Para imitar o Divino Redentor, deve o santo ser
sempre um derrotado? Ao comentar alguns dos extraordinários feitos de Santo
Abércio, Dr. Plinio responde a esta pergunta e delineia o perfil do autêntico
católico, mesmo quando sobre este se abate a derrota.
Tenho
em mãos uma ficha a respeito de Santo Abércio, bispo e confessor, extraída de
uma obra do Padre Emmanuel D’Alzon, fundador dos agostinianos assumpcionistas.
Destruindo ídolos e
exorcizando possessos
Numa zona da atual Turquia,
elevava-se outrora a cidade de Hierápolis, dedicada a Apolo e evangelizada por
São Paulo. Ao subir ao poder Marco Aurélio, em 161, era Bispo de Hierápolis,
Abércio, já conhecido por suas virtudes. Um acontecimento, contudo, ia tornar
esse Bispo um nome particularmente famoso. O novo Imperador incrementou o culto
aos ídolos e, como Hierápolis era cidade consagrada, cresceu o número de
procissões aos deuses pagãos.
Abércio sofria muito com isso. E
certa noite, enquanto dormia, foi despertado por um Anjo que lhe entregou uma
vara e lhe disse:
— Levanta-te, é hora! Com essa vara
vai derrubar os falsos deuses que iludem o povo.
Sem delongas, ele correu ao templo,
agora silencioso, e com seu instrumento lançou ao chão Apolo, Hércules, Diana,
Vênus, e os estraçalhou.
Os sacerdotes e guardas acorreram,
por causa do tremendo ruído, e viram, surpresos, o Bispo.
— Ide, afirmou ele, dizei aos
magistrados e ao povo de Hierápolis que seus deuses, empanturrados de carne e
embriagados de vinho, rolaram uns sobre os outros e se fizeram em mil pedaços.
Juntai agora esses destroços, que eles talvez sirvam para algum entulho!
E retirou-se sem que ninguém
ousasse tocá-lo. Foi dar aulas a alguns discípulos, como fazia todas as manhãs.
Entretanto, vozes começaram a se
ouvir pedindo sua morte. Pagãos furiosos o procuraram e, ao encontrá-lo,
avançaram para exterminá-lo. Mas foram detidos por três possessos, famosos na
cidade, que se atiraram ante o Bispo, mordendo-se e uivando. A multidão
deteve-se, fixando os olhos em Abércio, cuja nobreza e doçura a enchia de
admiração, ao mesmo tempo em que as contorções daqueles infelizes a
aterrorizava.
O Bispo ergueu as mãos e disse:
— Deus Todo-Poderoso, Pai de Jesus
Cristo, cuja misericórdia ultrapassa infinitamente a malícia dos homens, eu Vos
suplico: livrai esses infortunados das cadeias de Satanás para que todo esse
povo Vos reconheça como Deus verdadeiro.
Com seu bastão, já vencedor dos
ídolos, tocou os três possessos, que caíram inanimados aos seus pés. Ele os
ergueu salvos e os enviou para suas casas.
Ante esse espetáculo, a multidão a
uma só voz gritou: — O Batismo! O Batismo! O Deus de Abércio é o verdadeiro
Deus!
O exército salvo por um milagre
Santo Abércio teve sua fama
difundida por toda a Ásia após esse fato. De regiões longínquas vinham
procurá-lo. Possuindo o dom dos milagres, várias vezes favoreceu
maravilhosamente a família de Marco Aurélio, inclusive libertando sua filha, a
Princesa Lucila, de uma possessão diabólica. Era estimado pelo Imperador que,
entretanto, nunca se converteu.
No fim da vida, Santo Abércio
recebe uma missão muito especial, que foi a de consolar os cristãos na Síria,
então muito perseguidos. Após exaustivas viagens, algumas igrejas quiseram
fazer-lhe doações em dinheiro. Como ele recusasse, os cristãos não se
conformaram em não lhe manifestar concretamente sua gratidão. Um católico de
família ilustre propôs, então, prestar ao santo um outro tipo de homenagem. Dar
a Abércio o título de “Igual aos Apóstolos”. Acrescentaram-lhe então, o nome
grego de Isapóstolos.
É interessante acrescentar que
tendo Santo Abércio recebido um aviso sobre sua morte, escolheu sua sepultura e
fez gravar em mármore uma inscrição bem detalhada. Ao ser descoberto esse
túmulo, no século XIX, tais dizeres comprovaram vários fatos históricos, que
historiadores céticos haviam negado. Um dos mais interessantes é o que se refere
a um acontecimento da vida de Marco Aurélio:
Seu exército, cercado num
desfiladeiro, ia perecer de sede e fome. Seus soldados, torturados, chegavam a
abrir as veias e beber o próprio sangue. Marco Aurélio, que então perseguia os
cristãos, teve a ideia de recorrer ao verdadeiro Deus. Procurou por soldados cristãos
e, indignado, verificou que eram muito numerosos, principalmente porque ali
havia toda uma legião cristã, de Melitene. Os soldados invocaram o Todo-Poderoso
e, nesse momento, relâmpagos caíram como chamas sobre os bárbaros, enquanto uma
chuva benfazeja reanimou os romanos. Marco Aurélio deu a essa legião de
Melitene o nome de “Legião Fulminante”. O senado romano, na coluna que mandou
erguer em homenagem ao fato, atribui o milagre a Júpiter.
Erro muito grave: julgar
que todo santo é sempre um derrotado
Nota-se
nessa ficha a resposta a uma pergunta que a leitura da vida de tantos santos
suscita.
Com
efeito, os hagiógrafos se comprazem, e a muito O exército salvo por um milagre
justo título, em mostrar que o santo é um sofredor, compreende que essa Terra é
um vale de lágrimas, a vida é o caminho da cruz e que é
preciso levar a cruz até o alto do Calvário, seguindo Nosso Senhor Jesus
Cristo. E por causa disso, na história dos santos, muitas vezes acentuam com especial
ênfase o lado do sofrimento. E como a derrota é um dos grandes sofrimentos
desta vida, naturalmente eles destacam também as derrotas.
E
disso se depreende, de um modo geral — para um espírito que não esteja
suficientemente advertido —, a ideia de que o santo é necessariamente um
derrotado. E que não ser sempre um derrotado, esmagado, não estar sempre por
baixo, não sofrer de uma espécie de inferioridade diante do adversário, é não
ser verdadeiramente santo.
De
onde nasce o tipo de católico amolecido e sentimental, que tem uma espécie de
escrúpulo de se sentir triunfante, vitorioso, que julga uma impiedade alguém ser
combativo, inclusive em relação ao demônio.
Na
realidade, muitas vidas de santos são uma série de derrotas; outras, embora não
o sejam, têm na derrota, entretanto, sua característica mais sublime. De fato,
na vida do católico nesta Terra, muitas vezes a aceitação do insucesso se impõe
como um modo de se unir a Nosso Senhor Jesus Cristo.
Mas
daí se tirar a conclusão de que é inerente à santidade estar sempre derrotado,
em posição de inferioridade, há um erro muito grave. A começar pelo fato de que
o verdadeiro santo, mesmo quando perseguido, derrotado, não sofre nenhuma forma
de complexo, e muito menos ainda o de inferioridade em relação ao adversário. O
modelo de todos os santos é Nosso Senhor Jesus Cristo, e Ele morreu sobranceiro
e divinamente majestoso no alto da Cruz.Um homem que esmaga a impiedade.
Mas
há certas vidas de santos em que esse sentido da vitória, do triunfo, se realça
de uma maneira particular.
É
o que podemos notar de um modo sensível na vida extraordinária desse santo.
Vemos que ele tem todas as qualidades de um homem habitualmente triunfante, e
que esmaga a impiedade com a sua virtude, sua coragem, levando a impiedade de
roldão.
Notem
o primeiro fato interessante: ele sofria muito pelo fato de que havia na cidade
na qual morava, Hierápolis, um grande número de ídolos, e por isso ele rezou
muito a Deus. Ele não sofreu porque lhe faltava algo na sua vida particular.
Nem sequer a ficha trata da existência particular dele, mas da causa de Deus em
Hierápolis, e mostra como ele não encontrava alegria nem satisfação porque a
glória do Altíssimo estava calcada aos pés nessa cidade. Remédio: sentindo a
desproporção entre os ídolos que ele quer abater e as suas próprias forças, o
santo recorre à oração. E através desta vem a solução.
Ele
é acordado por um Anjo de quem recebe uma vara milagrosa. Vai ao templo, que
está naturalmente vazio durante a noite, e toca com a vara os ídolos que estão
eretos em alguns altares. Os ídolos rolam pelo chão e fazem um barulho tremendo.
O que se concebe, porque esses ídolos eram muito maiores do que o tamanho
natural de um homem, e sempre esculpidos em pedra.
Podemos
imaginar o barulho que haveria de fazer, numa pequena cidade romana do tempo de
Marco Aurélio, durante a noite, quatro ídolos grandes que caem no chão com
tanta força que se espatifam. Entram os sacerdotes, e então há cenas que
mereceriam figurar num teatro.
Filme sobre Santo Abércio
Vou
dizer mais: se algum dia devêssemos fazer um filme ou espetáculo de televisão,
a vida de Santo Abércio seria o tema.
Primeira
cena: À noite, um templo de beleza clássica, no qual penetra um pouco de luar e
uma coruja ou morcego esvoaça no recinto. Surge Abércio sozinho, com grande
túnica branca, manto lançado sobre os ombros, segurando na mão a vara e
rezando. Ele para no limiar do templo e olha com santo ódio. Depois diz: “Em
nome de Deus Todo-Poderoso e para a glória de Maria Santíssima...” Caem os
quatro ídolos e se espatifam no chão.
Imaginem
a majestade e a dignidade do gesto! Os ídolos tinham tanta massa que uma forte
pancada não os derrubaria, mas por uma força sobrenatural eles vacilam e caem.
E o olhar de Abércio, vendo os ídolos se espatifarem...
Segunda
cena: Na vaga claridade do amanhecer, vêm correndo ao templo os sacerdotes, com
tochas, e encontram Abércio calmo, que os enfrenta cara a cara.
Pasmos,
eles perguntam:
—
Que fez este homem? Como ele se justificará deste sacrilégio?
Abércio,
então, se justifica daquele “sacrilégio” por uma “blasfêmia”:
—
Juntem este entulho e podem jogar no lixo! São deuses empanturrados de carne e
vinho. Não valem nada! Vejam se ao menos para o lixo servem...
E
o santo sai lentamente, enquanto os sacerdotes ficam olhando para aquele homem
que se retira como uma aparição.
É
um prenúncio do grande triunfo de Constantino, uma espécie de antegozo da época
em que o paganismo vai ser esmagado definitivamente, e será instaurado o Reino
de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Depois
disso, o que ele faz? Nada que seja gabar-se por seus próprios feitos. Vai com
toda a calma retomar sua função de professor; senta-se e começa a dar aula para
os alunos.
Representou a vitória e a
glória de Deus na Terra
Fato
curioso, a calúnia começa a trabalhar. Alguns dos alunos, para os quais os
sacerdotes haviam contado o ocorrido, difamam Abércio. O ódio cresce em torno
dele e, talvez, através das janelas da sala em que lecionava, ele ouvisse
murmúrios e sinais desse ódio.
Sereno,
tranquilo, terminada a aula, ele sai e defronta-se com a multidão. Podemos
imaginar o que é uma população trabalhada pela calúnia, efervescente, com
alguns bruxos pelo meio:
—
Pega, é aquele homem! Derrubou os ídolos! Onde já se viu?!
E
Abércio, calmo, sobranceiro:
—
O que é?
O
povo olha para ele, e é tal a superioridade, a maravilha, a harmonia da
natureza e da graça, sobretudo uma tal plenitude de superioridade da graça que
se encontrava no santo, que todos ficam pasmos.
Alguns
procuram ainda sublevar a multidão:
—
Apedreja, apedreja!
Mas
outros respondem:
—
Fiquem quietos, não façam barulho! Vamos ouvir o que ele tem a dizer.
Cheios
de raiva, os caluniadores veem a população dispersar-se lentamente, comentando:
—
Realmente, Abércio é um grande homem! Ele nos deteve a todos pelo espetáculo de
sua superioridade! Nele há qualquer coisa de celeste, a qual vale mais que
todos os nossos deuses.
E
o feito de Abércio fica famoso. Depois de Deus ter querido que tantos morressem
como mártires, de um modo infamante, o Altíssimo quis que esse santo
representasse a vitória e a glória d’Ele na Terra.
Com
Santo Abércio, a Igreja alcança a sua primeira vitória sensível.
Depois
disso, a fama dele se espalha por toda a Ásia e chega aos ouvidos do Imperador,
cuja filha estava possessa. E o Imperador deve ter ouvido falar daqueles três
possessos libertos por Santo Abércio. Cena também lindíssima: Durante aquela
confrontação com o povo, ele expulsa os demônios como quem manda embora lacaios
asquerosos, ou como quem condena ao cárcere demagogos infectos.
O
Imperador manda pedir a Santo Abércio que cure a Princesa. E ele a curou.
Temos,
então, a confrontação deste grande santo não mais com a população, mas com
Marco Aurélio, considerado um pináculo da sabedoria romana e o receptáculo de
todos os ensinamentos morais dos grandes mestres do paganismo.
Vitorioso, fulminante e
humilde
Acontece
que Marco Aurélio, dentro dessa manifestação da veracidade da Religião
Católica, não se converte e mostra bem o que ele é: um pagão empedernido no
paganismo e de má-fé.
Entretanto,
há uma coisa ainda mais digna de nota e que se dá com a “Legião Fulminante”, a
qual se encontrava num estado verdadeiramente desesperador. Os legionários
estavam na iminência de morrer de sede e fome, e chegaram a romper suas veias
para beberem o próprio sangue. Pedem o auxílio de Santo Abércio, em nome de
quem acontece um milagre: há, de um lado, uma intempérie que derrota o
adversário e, de outro, uma chuva benfazeja que cai sobre a legião, a qual
recebe assim a água necessária para continuar adiante.
Marco
Aurélio e o Império Romano deveriam considerar que a legião era fulminante?
De
fato haviam caído raios sobre o adversário. Mas quem os fulminara não fora a
legião — nem tinham raios nas mãos para fulminar! —, e sim Santo Abércio.
Eles
deveriam, portanto, ter chamado Abércio “o Santo Fulminante”, que passou a vida
inteira fulminando.
Pelo
contrário, a maldade do paganismo: para a legião que ia morrer miseravelmente
como um bando de ratos, se não fosse o santo, eles levantam uma coluna no Fórum
romano em louvor de Júpiter.
Com
isso Santo Abércio passa para a História mostrando o paganismo desmascarado, e
a pequenez de espírito do mundo pagão, mesmo no que ele tinha de mais
grandioso, isto é, o Império e o exército romano. Ele passa fulminando todas essas
grandezas pagãs, e vai diretamente para a honra dos altares.
Nós
deveríamos chamá-lo de “Santo Abércio, o Fulminante”. Sempre que, em nossa
vida, queiramos ser fulminantes, à maneira deste santo, mas ao mesmo tempo
humildes, atribuindo toda a glória a Nossa Senhora, saibamos recorrer a Santo
Abércio!
Fica,
assim — tantos séculos depois —, oferecida à fronte majestosa dele esse
cognome, deixando de lado a paródia ridícula da “Legião Fulminante”. Para
finalizar este comentário, eu diria: “Santo Abércio, fulminante e humilde,
tornai-nos fulminantes e humildes como vós!”
Plinio Correa de Oliveira -Extraído
de conferência de 17/4/1972
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