Na Cidade
Eterna , avançava para
seu final
a noite calma
e silenciosa . Após
mais uma jornada
na qual conduzira com
valor a Barca
de Pedro, o Sumo Pontífice
descansava por algumas horas , para retomar
seu posto
aos primeiros clarões
da aurora .
O “pentecostes ”
de São Filipe
A Santa Igreja atravessava as conturbações religiosas do século XVI. Preparavam-se em
Trento as seções do grande
Concílio e o mundo
cristão vivia uma encruzilhada
histórica , de desfecho
pouco previsível. Posto
nessa situação , Filipe erguia do fundo daquelas úmidas e escuras galerias
uma prece que
se confundia com o clamor
dos mártires : “Enviai, Senhor ,
o vosso Espírito ,
e renovareis a face da Terra”.
Peculiar vocação
Filipe Romolo Néri nasceu num bairro
popular de Florença, a 22 de julho de 1515. Aos 18 anos ,
seu pai ,
Francesco Néri, o enviou à casa de um tio , em San Germano ,
a fim de aprender
o ofício de comerciante .
Da bela cidade
onde nascera, que
deixava para sempre ,
haveria de conservar como
um tesouro a formação religiosa
recebida dos dominicanos do Convento de São Marcos : “Tudo quanto
tenho de bom , recebi dos padres de São Marcos ”,3 repetirá ao longo da vida .
O problema de
uma vocação “oficial ”
não se pôs para
este jovem ,
já decidido
a entregar-se a Deus . Não quis ser padre , nesse então, nem ir para
um convento,
nem integrar qualquer
instituição eclesial da época . Entretanto ,
dificilmente encontraremos entre o clero , nos claustros ou confrarias daquele século ,
pessoa mais
devota do que ele .
Desde sua
juventude , Filipe teve a característica de escapar
dos esquemas habituais ,
para mostrar
que a única
regra perfeita
em si
mesma é a caridade ,
e nenhuma disciplina tem valor quando se
afasta da obediência a Jesus Cristo .
Tais anos de estudo foram altamente fecundos, a ponto
de lhe valerem para o resto da vida e darem-lhe a justificada fama de possuir
uma sabedoria em nada inferior à dos maiores teólogos que esta época conheceu.
São Tomás de Aquino será para sempre seu mestre; a Suma Teológica, seu livro de
cabeceira.
Difundia a alegria
da santidade
Dotado de grande atrativo
pessoal , Filipe Néri difundia ao seu redor a alegria da santidade ,
perto da qual
a satisfação efêmera
do pecado não
passa de grotesca
caricatura . Todos
queriam estar perto
dele e receber o transbordamento
de seu amor
a Deus . Os jovens
se comprimiam ao seu redor , para
ouvi-lo falar das coisas
do Céu e brincarem juntos ,
em ruidosa
algazarra . A um
adulto ranzinza
que reclamava do barulho ,
respondeu com um
só argumento :
“Eles não
cometem nenhum pecado !”.6 Com efeito , no inovador método
de evangelização desse apóstolo leigo ,
tudo era
permitido , menos
o pecado e a tristeza .
Assim era a amizade
desses santos ...
Lançando-se num incansável apostolado
junto aos leitos
dos doentes , Filipe livrou do desespero e conduziu à morte
santa muitos
moribundos . No ano
de 1548 fundou, juntamente com seu confessor , Persiano Rosa ,
a Confraria da Santíssima
Trindade , destinada a atender os enfermos
e peregrinos .
Admirado pela legião de pessoas que ,
movidos por suas
palavras , abraçavam a vida consagrada, Santo
Inácio o cognominou de “o Sino ”, dando a
seguinte explicação :
“Assim como
um sino
de paróquia , que
chama todo
mundo para
a igreja e permanece no seu lugar , este homem
apostólico faz os outros entrarem na vida religiosa
e permanece de fora ”.7 Em contrapartida ,
Filipe — que se sentia chamado para suscitar religiosos , mas
não para
ser um
deles — manifestava grande entusiasmo pelo
convertido de Manresa; chegou a afirmar que nunca
contemplava sua fisionomia
sem vê-lo resplandecente
como um
Anjo de luz . Assim
era a amizade
de tais santos !
“Roma será a tua Índia ”
As cartas do Apóstolo
do Oriente estavam na ordem do dia , nos ambientes eclesiásticos romanos .
Filipe reunira em torno
de si um
núcleo de discípulos
mais próximos
para auxiliá-lo no apostolado
— os futuros sacerdotes
da Congregação do Oratório ,
que ele
fundaria em 1575 —, com
os quais comentava as narrativas vindas
da Índia , lamentando-se: “Que lástima
existirem tão poucos
operários para
recolher semelhante
colheita ! Por
que não
vamos também nós
ajudá-los?”.8
A peregrinação das sete igrejas
O programa da
“peregrinação” começava na Basílica de São Pedro, onde, após a leitura
espiritual, fazia-se uma exposição doutrinária. Os participantes meditavam,
comentavam, e Padre Filipe tirava a conclusão. Em seguida, todos se levantavam
e se dirigiam para a Basílica de São Paulo, cantando hinos e salmos em compenetrada
devoção. Ali chegando, ouviam uma nova conferência sobre a História da Igreja,
a vida dos santos ou a Bíblia. E assim prosseguiam até o meio dia, quando
assistiam à Missa e comungavam na Igreja de São Sebastião ou na de Santo
Estevão.
Em seguida, servia-se
uma refeição nos jardins da redondeza, sempre animada pela contagiante alegria
de São Filipe. A “peregrinação” recomeçava com novo cortejo musical, passando
por outros templos veneráveis. O número de conversões ultrapassava todas as
expectativas.
Membros de importantes
famílias, como a dos Médici e a dos Borromeu, estiveram, lado a lado, com
crianças órfãs e humildes artesãos nesse exercício que, por seu fervor, censurava
os cristãos tíbios e ao mesmo tempo os conclamava. Poderemos contar até mil
pessoas peregrinando juntas num mesmo dia, entre elas quatro futuros papas — Gregório
XIII, Gregório XIV, Clemente VIII e Leão XI — e o genial compositor Giovanni Pierluigi da Palestrina. São Felipe, porém,
dava pouca importância aos cargos e talentos, se discernia nas almas a fealdade
do pecado. Ele cumpria sua missão de purificá-las e torná-las humildes, quaisquer
que fossem.
Ao cair da tarde,
findava a meditação na Basílica de Santa Maria Maior, todos voltavam para casa
carregados de bons propósitos e, o que é mais importante, com força para
cumpri-los.
Santas peripécias
Entre os
historiadores que retrataram a figura deste insigne Santo, alguns o descreveram
com traços inexatos, como se ele fosse um comediante, interessado apenas em
despertar o riso com seus ditos jocosos. Na verdade, a alegria deste varão
sobrenatural provinha de sua união com Deus, do sentir em seu interior a
presença consoladora do Espírito Santo e poder comunicá-la ao mundo. Melhor que
ninguém, conhecia a imensa riqueza que significa a posse do estado de graça,
bem preciosíssimo, em comparação com o qual nada tem valor. A consideração dos
mistérios divinos o cumulava de imensa felicidade, e desta brotava a
peculiaridade de sua atividade evangelizadora.
Seus métodos
pitorescos e cheios de vivacidade, ele os empregava com muito critério e na
hora certa, sempre visando extirpar ou ridicularizar o erro, conduzir à virtude
e, por vezes, ocultar sua santidade ou seus dons sobrenaturais. Assim, por exemplo,
se um penitente omitia na confissão algum pecado, ele dizia: “Falta tal
pecado”. Mas se alguém lhe perguntasse: “Como sabes que cometi também esse
pecado?”, sua resposta seria: “Pela cor do teu cabelo!”.10
Evitava assim revelar o dom de discernimento
dos espíritos com o qual a Providência o dotara.
Filipe obtinha de
Deus o favor de muitos milagres, que o povo não deixava de relacionar com a
eficácia de suas preces. Para evitar isso, ele arranjou uma grande bolsa, onde
afirmava estarem preciosas relíquias. Tocava os enfermos com ela, e quando
algum se curava, atribuía o fato ao poder das relíquias. Esse argumento
convenceu a muitos, até o dia em que se fez uma grande descoberta: a sacola
estava vazia!
Em certa ocasião,
dois padres do Oratório tiveram um sério desentendimento e não queriam se
reconciliar. Filipe chamou-os à sua presença e, em nome da santa obediência,
mandou cada um deles cantar e dançar uma música folclórica para o outro. Com
esse inusitado espetáculo, operou-se a reconciliação.
Numa “peregrinação às
sete igrejas”, São Felipe notou a presença de certa dama da nobreza que
ostentava um aparatoso vestido, joias e imenso penteado. Percebendo não estar a
senhora tão preocupada com as coisas de Deus quanto com sua aparência pessoal,
o Santo pendurou-lhe no nariz seus próprios óculos. O público estalou em
sonoras risadas. Ela entendeu a lição e terminou com devoto recolhimento o
exercício começado com frivolidade.
Poderíamos
multiplicar indefinidamente o relato de episódios como estes, todos
surpreendentes, cheios de candura e de presença de espírito.
“Eis a Fonte de toda a minha
alegria!”
São Filipe Néri
deixou este mundo aos 80 anos. Segundo o Cardeal Angelo Bagnasco, viveu numa
época na qual “a Igreja conheceu um inaudito florescimento — seria
melhor dizer uma ‘verdadeira concentração’ — de santos e santas que, por número
e qualidade, dificilmente se encontra na História da Igreja”.11 Nesse contexto, seu papel não foi pequeno.
Seu amor à Santa Igreja, sua entranhada
devoção à Santa Missa e à Santíssima Virgem, somados à disposição de servir o
próximo, produziram copiosos frutos. Sofreu o inenarrável por causa de uma
frágil saúde, perseguições e invejas, sem por isso perder o sorriso, quase
sempre mantido com heroísmo. No dia de sua morte, 26 de maio de 1595, ele ainda
celebrou Missa, atendeu várias confissões e manteve com os padres do Oratório umas
últimas horas de convívio. Ao receber o Viático, pronunciou estas palavras,
resumitivas de sua existência: “Eis a Fonte de toda a minha alegria!”.12
A Congregação por ele fundada, inovadora
sob muitos aspectos, assumiu a missão de continuar sua obra baseada na
caridade, isenta de rígidas normas que poderiam cercear uma atividade
evangelizadora a ser exercida no meio do mundo, em benefício das almas imersas
nas preocupações do mundo.
Conservam-se ainda hoje, como eloquentes
testemunhas da “pentecostes” de São Filipe, suas duas costelas arqueadas: uma
no Oratório de Roma e a outra no de Nápoles. Essas preciosas relíquias parecem
proclamar a seus filhos espirituais e a todas as almas chamadas à atividade
apostólica: “Os homens que deixam seu coração moldar-se pela ação do Espírito
Santo são os que verdadeiramente colaboram para renovar a face da Terra”.
Revista Arautos do Evangelho n.101. mai 2010
1 CAPECELATRO, CO, Alfonso. The life of Saint Philip
Néri, Apostle of Rome. 2.ed. London: Burns & Oates, 1894, p.127.
2 GUÉRIN, Paul . Le
petit bollandistes. 7.ed. Paris: Bloud et Barral, 1876, v.VI, p.210.
3 PRODI, Paolo. Filipo
Néri. In: Il grande libro dei santi.
San Paolo: Cinisello Balsamo, 1998, v.I, p.684.
4 DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja
da Renascença e da Reforma – A Reforma Católica . São
Paulo: Quadrante , 1999, p.141.
5 Idem , ibidem .
6 GUÉRIN. Op. cit., p.213.
7 Idem , p.212.
8 GUÉRIN. Op. cit., p.213.
9 GALLONIO, CO, Antonio.
The life os Saint Philip Néri. San
Francisco: Ignatius, 2005, p.57.
10 DANIEL-ROPS, Henri.
Op. cit., p.140.
11 BAGNASCO, Angelo. Testimonianze.
In: Annales Oratorii, Roma: 2007, n.6.
12 GUÉRIN. Op. cit., p.219.
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