitulada Oração da Noite, proclama ele sua confiança n'Aquele com quem o
homem deseja se comunicar e relacionar: "Deus eterno, benfeitor todo
poderoso, que criaste a luz e deste forma à noite; vida no meio da morte e dia entre
as trevas [...]. Tu ouves os suspiros dos cativos, Tu consideras os rogos dos
humildes, Tu atendes os seus pedidos, meu Deus, meu rei, minha vida e meu
refúgio, minha esperança e minha certeza".
São Gregório considera a oração saída do coração do cristão como a
fragrância do incenso que se evola de um turíbulo. Por conseguinte, em suas
obras busca encontrar o que pode o homem oferecer a Deus, que tudo sabe e tudo
tem. E sua conclusão é: o melhor para apresentar a Deus são os "gemidos do
coração",13 transcritos em suas orações e escritos poéticos, orientados
para tocar "as camadas mais profundas da consciência individual" e para
o "enriquecimento da Liturgia"14 da Igreja.
Prenúncios do dogma da Imaculada
Conceição
De acordo com uma tradição armênia transmitida de geração em geração,
durante um longo período de sua vida, Gregório chorava e implorava a Deus a
graça de ver com seus próprios olhos a Virgem Maria com o Menino Jesus nos
braços, ainda que uma só vez. Certa noite, estando em sua cela, viu descer do
Céu uma luz incidindo numa pequena ilha no Lago de Van. Uma leve brisa se fez
sentir e Maria Santíssima apareceu com Jesus nos braços. Tão logo A viu,
exclamou: "Agora, Senhor, recebei minha alma, porque já obtive o que tanto
desejava".15 A visão desapareceu, mas a ilha passou a chamar-se A?ter - A?
T?r significa "Senhor, recebei", em armênio -, e este fato memorável
foi reproduzido em muitas iluminuras.
O amor a Maria Santíssima é uma característica dominante de sua espiritualidade. A Ela se refere como: "Esta Mãe, que me ama como a um filho, é espiritual, celeste e luminosa".16 Tão grande devoção foi manifestada especialmente na oração 80, intitulada À Mãe de Deus, na qual apresenta importantes aspectos de mariologia, entre eles prenúncios do dogma da Imaculada Conceição, proclamado mais de oitocentos anos depois.
O amor a Maria Santíssima é uma característica dominante de sua espiritualidade. A Ela se refere como: "Esta Mãe, que me ama como a um filho, é espiritual, celeste e luminosa".16 Tão grande devoção foi manifestada especialmente na oração 80, intitulada À Mãe de Deus, na qual apresenta importantes aspectos de mariologia, entre eles prenúncios do dogma da Imaculada Conceição, proclamado mais de oitocentos anos depois.
Aqui reproduzimos seus belos trechos iniciais: "Eis que Te rogo,
Santa Mãe de Deus, Anjo e filha dos homens, Querubim aparecido em forma
corpórea, Soberana celestial, sincera como o ar, pura como a luz, sem mancha
que se levanta como a estrela da manhã, mais santa que a morada inviolável do
Templo, lugar de bem-aventuradas promessas, Éden dotado do sopro divino, árvore
da vida eterna, guardada por uma espada de fogo! O sublime poder do Pai Te cobriu
com sua sombra e o Espírito Santo, repousando em Ti, ornou-Te com sua
santidade; o Filho, fazendo em Ti sua morada, preparou-Te como um tabernáculo;
o Unigênito do Pai é o teu Primogênito, teu Filho por nascimento, teu Senhor,
pois Te criou. Nada mancha tua pureza, nada macula tua bondade; Tu és a santa imaculada,
cuja intercessão nos protege".
Seu relacionamento com a Mãe de Deus, bem ao estilo oriental, exprime a
doutrina em forma de panegírico e louvor, à diferença "dos ocidentais, em
especial os latinos, que formulam cânones e definições dogmáticas".
Quem escolheu a melhor parte?
Poderíamos continuar comentando indefinidamente os distintos aspectos da
arte de se relacionar com Deus desenvolvida com tanta maestria por São
Gregório, todavia chegamos ao fim de nosso artigo. E concluímos como começamos:
lembrando a necessidade presente em nosso ser de nos comunicarmos.
Ora, uma conversa é tanto mais agradável e elevada quanto mais
excelentes são os interlocutores. Assim, no reino animal, se observarmos as
formigas, por exemplo, perceberemos alguns momentos em que duas param um
instante em seu percurso da tarefa de abastecimento do formigueiro, uma frente
à outra, como se transmitissem alguma informação. É uma comunicação rápida: em
segundos está tudo "dito" e cada uma retoma o seu caminho. Já os
macacos na Amazônia, por sua vez, se comunicam de forma bem diferente. Durante
longo tempo um bando berra contra o outro, numa "briga verbal", até
definirem seu território. E se observamos os pássaros, podemos dizer que seu
"colóquio" é bem mais artístico e delicado, ao estar enriquecido por
seus dotes musicais.
Subindo aos seres humanos, vemos que quanto mais refinados e inteligentes são eles, mais alto e requintado será o seu prosear. Até seria possível fazer alguns comentários pitorescos sobre as diferenças dos tipos de interlocução, variando em função do nível cultural, social ou intelectual dos que nela participam.
Subindo aos seres humanos, vemos que quanto mais refinados e inteligentes são eles, mais alto e requintado será o seu prosear. Até seria possível fazer alguns comentários pitorescos sobre as diferenças dos tipos de interlocução, variando em função do nível cultural, social ou intelectual dos que nela participam.
No entanto, quando um dos participantes é o Divino Interlocutor, a que
altura poderá ela chegar? Saberemos bem quando cruzarmos os umbrais da outra
vida, porque "como as perfeições de Deus são infinitas - Deus é insondável
-, Ele é para nós, no fim de milhões, de trilhões de anos, tão novo como no
primeiro instante".19 Mas não é preciso entrar no além para prelibar algo
desta conversa. São Gregório é uma prova, pois escolheu a melhor parte ainda
nesta Terra: decidiu conversar, no tempo, com o Senhor das Alturas, para gozar
de seu convívio na eternidade.
E o homem moderno, cada vez mais robotizado e cibernauta, escolheu o
quê? Coitado, optou por falar com as máquinas que, aliás, na ordem do ser são
inferiores até mesmo às formigas! É tempo, pois, de aprender com São Gregório
de Narek a comunicar-se com Deus.
Revista Arautos do Evangelho, Fevereiro-2016
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