Comentários de Plinio
Correa de Oliveira sobre Santa Marciana, virgem e mártir, cujos dados biográficos
foram tirados da obra do Abbé Ferrier: La grande fleur de la vie des Saintes.
Ó meu Divino Mestre, vou
feliz para ‘Vós!”
Em
Rouzucourt, pequena
cidade da Mauritânia, Argélia de hoje, vivia, em fins do século III, uma jovem
chamada Marciana, tão piedosa quanto bela, que consagrou muito cedo sua
virgindade a Deus e deixou tudo para viver numa cela perto da cidade romana.
Ora, um dia, a virgem, inspirada sem
dúvida pela voz do Senhor, saiu de sua cela e veio se misturar à multidão que
circulava na cidade agitada por uma viva emoção, porque corriam os dias
sangrentos da perseguição desencadeada no mundo inteiro pelo ímpio Diocleciano.
Marciana, chegando pela porta Tipásia, viu
colocada numa praça uma estátua de mármore da deusa Diana. Aos pés da deusa
corriam águas límpidas num tanque também de mármore.
A intrépida virgem não pode suportar a visão
do ídolo impuro. E tendo primeiro lhe quebrado a cabeça, fez depois o ídolo em
mil pedaços. Uma multidão furiosa se lançou sobre ela e a maltratou
horrivelmente. Depois a arrastaram ao pretório, perante o juiz imperial.
A altiva cristã riu-se dos deuses de pedra
e de madeira e gloriou-se de adorar o Deus vivo e O exaltou no templo com voz
eloquente. O juiz pagão irritou-se e entregou-a aos gladiadores para que
servisse de joguete a infames ultrajes. A virgem permaneceu serena e sem medo.
Durante três horas, com efeito, Deus a defendeu no meio desses brutos, atacados
de terror e imobilidade. Pela oração da angélica mártir, um deles se converteu
a Jesus Cristo.
O tirano, confuso, redobrou seu ódio
ímpio, e não podendo desonrar a virgem cristã, condenou-a a ser estraçalhada
por animais ferozes. Marciana, quando chegou a hora, caminhou para a arena como
para uma alegre festa, bendizendo a Jesus Cristo. Amarraram-na ao local do
suplício e contra ela foi lançado um leão furioso que logo se atirou sobre a
vítima, ficou de pé e colocou suas garras sobre seu peito. Depois, afastou-se
bruscamente e não a tocou mais.
O povo, tomado de admiração, gritou que
libertassem a jovem mártir. Mas um grupo de judeus, misturado à multidão, e
sempre sedento de sangue cristão, pediu que lançassem agora contra Marciana um
touro selvagem.
A fera aproximou-se dela e com seus
chifres furiosos lhe fez no peito uma horrível ferida. O sangue jorrou e a
virgem caiu agonizante na arena. Tiraram-na de lá por um momento,
estancaram-lhe o sangue e como lhe restasse um pouco de vida, o bárbaro tirano
a fez amarrar ainda uma terceira vez.
Marciana ergueu seus olhos ao céu, um
sorriso iluminou seu rosto marcado pelo sofrimento: Ó Cristo, gritou, eu Vos
adoro e Vos amo. Vós estivestes comigo na prisão, Vós me guardastes pura e
agora Vós me chamais. Ó meu Divino Mestre, vou feliz para vós. Recebei a minha
alma. Neste momento, o tirano lançou-lhe um leopardo monstruoso, que com suas
garras horríveis despedaçou os membros da heroica virgem e lhe abriu o glorioso
caminho do Céu.
Desafio à Idolatria numa atitude carregada do mais belo espírito
épico
Esta ficha belíssima
merece alguns comentários debaixo de um ponto de vista que não será, talvez, o que
ocorre logo de início.
À primeira vista temos o
espetá culo de um heroísmo extraordinário, que nos deixa desconcertados. Para dizer
tudo numa palavra só, um heroísmo milagroso.
Trata-se de uma santa
que é uma eremita no sentido próprio da palavra, quer dizer, ela vive
inteiramente isolada, nas proximidades de uma pequena cidade da Africa, no
tempo do Império Romano, época na qual o Norte da Africa era todo constituído
de colônias romanas e estava tão latinizado quanto a Europa latina. Depois, a invasão
dos vândalos derrubou o domínio romano e eliminou de lá a raça latina. Mas
naquele tempo se tratava de uma região inteiramente latinizada. Ela era,
provavelmente, uma latina; seu nome indica isso.
E como uma eremita, ela
não se misturava com nada nem com ninguém.
Um dia, tocada pela
graça e sem saber ela mesma por que, Marciana vai para a cidade e encontra,
então, a cena típica das épocas de perseguição: uma praça pública para onde
tinham transportado o ídolo de Diana, a deusa da caça. Foi colocada junto a uma
fonte, cujas águas estavam represadas por um recipiente de mármore.
E o povo era obrigado a
ir adorar esse ídolo. Quem não o adorasse, seria morto.
Ela, tomada de um justo
ódio contra esse ídolo que era a afirmação de uma religião oposta à de Nosso
Senhor Jesus Cristo, revestida de uma força que não se sabe bem de onde lhe
vinha — porque a imagem que dela nos dá a ficha é de uma jovem bela, graciosa,
portanto frágil—, empurra o ídolo para o chão, a cabeça se separa do corpo e ele
fica em pedaços.
O crime de si, debaixo
do ponto de vista romano, era muito grande, principalmente se tomamos em
consideração que essas estátuas não eram para eles o que são as imagens para
nós. Uma imagem de Nossa Senhora, por exemplo, quem a quebra comete um sacrilégio
porque rompe algo que é a figura de Nossa Senhora, mas não
é Nossa Senhora em pessoa. Sabemos que essa estátua não faz se não representar
a Santíssima Virgem, que está realmente no Céu em corpo e alma. Mas para os
idólatras pagãos a estátua era o próprio deus. Este era um dos aspectos da
idolatria deles, que acreditavam ser aquela estátua a deusa Diana. Havia várias
Dianas, em diversas cidades, aquela era a deusa Diana daquela cidade.
Com uma coragem muito
grande, numa atitude carregada do mais belo espírito épico, ela joga o ídolo no
chão — e já entro na análise do épico do acontecimento. Vemos, então, uma
virgem frágil, débil, uma eremita solitária, recolhida, reclusa, que sai do seu
êremo e faz aquilo que os homens de vida ativa não realizariam, que os
católicos da região, com certeza, não tinham coragem de fazer: ela vai ao
ídolo, o derruba e o espatifa. Quer dizer, ela desafia a idolatria no que essa
tem de mais central, de modo ostensivo. Ela não derruba apenas a imagem, mas
esta se quebra em vários pedaços.
Atacada por gladiadores e animais ferozes
Marciana se encontra ali
de pé, afrontando o tirano que, em nome do Imperador Diocleciano, está condenando
à morte a todos os católicos. E ela enfrenta, então, a morte, com uma coragem e
serenidade absolutas.
Por que ela não parte
para matar o tirano? Entre outras razões porque é uma jovem e não tem forças
para isso. Deus não lhe deu essa missão. Ela não é uma Santa Joana d’Arc. De
momento, a sua missão é diferente. Ela deve desafiar, mostrar a força de Deus
de um modo diverso.
Como Marciana mostra a
força de Deus? Ela é exposta a vários tormentos e a epopeia continua. E sujeita
aos ataques de um grupo de gladiadores, quer dizer, de homens da ralé, extremamente
sensuais, que têm ordem de pular em cima da jovem, abusar dela como entenderem,
e depois matá-la.
Então se dá este fato
incrível: ela se encontra ali tranquila, e o que ela mais ama na Terra, sua
virgindade, sua fidelidade a Deus, está exposta ao risco iminente, ou seja, que
os gladiadores podem pular em cima dela de um momento para outro. Durante três
horas esses homens estão ali imobilizados e não conseguem se aproximar dela.
Uma força misteriosa vence os gladiadores.
Temos aí a primeira manifestação
dos traços característicos da Idade Média: é o domínio do Direito sobre a força,
do espírito sobre a matéria, da virgindade sobre a concupiscência. Na ordem
natural das coisas, ela representa tudo aquilo que na Civilização Cristã é
frágil. Mas ela desafia. E por uma força sobrenatural mostra que soou outra era
da História: tudo quanto é frágil, reto, digno vai começar a dominar tudo
quanto é turbulento e representa a força material, tudo quanto é bestial, tudo
quanto, segundo a ordem natural das coisas depois do pecado original, costuma dominar,
avassalar a Terra.
Ela reza tranquila, e
ninguém se comove. Era normal que várias pessoas se comovessem, que o tirano se
abalasse. Um gladiador se converte; os outros, não, O gladiador que se converte
é ele mesmo uma prova do caráter sobrenatural do que se passava.
E mandam logo vir outro
animal para saltar em cima dela: é um leão. Mais uma vez se repete o
contraste maravilhoso; é épico: a virgem que está de pé e o leão que avança
sobre ela e, para trucidá-la, deita a pata nela. Podem imaginar o que representa
uma patada de um leão numa donzela! De repente a fera para e sai. O povo todo
se entusiasma, começa a aplaudir e pede clemência para ela.
Cria-se, então, uma
agitação e começam a pedir que vá um touro por cima de Marciana. Soltam o touro
que avança, lhe dá uma chifrada e ela cai. E então se vê o sangue purpúreo, o sangue
virginal daquela donzela, daquela mártir, que sai generosamente da horrível
ferida. Mas os perseguidores não se contentam com isso. Querem de fato matá-la e
soltam então um leopardo que pula em cima dela e a estraçalha. Marciana morre
docemente, chamando a Deus Nosso Senhor e confessando que ela vai para o Céu.
Conversão dos povos da bacia do Mediterrâneo
Alguém dirá: que sentido
tem esse acontecimento? Ele é apenas manifestação de uma epopeia? Toda epopeia
tem uma finalidade. Qual é a finalidade dessa? Era apenas mostrar que ela não
queria ceder ante o paganismo? Ou somente desejava impressionar a opinião
pública por meio de seu martírio?
Vê-se que foi tudo
miraculoso, desde o princípio ao fim. Esse foi um dos milagres que deveriam
atestar, junto ao povo ainda pagão, a veracidade da Religião Católica e com
isso contribuir para a conversão da Bacia do Mediterrâneo.
A grande obra da Igreja
Católica, nos séculos da antiguidade, foi a conversão dos povos da Bacia do
Mediterrâneo, os quais converteram, por sua vez, os povos bárbaros que vinham
do Norte. E foi porque estes se converteram também que nasceu a Europa católica,
a Idade Média, a Civilização católica. As missões de todos os outros Apóstolos
que partiram para outras terras — como São Tomé, na Índia, na Etiópia, etc.
foram mais ou menos, ou inteiramente, rejeitadas. No Mediterrâneo, por desígnio
da Providência, a quantidade enorme de mártires e de milagres converteu os
povos. E daí veio, por sua vez, toda a epopeia da Civilização católica.
Para abrir os olhos
desses povos, era preciso um grande número de milagres e que, ao mesmo tempo,
esses não fossem puros fatos materiais: o leão saltou em cima da virgem e não
conseguiu devorá-la; os gladiadores tiveram missão de estraçalhá-la e não
conseguiram avançar contra ela. Era necessário que nesses milagres se visse a
beleza da Doutrina Católica, da Civilização Católica que ia jorrar daí. Era a
civilização da virgindade, da castidade; a civilização dos fracos que recebem
forças sobrenaturais e enfrentam todas as forças materiais; a civilização daqueles
que sabem que para a alma que tem Fé nada é impossível, e que enfrentam todos
os obstáculos, pouco ligando para estes, porque, Deus a estando com eles,
conseguem tudo. Aqui está verdadeiramente o senso de epopeia afirmado.
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