A teologia
vivificada pelo amor
Teólogo,
espiritualista, orador, escritor e, sobretudo, santo. Este é o
perfil de São João Damasceno, cujas obras fazem sentir o frescor da
doutrina patrística oriental.
Situada aos pés do
monte Hermon, à beira do deserto da Síria, Damasco é considerada
por muitos estudiosos como a mais antiga cidade do mundo
continuamente habitada.
De origem imemorial,
sua história está repleta de vicissitudes. Treze séculos antes de
Cristo, a região foi campo de batalha entre hititas e egípcios.
Duzentos anos depois, os arameus a tornaram uma importante urbe que o
Rei Davi submeteu, fazendo-a pagar-lhe tributo (cf. II Sm 8, 5-6). No
século IV, apossou-se dela Alexandre Magno; e, depois da morte
deste, disputaram-na acirradamente o Império Selêucida e o
Ptolomaico, até cair por fim, no ano 64 a.C., em mãos romanas.
Na época de Nosso
Senhor Jesus Cristo, Damasco fazia parte da Decápolis, e pouco
depois da Ressurreição do Divino Mestre, já achamos nela um grupo
de cristãos, cuja fé motiva a viagem de Saulo de Tarso com o
intuito de persegui-los.
Piedade,
beleza e a mais pura ortodoxia
De família árabe,
mas cristã de religião e socialmente bem situada, nasceu João por
volta do ano 675, quando Damasco já se encontrava sob domínio
muçulmano. Aos trinta anos abandonou as comodidades da casa paterna
e ingressou no Mosteiro de São Sabas, situado no deserto da Judeia,
próximo de Jerusalém. Pouco depois, foi ordenado presbítero e
escolhido pelo Patriarca João de Jerusalém para pregar na Anástasis
(lugar do sepulcro de Jesus) e em outros templos da Cidade Santa. De
tal maneira brilharam sua eloquência e a segurança doutrinária que
foi cognominado Chrysorrohas (rio de ouro), nome dado às águas que,
procedentes do Antilíbano, tornavam um fecundo oásis os arredores
de Damasco.
São João Damasceno
logrou fazer uma excelente síntese da doutrina patrística usando
uma oratória de grande beleza. A influência do seu pensamento se
estendeu do Oriente ao Ocidente, onde suas obras foram objeto de
estudo por São Tomás e os escolásticos. Lutou especialmente contra
os erros dos iconoclastas, mas nas suas homilias e escritos
encontramos a refutação de muitas das heresias que assolavam as
comunidades cristãs da época.
Após alcançar uma
avançada idade — calcula-se que tenha morrido aos 74 anos —
entregou sua alma a Deus no ano 749, provavelmente em 4 de dezembro.
Foi declarado doutor da Igreja pelo Papa Leão XIII, em 19 de agosto
de 1890. Como já foi apontado, saber unir piedade, beleza literária
e a mais pura ortodoxia doutrinária foi um dos grandes méritos de
São João Damasceno. Ele conseguiu, com um brilho verdadeiramente
excepcional, aliar o Verum, o Bonum e o Pulchrum (Verdade, Bondade e
Beleza) numa linguagem tão acessível que deleita e ao mesmo tempo
ensina as mais elevadas verdades sobre Nosso Senhor Jesus Cristo e
sua Mãe Santíssima.
A obra deste Padre
da Igreja é tão vasta, seus escritos de tal modo magistrais na
exposição e ricos em conceitos teológicos, cristológicos,
apologéticos, pastorais e mariológicos, que selecionar alguns
excertos para ilustrar este artigo sem ultrapassar seus curtos
limites torna-se um árduo desafio.
Sólida
doutrina cristológica
Valendo-se de uma
terminologia perfeita do ponto de vista teológico, São João
Damasceno exalta em suas homilias os mistérios de Nosso Senhor e
refuta os erros cristológicos correntes naqueles tempos. Afirmando a
plena união do Verbo Encarnado com Deus Pai e Deus Espírito Santo,
desqualifica o monofisismo, que pretende ver a natureza humana de
Cristo absorvida pela divindade; o nestorianismo, que considera Nosso
Senhor como uma pessoa humana na qual o Verbo haveria estabelecido
sua morada como num templo ou mansão, sem assumir de fato a natureza
do homem; ou o monotelismo que nega a existência da vontade humana
n’Ele.
Assim, por exemplo,
em sua homilia sobre a Transfiguração do Senhor, ecoam os
ensinamentos antimonofisistas do Concílio de Calcedônia, realizado
em 451: “Como é possível que coisas incomunicáveis se misturem e
permaneçam sem confundir-se? Como podem se unir uns elementos
inconciliáveis, sem perder as características próprias da
natureza? Precisamente isto é o que se efetua na união hipostática,
de maneira tal que os elementos que se unem formam um só ser e uma
só pessoa, mas conservando a unidade pessoal e a duplicidade de
naturezas, numa diversidade indivisível e numa união sem confusão,
que se realiza mediante a encarnação do Verbo imutável e a
incompreensível e definitiva divinização da carne mortal. Como
consequência dessa permuta, dessa recíproca comunicação sem
confusão e da perfeita união hipostática, os atributos humanos vêm
a pertencer a Deus e os divinos chegam a pertencer a um homem. Um só
é, com efeito, aquele que, sendo Deus desde sempre, depois Se faz
homem”.1
Com igual fé e
profundidade teológica, o santo de Damasco não teme abordar um tema
pouco tratado por teólogos mais recentes: o São João Damasceno
logrou fazer uma excelente que aconteceu com a alma de Cristo após
sua morte? A divindade separou-se da alma humana e do corpo do
Senhor?
Explica ele: “Embora
a alma santa e divina tenha se separado do corpo incontaminado e
vivificante, a divindade do Verbo não se separou de nenhum desses
dois elementos, ou seja, nem do corpo nem da alma, por efeito da
indivisa união hipostática das duas naturezas, que se realizou na
concepção efetuada no seio da santa Virgem Maria, Mãe de Deus.
Assim resulta que, inclusive ao produzir-se a morte, continua havendo
em Cristo uma só pessoa, que é o Verbo divino, e depois da morte do
Senhor, nesta pessoa seguem subsistindo a alma e o corpo”.2
Homilias sobre Nossa
Senhora
Não são menos
belas e esplendorosas as homilias do Damasceno sobre
Nossa Senhora. Elas nos mostram como a devoção à Santíssima
Virgem vem desde os primeiros tempos do Cristianismo, como o amor a
Ela era muito patente já na época de Santo Inácio de Antioquia,
que foi discípulo do Apóstolo João, de São Justino (†165) e de
Santo Irineu (†202).
Nessas homilias se
encontram em germe os elementos doutrinários que, séculos depois,
facilitaram a proclamação de diversos dogmas marianos, como o da
Imaculada Conceição e o da Assunção da Virgem Maria em corpo e
alma aos Céus.
Cabe ressaltar
nelas, além da profundidade teológica, o entusiasmo e o amor de seu
autor à Santíssima Virgem. “La raison parle, mais l’amour
chante” (a razão fala, mas o amor canta), escreveu o romancista
Alfred de
Vigny. Em São João Damasceno, a razão disserta e o amor canta, ao
tratar d’Aquela que foi achada digna de ser a Mãe do Redentor.
Eis como ele entoa
louvores à virgindade perpétua de Maria: “Ó Joaquim e Ana, casal
bem-aventurado e verdadeiramente irrepreensível! Vós levastes uma
vida agradável a Deus e digna d’Aquela de quem vos tornastes pais.
Tendo vivido com pureza e santidade, gerastes a joia da virgindade,
ou seja, Aquela que foi virgem antes do parto, virgem no parto e
virgem depois do parto. Aquela que é a Virgem por excelência,
virgem para sempre, virgem perpétua no espírito, na alma e no
corpo”.3
E com quanta beleza
literária, servindo-se de figuras extraídas do Antigo Testamento,
nos ensina ser Maria Mãe de Deus: “Ó Virgem, claramente
prefigurada na sarça, nas tábuas escritas por Deus, na arca da lei,
no vaso de ouro, no candelabro, na mesa e na vara de Aarão que
floresceu. De Vós, com efeito, procede a chama da divindade, o Verbo
e manifestação do Pai, o maná suavíssimo e celestial, o nome
inefável que está acima de todo nome, a luz eterna e inacessível,
o celeste pão de vida. De Vós brotou corporalmente aquele fruto que
não é resultado do trabalho de nenhum cultivador”.4
Essa capacidade de
unir doutrina, poesia e fervor, é exemplo típico do que Urs Von
Balthasar chama “teologia de joelhos”, em oposição à “teologia
de escritório”, tão habitual nos dias atuais.5
Prenunciador
do dogma da Assunção
São João Damasceno
comparte uma opinião generalizada entre os Santos Padres, de que há
uma estreita relação entre a virgindade perpétua de Maria e a
incorrupção de seu corpo virginal depois da morte. Ao ponto de que,
em trechos como os mencionados a seguir, ele prenuncia o dogma da
Assunção de Maria ao Céu, em corpo e alma.
“Convinha que
aquela que no parto manteve ilibada virgindade conservasse o corpo
incorrupto mesmo depois da morte. Convinha que aquela que trouxe no
seio o Criador encarnado, habitasse entre os divinos tabernáculos.
[...] Convinha que a Mãe de Deus possuísse o que era do Filho, e
que fosse venerada por todas as criaturas como Mãe e Serva do mesmo
Deus”.6
Essa passagem do
Damasceno foi reproduzida literalmente por Pio XII ao definir o Dogma
da Assunção, na Constituição Apostólica Munificentissimus Deus.
Nela, o Papa elogia também a “veemente eloquência” desse santo
“que entre todos se distingue como pregoeiro dessa tradição”.7
“São
Tomás do Oriente”
São João Damasceno
dizia de si mesmo que nada possuía de original, apenas compilava
trechos de antigos escritores. No entanto, a luz de seu pensamento
atravessou os séculos e ilumina até hoje os horizontes dos estudos
teológicos.
O próprio Papa
Bento XVI, tomando-o como tema da Audiência Geral de 6 de maio de
2009, põe em realce a originalidade de sua argumentação em defesa
do culto às imagens e às relíquias dos santos e o qualifica de
“personalidade de primeira grandeza na história da teologia
bizantina, um grande doutor na história da Igreja universal”.
São João Damasceno
foi adequadamente cognominado “o São Tomás do Oriente”. Feliz
equiparação porque esses dois luminares da Igreja se assemelham a
um título muito superior: ambos refulgem pela santidade de vida
tanto ou mais que pela ciência. Deles se pode bem dizer: “Quando o
amor vivifica a dimensão orante da teologia, o conhecimento,
adquirido através da razão, se dilata. A verdade é procurada com
humildade, acolhida com enlevo e gratidão: numa palavra, o
conhecimento cresce somente quando se ama a verdade. O amor se torna
inteligência e a teologia se torna autêntica sabedoria do coração,
que orienta e sustenta a fé e a vida dos fiéis”.8
1SAN JUAN DAMASCENO.
Homilía sobre la Transfiguración. In: PONS, Guillermo (Intr. e
notas). Homilías Cristológicas y Marianas. Madrid: Ciudad Nueva,
1996, p.24. 2 SAN JUAN DAMASCENO. Homilía sobre el Sábado Santo.
In: Op. cit., p.103.3 SAN JUAN DAMASCENO. Homilía sobre la
Natividad. In: Op. cit., p.125. 4 SAN JUAN DAMASCENO. Homilía sobre
la Dormición de María. In: Op. cit., p.154. 5 Cf. BENTO XVI.
Discurso aos monges reunidos na abadia de Heiligenkreuz, 9/9/2007. 6
Idem, ibidem. 7 Cf. Munificentissimus Deus, 1/11/1950. 8 Audiência
Geral de 28/10/2009.
Nenhum comentário:
Postar um comentário