Apóstolo do confessionário
Deus lhe designou como “terra de missão” uma
pequena cela na qual, durante quase quarenta anos, atendeu incansavelmente os
pecadores que a ele acorriam em busca do Sacramento da Reconciliação.
Era o dia 14 de maio de 1944. A
Europa estava em plena guerra e a Itália, aliada da Alemanha, sofria as
consequências do seu envolvimento no conflito. Pádua tinha sido escolhida como
alvo da aviação inimiga. As bombas choviam, devastando a cidade. A igreja dos
capuchinhos foi duramente atingida, bem como grande parte do convento.
Cessada a tempestade, quando a
fumaça se dissipou, o trágico alcance da destruição apareceu aos olhos de
todos. Algo, porém, chamava enormemente a atenção: uma pequena parcela daquele
mosteiro permanecia intacta no meio das ruínas. A fúria demolidora do
bombardeio respeitara de modo miraculoso apenas um aposento e uma imagem de
Nossa Senhora das Graças.
Doze anos antes — em 23 de
março de 1932 —, um frade desse mesmo mosteiro, chamado Frei Leopoldo,
predissera que a Itália seria envolvida num mar de fogo e sangue. Iniciada a
guerra, perguntaram-lhe se Pádua seria bombardeada. Sua resposta foi clara: “Será,
e duramente. Também o convento e a igreja serão atingidos, mas esta pequena cela,
não, esta não! Aqui Deus usou de tanta misericórdia para com as almas, que deve
ficar como monumento de Sua bondade!”.1 E o lugar que permaneceu intacto
durante o bombardeio foi precisamente a cela-confessionário de frei Leopoldo
Mandić, onde durante quase quarenta anos, de dez a doze horas por dia, ele
ouviu em confissão milhares e milhares de almas arrependidas.
Dalmácia: terra de tradições cristãs
Tal como São Jerônimo, frei
Leopoldo era dálmata. Nasceu em 12 de maio de 1866, na pequena cidade de Castelnovo,
localizada na belíssima Baía de Cátaro. Embora a região da Dalmácia integre em
nossa época o território croata, não se desvinculou, nos panoramas da História,
dos dias em que abrigara os palácios de férias dos imperadores romanos,
atraídos pelos irresistíveis encantos de sua costa. Com efeito, desde aqueles
remotos tempos até os dias de hoje, a proximidade com a Península Itálica
propiciou um intercâmbio cultural ininterrupto.
Por tais influências, a família
de Frei Leopoldo era profundamente católica. Os pais, Pedro Mandić e Carolina
Zarević, descendiam da antiga nobreza local, e cultivavam tradições legadas por
seus maiores, fruto de um passado rico em serviços prestados à nação e à
Igreja. Isso marcou indelevelmente a alma do futuro sacerdote.
Dos doze filhos do casal, ele
era o mais jovem e, também, o menos robusto. Sua compleição, menos avantajada
que a da média de seus conterrâneos, escondia entretanto uma alma de gigante,
daquela sorte de homens que, quanto mais se conhece, maiores parecem ser,
sobretudo pela união e entrega a Deus, fazendo jus ao nome recebido na pia
batismal: Bogdan, que significa Adeodato, “dado a Deus”.
“Não posso chorar; vou para a casa do Senhor”
Sua infância e adolescência
foram assinaladas por admirável clarividência de espírito, a qual só l podemos
explicar pelo vigor da Fé que ele possuía desde tenra idade.
Menino de agudo senso
analítico, sentiu-se chocado ante os embates surgidos do ódio entre raças e
religiões, ocasionados na Croácia por anos consecutivos de guerra e ocupações
estrangeiras. À medida que passava o tempo, o jovem Bogdan penetrava na raiz
daquelas discórdias, compreendendo como os homens, quando se afastam de Deus,
acabam por se render às suas más inclinações. Discernia também, com toda
clareza, o quanto podia a Igreja Católica ser naquela conjuntura um poderoso
instrumento de paz.
As primeiras decisões por ele
tomadas na vida foram coerentes com a luz interior que Deus lhe havia
concedido. Sem titubear, abraçou a vocação franciscana, em seu ramo capuchinho,
aos 16 anos de idade. Alimentava desde o início o veemente desejo de dedicar-se
às missões nos Bálcãs, para trazer de volta ao seio da Igreja aqueles que dela
se haviam separado.
Designado pelos superiores para
realizar o noviciado na Itália, não podia ocultar seu contentamento aos
parentes quando, em prantos, dele vieram se despedir. Indagado sobre sua
isenção de ânimo num momento tão difícil para a maioria dos vocacionados,
respondeu sorrindo: “Não posso chorar. Vou para a casa do Senhor. Como querem
que eu chore?”.2
Deus o chama a ser missionário
Os meses de inverno se
aproximavam no seminário capuchinho de Údine, quando chegou Bogdan, em novembro
de 1882. Ali, o noviço aplicou-se aos estudos e fez rápidos progressos, mas,
sobretudo, dava bons exemplos.
Em 1884, foi transferido para
Bassano del Grappa, onde recebeu o hábito da ordem, com o nome de Frei
Leopoldo. Sofreu muito devido à sua débil compleição física e ao rigor do
noviciado dos capuchinhos, mas tudo enfrentou com heroísmo, tendo a alma sempre
posta no ideal das missões. Professou no ano seguinte e retomou os estudos em
Pádua, onde fez Filosofia; depois iria para Veneza, cursar Teologia.
Em junho de 1887, quando ainda
era estudante em Pádua, ouviu claramente no fundo da alma a voz de Nosso Senhor
que o convidava a ser missionário entre os ortodoxos para reconduzi-los ao seio
da Santa Igreja. A data ficou-lhe tão marcada que, meio século depois,
escrevia: “Este ano é o quinquagésimo aniversário de quando, pela primeira vez,
ouvi a voz de Deus que me chamava para rezar e promover o retorno dos
dissidentes orientais à unidade católica”.3 Para melhor compenetrar-se dessa
missão, obrigou-se por voto a cumpri-la. Estudava com afinco as línguas
balcânicas e confiava em converter aqueles povos, sobretudo por meio da devoção
a Nossa Senhora, que pretendia difundir pela palavra escrita e falada.
Tão logo recebeu a ordenação
sacerdotal, em 20 de setembro de 1890, em Veneza, pediu autorização para partir
e lançar-se na missão. Mas esta lhe foi negada, devido a seu precário estado de
saúde.
Inesperada terra de missão e campo de batalha
Deus tem misteriosos desígnios
a respeito de seus santos! Frei Leopoldo nunca pôde viajar para os Bálcãs, como
tanto havia desejado. Os verdadeiros contornos de sua missão eram outros e
foram se delineando pouco a pouco ante seus olhos: a Providência queria que ele
se sacrificasse por aquele povo separado da Igreja, sofrendo, como vítima
expiatória, um martírio interior.
O confessionário foi o
principal instrumento para a realização de tal oferecimento: nele permanecia
todos os dias mais de dez horas, às vezes doze, atendendo almas às quais
consolava, orientava e ministrava o Sacramento da Reconciliação. Jamais deixou
de mostrar-se solícito com quem o procurava, mesmo quando se tratava de pessoas
impertinentes ou quando o horário já era tardio. O pequeno espaço de sua
cela-confessionário transformou-se para ele num verdadeiro campo de batalha.
Dizia com frequência: “Devo fazer tudo só para o bem das almas, tudo, tudo
mesmo! Quero e devo morrer lutando”.4
Só no fim da vida, Frei
Leopoldo iria revelar a um irmão leigo capuchinho um esclarecedor fato ocorrido
no início de sua vocação. Certo dia, após ministrar a Sagrada Comunhão a uma
pessoa piedosa, esta lhe confidenciou: “Padre, Jesus me mandou dizer-lhe que
cada alma que o senhor assiste aqui em confissão é o seu Oriente”.5
Ele nunca pôde ser missionário
nos Bálcãs, mas exerceu uma profícua atividade apostólica sem jamais perder de
vista esse grande horizonte. Em setembro de 1914, deixou escrito este
testemunho: “O fim de minha vida deve ser procurar o retorno dos dissidentes
orientais à unidade católica, isto é, devo dirigir todas as ações de minha vida
diante de Deus, na fé e na caridade de Nosso Senhor, vítima propiciatória pelos
pecados do mundo, de modo que, no que toca à minha insignificância, minha vida
dê alguma coisa a tamanha obra, pelo mérito do sacrifício”.6
Dons de exímio confessor
Franzino, de pequena estatura, voz
fraca, Frei Leopoldo nada aparentava, do ponto de vista natural, que pudesse
atrair as pessoas. Entretanto, suas palavras simples, embebidas de amor a Deus
e ao próximo, penetravam profundamente nos corações e os transformavam.
Possuía em tão alto grau o dom
da sabedoria e do conselho que pessoas de todas as classes sociais vinham pedir
sua sábia orientação. Inclusive altos dignitários eclesiásticos o consultavam
sobre intricados problemas de suas dioceses ou funções.
Recebeu de Deus também o dom de
perscrutar os corações e disto nos dá testemunho, por exemplo, o Sr. José
Bolzonella, de Pádua, o qual frequentemente acorria a Frei Leopoldo para
receber o Sacramento da Reconciliação. Numa manhã, quando ele se ajoelhou no
confessionário, o capuchinho narrou-lhe, em pormenores, tudo quanto ele havia
feito. Vendo seu penitente profundamente impressionado, o padre concluiu,
fitando-o com amabilidade: “Fique tranquilo! Fique tranquilo e não pense mais
nisso”.7
O santo confessor demonstrava
particular zelo em reconduzir ao bom caminho os penitentes que se acusavam de
faltas contra a pureza, de modo superficial e sem manifestar arrependimento
sério, sobretudo quando se tratava de atos públicos. Reagia com severidade,
objetivando movê-los à contrição e acordá-los do seu letargo. Esse gênero de
pecados causava-lhe um verdadeiro horror, pois ele era de uma castidade
ilibada. Chegou a dizer, em sua velhice, que sentia ter ainda uma alma de
criança, dando a entender que conservara intacta a inocência batismal.
Seu trato com as almas vinha
marcado por uma extrema bondade. E se alguém manifestasse estranheza diante de
tanta afabilidade, sempre apontava para o Crucifixo, dizendo ter sido Jesus
quem lhe havia ensinado e dado o exemplo.
Pouco antes de morrer, declarou
que confessava há mais de 50 anos e não sentia remorso por ter quase sempre
absolvido o penitente, mas sim pesar pelas poucas ocasiões nas quais não pudera
fazê-lo; e examinava-se rigorosamente para saber se, nesses casos, havia feito
tudo quanto estava a seu alcance para que aquelas almas fossem tocadas pela
graça do arrependimento.
Contudo, quando necessário,
sabia manifestar uma fortaleza capaz de vencer os corações mais duros. Certo
dia, apresentou-se diante dele um pecador inveterado, alegando falsas teorias
para legitimar seus erros. Frei Leopoldo, com grande caridade, procurou
dissuadi-lo de sua má atitude. Mas quando percebeu que todos os argumentos eram
inúteis, levantou-se com o rosto inflamado de santa indignação e apontou-lhe a
porta, dizendo em tom severo: “Olhe, com Deus não se brinca; vá e morrerá no
seu pecado!”.8
Como que atingido por um raio,
o pecador caiu de joelhos aos seus pés e, debulhado em lágrimas, pediu perdão,
prometendo renunciar totalmente aos seus falsos princípios. O santo sacerdote
abraçou-o, misturando suas lágrimas às dele, e emocionado por ver a ação da
graça, disse-lhe: “Agora somos irmãos!”.
Pediu a graça de morrer combatendo
O amor enlevado à Cruz marcou a
vida de Frei Leopoldo. Além do heroico empenho no atendimento diário das
confissões, vivia em constante luta contra seu temperamento forte e impetuoso.
Também não lhe faltaram sofrimentos físicos: dores gástricas, oftalmias,
artrite deformante.
Depois da celebração do seu
jubileu de ouro sacerdotal, em 1940, seu estado de saúde piorou muito. Uma
breve melhoria permitiu-lhe voltar ao “campo de batalha”, mas pouco depois
foi-lhe diagnosticada a doença que o levaria à morte: um tumor maligno no
esôfago. A enfermidade progrediu a ponto de não lhe ser possível deglutir
alimento algum, com exceção das Sagradas Espécies, graça singular que lhe
causava imensa alegria.
Vendo aproximar-se a hora
final, Frei Leopoldo pediu a graça de morrer combatendo, e a obteve. No dia 30
de julho de 1942, levantou-se às cinco e meia da manhã e dirigiuse à capela da
enfermaria. Na véspera, apesar do seu estado precário, tinha atendido várias
confissões. Após uma hora de orações, caminhava rumo à sacristia a fim de
preparar-se para celebrar a Santa Missa, quando subitamente caiu ao solo.
Levado para o leito, recebeu a Unção dos Enfermos, ainda com inteira lucidez. O
superior do convento recitou três vezes a Ave Maria e depois a Salve Rainha. O
santo frade repetia as palavras, com voz cada vez mais fraca. Quando terminou
de dizer: “Ó clemente, ó piedosa, ó doce sempre Virgem Maria”, sua alma voou
para o Céu.
O bom pastor oferece a vida por suas ovelhas
A notícia do falecimento se
espalhou rapidamente pela cidade e aldeias vizinhas. Multidões desfilaram
diante de seu corpo e um clamor popular dizia a uma só voz: “Morreu um
santo!”.9 No dia seguinte, um imenso cortejo triunfal o conduziu ao cemitério,
entre alas de pessoas que permaneciam ajoelhadas e lançavam flores sobre o
féretro.
Em 1963, o corpo incorrupto de
Frei Leopoldo foi trasladado para uma capelinha construída ao lado de sua
Cela-confessionário. O Papa Paulo VI o proclamou bem-aventurado em 1976, e João
Paulo II o canonizou em 1983, quando se realizava o Sínodo Mundial dos Bispos,
convocado para tratar do Sacramento da Penitência; precisamente o Sacramento
que o santo capuchinho tanto amou.
As palavras do Papa, nessa
ocasião, foram muito significativas e resumem a vida de virtude heróica de São
Leopoldo: “Para todos aqueles que o conheceram, ele não foi mais que um pobre
frade, pequeno e doentio. A sua grandeza está em outra parte: em oferecer-se
como sacrifício, em doar-se, dia após dia, por todo o tempo da sua vida
sacerdotal, ou seja, por 52 anos, no silêncio, na discrição, na humildade de uma
pequena cela confessionário: ‘O bom pastor oferece sua vida pelas ovelhas’”.10
1 BERNARDI, P.E. Leopoldo Mandić– Santo
da Reconciliação. 7.ed. Padova: Violato, 2004, p.49-50.
2 Idem, p.9.
3 Idem, p.62.
4 Idem, p.37.
5 VALDIPORRO, OFM Cap., Pedro de. Não me
conheces? – Frei Leo Leopoldo: Capuchinho. 4.ed. São Paulo: Paulinas, 1958,
p.56.
6 Idem, p.55.
7 Idem, p.145
8 BERNARDI, op. cit., p.41.
9 Idem, p.82.
10 JOÃO PAULO II. Homilia na Missa de
canonização de São Leopoldo Mandić, em 16/10/1983. In: L’Osservatore Romano.
Cidade do Vaticano, 17-18 out., 1983, p.4.
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