Em sua primeira carta
aos Coríntios, o Apóstolo assinala ser a linguagem da Cruz de Cristo “loucura
para os que se perdem” (I Cor 1, 18). Pois o homem natural não aceita as coisas
do Espírito de Deus, sendo para ele desatinos (cf. I Cor 2, 14).
Ora, muitas vezes, em
sua sabedoria divina, o Paráclito pede tomar atitudes apresentadas aos olhos
humanos como desvarios, exigindo uma submissão a Deus sem reservas e um completo
esquecimento de si mesmo. Bem exprime esta realidade a piedosa súplica feita,
em uma conhecida Consagração ao Espírito Santo: “Que meu amor a Jesus seja
perfeitíssimo, até chegar à completa alienação de mim mesmo, àquela celestial
loucura que faz perder o senso humano de todas as coisas, para seguir as luzes
da fé e os impulsos da graça”.1
Foi justamente essa
generosidade de alma, limítrofe ao desconcertante, pedida pela Providência a um
jovem português chamado João Cidade. Após uma vida cheia de aventuras, sempre à
busca de um ideal, encontrou Jesus nos mais necessitados e, com o coração
apaixonado por Cristo, fez-se de “louco” pelos enfermos, pobres e desvalidos.
Fuga do lar paterno
De sua infância muito
pouco se conhece. Nasceu no Alentejo, na vila de Montemor-o-Novo, em 8 de março
de 1495, filho único de André Cidade e Teresa Duarte. Nesse lar modesto e
profundamente piedoso, hauriu duas coisas que marcaram sua vida: uma profunda
devoção à Mãe de Deus e a liberal hospitalidade concedida com frequência aos
peregrinos.
Certo dia de 1503, o
menino, com apenas oito anos de idade, fugiu do lar, deixando consternados os
pais, que nunca mais tiveram notícias dele! Não há nos relatos de sua vida explicação
para tão inusitada atitude. Sabe-se apenas haver sido ele caridosamente
acolhido em Oropesa, Espanha, por Francisco Cid, mayoral — chefe dos pastores —
do Conde de Oropesa, que o tratou como a um filho.
Na calma função de
pastor, João atingiu a idade adulta. O efeito das longas jornadas passadas na
contemplação das belezas naturais haveria de se refletir em sua fisionomia.
Dois olhos escuros e penetrantes revelavam o profundo pensamento de uma alma
manifestamente religiosa, acostumada a meditar nas maravilhas de Deus e deixar-
se tomar por inteiro por elas. Dir-se-ia haver em seu espírito uma mistura de
teólogo e místico: ao mesmo tempo raciocinava e “via”.
De pastor a soldado
De tal forma João
Cidade era estimado na casa do mayoral, que este ofereceu-lhe a filha em
casamento. João recusou a vantajosa proposta e alistou-se, em 1522, nas tropas
espanholas enviadas para defender Fuenterrabia. Sentia em si o desejo de
grandes horizontes, almejava heroicas aventuras com as quais satisfizesse o
ardor do seu coração idealista.
De regresso, passou
mais alguns anos em Oropesa. Mas já não era o pastor inexperiente de outrora:
havia se deparado, nas estradas, com numerosos doentes, pobres e estropiados
sucumbindo por falta de quem deles cuidasse. Condoído dessas desgraças, não
conseguia continuar na monotonia da existência pastoril. Entretanto, não via
ainda com clareza o rumo de sua vida, e acabou alistando-se, em 1526, para nova
campanha militar, desta vez contra as forças otomanas que assediavam Viena.
Vencendo, a Europa
ficou livre da ameaça turca e os voluntários foram licenciados. João Cidade
resolveu, então, se dirigir a Portugal a fim de rever os pais, depois de mais
de vinte anos de ausência. Porém, ao chegar em sua cidade natal, encontrou
apenas um velho tio. A mãe falecera pouco depois de sua saída de casa, tomada
de desgosto pelo desaparecimento do filho, e o pai ingressara num convento
franciscano, onde também não tardou a extinguir-se. Isso causou-lhe um enorme
sentimento de culpa na alma.
Vendo rompidos os
últimos elos com o passado, sua alma idealista e afoita levou-o a optar
novamente pela vida castrense. Partiu para Gibraltar e de lá embarcou para
Ceuta. Contudo, a estadia na África foi breve. As circunstâncias da região e do
próprio exército tornavam extremamente penosa a perseverança na Fé. Aconselhado
por um sacerdote franciscano, logo retornou a Espanha.
A vontade de Deus: “Granada será tua cruz!”
De novo em Gibraltar,
João Cidade suplicava a Deus que desse um rumo à sua vida errante. “Senhor [...],
tenhais por bem ensinar-me o caminho por onde tenho de seguir, a fim de Vos
servir e ser para sempre vosso escravo”2, rogava ajoelhado diante de Jesus
Crucificado. Era o ano de 1535. João atingira 40 anos de idade, sem conhecer
ainda a vontade divina a seu respeito.
Após fazer diversos
trabalhos avulsos, tornara-se livreiro ambulante. Conta-se que, certo dia, ao
cruzar uma região desabitada, viu um menino solitário, descalço, machucando
seus pezinhos nas pedras do caminho. Quis oferecer-lhe os próprios sapatos, mas
estes ficaram enormes... Carregou-o então às costas por um longo percurso e, ao
chegar numa fonte, depôs o pequeno à sombra de uma árvore e foi buscar água. Ao
retornar, o encontrou resplandecente, tendo na mão direita uma romã — granada,
em espanhol — aberta, sobre a qual reluzia uma cruz.3 Estendendo-lhe a fruta,
exclamou:
— João de Deus!
Granada será tua Cruz!
Dizendo isso, o
menino desapareceu... João Cidade viu nessas palavras a resposta às suas
orações: a vontade de Deus conduziu-o a Granada.
Conversão radical
Alguns meses havia
ele passado na tranquila atividade de livreiro, quando na festa de São
Sebastião, em 20 de janeiro de 1537, foi assistir à Missa celebrada por São
João de Ávila, o Apóstolo da Andaluzia. No sermão, o famoso pregador discorreu
ardorosamente sobre a penitência, o heroísmo do martírio, a entrega total a
Deus e a imolação do próprio corpo para proclamar a verdade de Cristo.
Essas santas palavras
penetraram a fundo na alma de João Cidade. Compreendeu como tinham sido vazios
de boas obras os seus quarenta anos de vida e, terminada a Eucaristia, pedia
perdão por seus pecados em altos brados, golpeando-se e rasgando as próprias
vestes, em sinal de arrependimento.
Alguém o conduziu ao
santo pregador, com o qual se confessou, expondo-lhe a situação de sua alma.
Discernindo no penitente os sinais de uma grande vocação, o padre Ávila o tomou
por filho espiritual, dizendo-lhe: “Animai-vos muito em Nosso Senhor Jesus
Cristo, e confiai na sua misericórdia, pois Ele levará a bom termo esta obra
que começou. Sede fiel e constante naquilo que começastes”.
Saindo dali
confortado, começou a penitenciar-se publicamente. Foram vários dias nos quais
tomou atitudes tão estranhas para aquela gente de Granada, que o insultavam,
agrediam e desprezavam como a um louco. Ele sentia nessas manifestações de
repúdio muita consolação, lembrando os sofrimentos Jesus na Paixão. Desfez-se
de todos os seus livros, móveis e até de seu vestuário, e ficava em praça
pública gritando, macerando-se, osculando o chão cheio de lama e pedindo perdão
por seus pecados, fazendo-se louco, pela loucura da Cruz.
Cenas idênticas
repetiram-se nos dias seguintes. Para os habitantes de Granada, não havia
dúvida: João Cidade perdera o juízo. “Como tinha tão grande habilidade em
simular a loucura, quase todos o tiveram por louco”, sintetiza seu primeiro biógrafo.
Foi, pois, internado no Hospital Real, onde viviam em lamentável promiscuidade
enfermos mentais, mendigos e doentes desamparados.
Começa o exercício da vocação
O principal “remédio”
aplicado aos loucos nessa época eram chicotadas e algemas... “para que, com a
dor e o castigo, percam a fúria e voltem a si”. Assim se fez com São João de
Deus: atado de mãos e pés, era impiedosamente açoitado.
O santo sofria tudo
com resignação e mesmo com alegria, por amor a Cristo Flagelado. Quando, porém,
presenciava idênticas brutalidades contra os outros doentes, protestava de modo
veemente, invectivando os “enfermeiros” com indignação. Em represália, estes
lhe redobravam os castigos.
Depois de alguns
dias, julgou chegada a hora de sair de tal situação e passou a dar mostras de
estar tranquilo e senhor de si. “Pouco a pouco, todos começam a descobrir no
penitente voluntário uma claridade interior que em nada se parece com a negra loucura
que lhe atribuíam”.4 Libertaram-no, então, das algemas e o deixaram circular
livremente pelo prédio, onde cuidava dos enfermos com carinho e bondade, e se
incumbia das mais árduas tarefas.
Em seu coração havia
nascido com força um anelo: “Jesus Cristo me conceda tempo e me dê a graça de
ter um hospital, onde possa recolher os pobres desamparados e faltos de juízo,
e servi-los como desejo”.
O primeiro hospital: 46 leitos de velhas esteiras
Refletindo sobre como
fazia falta na Igreja uma Congregação dedicada especialmente ao cuidado dos
enfermos, João Cidade decidiu tomar a iniciativa. Conseguiu facilmente
autorização para sair do Hospital Real, onde não só já era considerado curado,
mas visto com admiração. Em seguida, a conselho do padre Ávila, partiu em
peregrinação ao Santuário mariano de Guadalupe, na Estremadura, desejoso de
pedir a proteção de Maria Santíssima para sua grande missão.
Percorreu, a pé e
descalço, os quatrocentos quilômetros de caminho. Ali chegou tão andrajoso que
o sacristão, desconfiando tratar-se de um ladrão à espera de oportunidade para
roubar alguma joia da imagem sagrada, decidiu expulsá-lo a pontapés do recinto.
Ao dar, porém, o primeiro golpe, ficou com a perna paralisada e sem vida.
Condoído de sua aflição, o santo rezou com ele a Nossa Senhora, alcançando-lhe
no mesmo instante a cura.
Depois de passar
algumas semanas em recolhimento, encetou a viagem de volta a Granada, aonde
chegou a fins de 1539. À falta de melhor recurso, começou por juntar e vender
feixes de lenha. Com o dinheiro assim obtido, oferecia alimento e agasalho aos
necessitados que vagavam à noite pelas ruas da cidade.
Embora tudo fizesse
para passar despercebido, atraiu a admiração de numerosas pessoas, as quais
deram-lhe generosos donativos. Conseguiu assim alugar uma pequena casa na qual
instalou seu primeiro hospital: 46 leitos de velhas esteiras, guarnecidos de
surrados cobertores. Para lá levou os enfermos e desamparados que encontrou.
Durante o dia cuidava deles e vendia feixes de lenha; à noite, percorria a
cidade pedindo esmolas.
João Cidade torna-se João de Deus
O número de carentes,
porém, aumentava em proporção maior que a dos recursos. Agravou-se a situação
quando um incêndio destruiu o Hospital Real. Para compensar tal perda, os olhos
se voltaram para São João de Deus. O Arcebispo de Granada abriu, com um vultoso
donativo, uma subscrição, à qual aderiram outras numerosas personalidades,
possibilitando-lhe comprar um antigo convento carmelita, onde instalou seu novo
hospital, com 200 leitos e um grande albergue noturno.
Por essa ocasião,
juntaram-se ao santo seus dois primeiros discípulos: António Martín e Pedro
Velasco, antigos inimigos reconciliados e convertidos por ele. Sem dar-se
conta, começara já a fundação de uma ordem religiosa...
Certo dia, foi
visitar o presidente da Real Chancelaria de Granada, Dom Sebastião Ramírez de
Fuenleal, Arcebispo de Tuy. Este perguntou-lhe como se chamava.
— João Cidade. Mas o
nome que mereço é João Pecador.
De fato, era assim
como costumava designar-se.
Quis saber, então, o
Arcebispo qual nome lhe dera aquele Menino resplendente de luz que o enviara a
Granada.
— Chamou-me João de
Deus.
— Pois seja este o
teu nome — concluiu o Prelado, dando-lhe para usar um traje apropriado: um
hábito composto de três peças — blusão, calça e capa —, em honra da Santíssima
Trindade.
“Jesus, Jesus, nas tuas mãos me encomendo”
João de Deus recorria
incessantemente aos ricos e aos fidalgos, e recebia avultadas somas, as quais,
porém, eram insuficientes para as despesas já avolumadas. Sua caridade o levava
a acumular dívidas. Como saldá-las? Aconselhado pelo Arcebispo de Granada, Dom
Pedro Guerrero, dirigiu-se a Valladolid, onde se encontrava a Corte Real, para
solicitar auxílio ao Soberano e aos grandes da nobreza.
Empreendeu a viagem
de quase mil e quatrocentos quilômetros, ida e volta, uma vez mais a pé.
Retornou meses depois, com os recursos imprescindíveis, mas depauperado e
enfermo. Apesar de sua relutância em abandonar os pobres e enfermos, deixou o
hospital nas mãos de António Martín, recomendou a seus filhos espirituais a
prática da humildade e o amor aos pobres, e deixou-se trasladar para a mansão
dos Pisa-Osório, em obediência à determinação do Arcebispo.
Ali assistiu à sua
última Missa, celebrada pelo próprio Dom Pedro e recebeu os últimos
Sacramentos. O Arcebispo prometeu-lhe também saldar as dívidas restantes e
cuidar da continuidade de sua obra.
Ao anoitecer, depois
de ouvir a leitura da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, pediu para
deixarem-no inteiramente só. Seus anfitriões respeitaram esse desejo, mantendo,
porém, a porta semicerrada. Ouviram-no durante toda a noite sussurrar orações.
Nos primeiros albores
de 8 de março de 1550 — quando completava 55 anos de idade —, levantou-se do
leito, pôs-se de joelhos, abraçou um crucifixo e pronunciou com voz forte suas
derradeiras palavras: “Jesus, Jesus, nas tuas mãos me encomendo”. E assim
faleceu, permanecendo seu corpo inerte genuflexo, enquanto um suave perfume
inundava a habitação.
Exemplo para nossos dias
A semente plantada
por São João de Deus logo germinou e frutificou. Em 1586, São Pio V erigia a
Ordem dos Irmãos Hospitaleiros de São João de Deus, cujos membros continuaram a
maravilhosa obra de caridade cristã do fundador, nos quatro cantos do mundo.
Hoje, muitos dos mais de duzentos hospitais da Ordem, que atendem centenas de
milhares de enfermos, são considerados modelo no seu gênero, inclusive do ponto
de vista médico.
O exemplo de “João
Pecador” — proclamado por Leão XIII patrono dos enfermos e hospitais,
juntamente com São Camilo de Lelis — continua mais vivo do que nunca em nossos
dias, pois no seu heroico testemunho “brilharam valores humanos e cristãos que,
ainda hoje, se revestem de uma importância fundamental”5, como afirma o
Arcebispo Emérito de Évora. Nesses valores, acrescenta ele, “está o caminho de
superação de muitas crises atuais provocadas por egoísmos e concepções de vida
fechadas nos estreitos e falsos limites de prazer material”.6
1 Consagração ao
Divino Paráclito. In: ROYO MARÍN, OP, Antonio. El gran desconocido: el Espírito Santo y su dones. Madrid:
BAC, 2004, p.230.
2 CASTRO, OH,
Francisco de. História da vida e obras de São João de Deus. Braga-Montemor-o-Novo:
Franciscana; Hospital Infantil de São João de Deus, 1999, p.51. Salvo indicação
em nota, os trechos citados entre aspas neste artigo serão todos transcritos
desta obra, omitindo-se a referência da página.
3 Este é o símbolo da
Ordem dos Hospitaleiros de São João de Deus: uma romã aberta, encimada por uma
cruz.
4 AMEAL, João. Vida
de São João de Deus. Edição comemorativa do quinto centenário do nascimento de
São João de Deus. Lisboa: Grifo, 1995, p.68.
5 GOUVEIA, Maurílio.
Duas palavras de apresentação. Por S. Ex.a Rev.ma o Senhor Arcebispo de Évora.
In: AMEAL, op. cit., folheto anexo.
6 Idem, ibidem.
Revista Arautos do Evangelho n.111 mar 2011
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