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quinta-feira, 4 de setembro de 2014

São João Eudes

Ao tratarmos de São João Eudes, convém tomar em consideração que a devoção aos Sagrados Corações de Jesus e Maria suscitou, nos séculos XVII e XVIII, toda espécie de movimentos destinados a evitar a Revolução Francesa. No século XIX, e durante uma parte do XX, foi também a devoção própria de todos os contrarrevolucionários.
É preciso notar que essa devoção, tão combatida pelos jansenistas, é de uma substância teológica extraordinária, muito recomendada pelos documentos pontifícios e por vários santos.
Grandes praças públicas se enchiam para ouvir suas prédicas
Vejamos o que diz uma ficha1 sobre esse Santo.
São João Eudes nasceu em Ery, pequena cidade da Normandia, a 14 de novembro de 1601. Era o filho mais velho do casal Isac Eudes e Maria Ruber. Depois dele, seus pais tiveram mais quatro filhas e dois filhos. Família profundamente religiosa, cresceram todos num ambiente sério, impregnado de vida sobrenatural. Receberam excelente educação, orientada pelos ensinamentos da Igreja.
Em 1615, sendo educado pelos jesuítas de Caen, fez voto de virgindade, doou-se a Maria e votou-Lhe, desde então, um culto fervoroso. Da Universidade de Caen entrou na Congregação do Oratório, fundada por Bérulle, onde permaneceu durante vinte anos.
Bérulle quisera restabelecer entre o clero a doutrina e a santidade, mas não havia pensado em seminários, e foi para instituí-los que São João Eudes, em 1643, deixou o Oratório e fundou a Congregação de Jesus e Maria; e com seus cinco companheiros padres abriu o primeiro seminário de Caen, logo seguido de muitos outros.
Para reconduzir os pecadores à vida cristã, fundou a Ordem de Nossa Senhora da Caridade e, para evangelizar as almas desamparadas, fez-se missionário durante longos anos, pregando nos campos abandonados, nas cidades e até na corte, com uma liberdade e uma eloquência que tinham como suporte a sua eminente santidade.
Pai, apóstolo e doutor da devoção aos Sagrados Corações de Jesus e de Maria, quando morreu já tinha conseguido a introdução dessa festa em um grande número de dioceses, não só da França, como de outros países. Foi ele também que compôs o seu primeiro ofício. Grande pregador, nas suas missões atraía multidões. E, muitas vezes, era obrigado a falar em grandes praças públicas completamente tomadas pelo povo. Novo São Vicente Ferrer, conquistava os ouvintes pelo ardor de sua fé, pela energia com que fustigava os vícios e pela caridade com que tratava os arrependidos e penitentes.
Existe um testemunho histórico de grande valor que comprova o seu êxito. É uma carta de São Vicente de Paula, comentando as missões que assistira. Diz ela:
“Alguns sacerdotes da Normandia, conduzidos pelo Padre Eudes, pregaram uma missão em Paris com uma bênção extraordinária. O pátio dos Quinze Ventos é muito grande, porém tornou-se pequeno, dado o grande número de pessoas que desejavam ouvi-lo.”
O bispo pró jansenista, Ana d’Áustria e Luís XIV
Os hereges não lhe perdoavam o combate enérgico que movia contra os seus erros. Sendo a heresia o maior dos males, ele não compreendia ter, com os seus adeptos, nem a mais leve aparência de relações, chegando mesmo a não cumprimentá-los.
Conta-se um fato que, de um lado mostra o cuidado com que guardava a pureza de sua Fé, e de outro, a frivolidade, a prepotência dos eclesiásticos de então.
Um dia, o Bispo de Bayeux convidou-o a subir em sua carruagem na qual já se encontrava outro sacerdote. Quando ela se pôs em movimento, o bispo lhe perguntou se sabia com quem viajava.
— Tenho a honra — respondeu — de me encontrar em companhia de Vossa Excelência.
— Não é o que eu lhe estou perguntando — disse o bispo. Sabe o senhor que este eclesiástico que está conosco é um dos mais ferrenhos jansenistas?
Imediatamente São João Eudes abriu a porta, e pediu ao cocheiro que parasse a carruagem porque precisava descer. O bispo o impediu em nome da obediência e, durante o resto da viajem, divertiu-se com o mal-estar criado.
Não eram só os hereges que o atacavam. Algumas congregações religiosas os ajudavam, dizendo que ele era exagerado e criticando a violência de sua linguagem. Chamavam de exagero e violência a santa liberdade com que chamava à ordem os pecadores, mesmo os de condições elevadas.
Certa vez, pregando em Versailles, censurou com tanta energia os escândalos da corte, que seus amigos temiam que fosse enviado para a Bastilha.
Ana d’Áustria, ao ter conhecimento desses comentários, mandou-lhe dizer que fizera bem e, desde então, tornou-se sua protetora.
Noutra ocasião, estava celebrando Missa na corte, quando percebeu que Luís XIV estava ajoelhado, mas que a nobreza não se comportava convenientemente. Depois do Evangelho, voltou-se para o Rei e o cumprimentou pela piedade com que assistia à Missa, acrescentando: “Admiro-me, no entanto, de que, estando Vossa Majestade prostrado diante do Criador do Céu e da Terra, vossos cortesãos estão longe de imitar tão belo exemplo.” Luís XIV olhou para trás e imediatamente todos os homens se ajoelharam.
Foi canonizado em 1925, no dia de Pentecostes.
Santos de fogo
Na vida de São João Eudes há uma coincidência entre a obra jurídica e a obra espiritual, que é muito bonito assinalar. Ele viveu num país católico, como era a França, e sua tarefa não foi a de combater os inimigos expressos e extrínsecos da Igreja. Ele estava num país corroído por uma profunda crise religiosa da qual haveria de nascer, afinal, a Revolução Francesa.
Essa crise religiosa provinha do fato de que o fervor tinha decaído inteiramente, o senso católico estava muito baixo. Para evitar as tragédias e, sobretudo, as apostasias provocadas pela Revolução, a Providência suscitava grandes almas que, de várias maneiras, procuravam reacender o fervor na França.
Todos os santos dos séculos XVII e XVIII foram santos de fogo. Não foram tanto grandes teólogos quanto santos que tomavam por intenção contaminar, com o amor de Deus, essa mecha que ainda fumegava, mas na qual havia apenas um fogo em estado de brasa e não mais em estado de chama.
Vemos, então, entre outros, São Vicente de Paula, que era um homem de um amor de Deus irradiante; São Francisco de Sales, que exercia uma penetração profunda de amor de Deus nas camadas da alta sociedade. Para essa obra de combustão de amor de Deus, de acender de caridade, encontramos, sobretudo, duas obras fundamentais: a de São Luís Grignion de Montfort, no século XVIII, na Vendeia e na Bretanha, da qual nasceu depois a Chouannerie; e a de São João Eudes, que devemos analisar mais especialmente hoje.
Quem lê as revelações de Nosso Senhor a Santa Margarida Maria Alacoque, nota que elas tiveram como intenção expressa enunciar a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, dizendo que essa devoção, especificamente considerada, tinha um dom de tirar os tíbios de sua tibieza, de acender o amor de Deus nas almas frias. É a finalidade específica dessa devoção.
Quando se toma um tíbio, um homem que está mais amando suas coisas pessoais do que as de Deus, a devoção indicada para acender nele o amor de Deus desfalecente é a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, e naturalmente também ao Imaculado Coração de Maria.
Luís XIV recusou acolher o pedido de Nosso Senhor
Santa Margarida Maria, portanto, recebeu essa devoção, mas era uma freira visitandina reclusa e não podia sair do convento. Ela não tinha como missão difundir essa devoção, mas sim registrá-la, praticá-la, e com isso ser canonizada o que significaria uma espécie de aprovação dessa nova devoção. Ela possuía como missão fazer conhecer essa devoção aos homens que poderiam difundi-la. Entre outros, Luís XIV.
Ela mandou pedir a Luís XIV que fizesse uma alteração na bandeira da França, incluindo a figura do Sagrado Coração de Jesus, e realizasse a consagração desse país ao Sagrado Coração de Jesus. Luís XIV recusou-se a isso. Como resultado dessa recusa, no que diz respeito ao poder real, foi água abaixo a monarquia francesa.
Luís XVI, na prisão do Templo, fez essa consagração e prometeu que, se fosse salvo dos perigos da morte que já o circundavam, ele a realizaria de modo solene. Mas já era tarde! Ele ainda tinha o poder de direito, porém não mais o de fato. E a França estava em tais condições que essa consagração não podia mais ser considerada um ato nacional — como o seria se feita por Luís XIV —, mas era o ato de um rei desacompanhado da população, que estava naquelas convulsões da Revolução e não podia acompanhar esse ato.
lém do rei, Santa Margarida Maria quis também fazer chegar essa devoção a missionários. E assim, espalhando-se nos círculos piedosos, tal devoção tocou São João Eudes que chamou sobre si a tarefa de difundi-la.
Um profeta não atendido que combateu tenazmente contra a tibieza
Sendo um grande orador e um santo muito fogoso, ele fundou uma Congregação para ver se, com o prestígio de uma Ordem religiosa nova, essa devoção pegava na França. E aí nós vemos uma outra recusa, já não do rei, mas do povo francês, pecador solidariamente com o monarca. A devoção impressionou pouco.
Os escritos de São João Eudes foram muito aproveitados para a generalização que a devoção ao Sagrado Coração de Jesus teve, no século XIX. Mas no século XVIII não pegou.
Temos, então, um grande santo o qual é uma espécie de profeta não atendido, e que empregou todas as suas forças no campo espiritual para combater a tibieza francesa, por meio dessa devoção.
Com esse objetivo, São João Eudes utilizou dois métodos: um de caráter espiritual, fundando uma Congregação destinada a difundir tal devoção; outro de cunho jurídico, erigindo um tipo de organização de ensino, os seminários, já existentes em tese, mas ainda não de fato na França, e que ele constituiu dando-lhes as características atuais.
Os seminários eram destinados a tirar os seminaristas das respectivas famílias e educá-los num ambiente fervoroso, de maneira tal que, quando eles fossem padres, tivessem verdadeiro entusiasmo, verdadeira consagração à sua vocação e não ficassem presos às coisas do mundo. Os seminários constituíram um elemento realmente admirável para a formação do clero, e uma das grandes alavancas para a restauração religiosa da Europa, no século XIX.
Repulsa ao herege e respeito à autoridade eclesiástica
Eu gostaria de lembrar três aspectos mencionados por essa ficha biográfica de São João Eudes: a presença do herege na carruagem, o mal-estar do santo com esta presença e a atitude do bispo.
Vê-se que o bispo, pregando ao santo aquela cilada, não era inimigo dos jansenistas. Para ter um jansenista viajando com ele, evidentemente é porque não sentia esse mal-estar.
O bispo tratava São João Eudes com a atitude com a qual a impiedade trata quem é verdadeiramente piedoso, ou seja, divertindo-se durante a viagem com o mal-estar de São João Eudes, pela vizinhança daquele herege. Enquanto o prelado, naturalmente, bancava que se encontrava com muito bem-estar com o herege, São João Eudes manifestava uma espécie de repulsa, de horror, de aversão, como se houvesse uma possibilidade de contágio. E o bispo, então, caçoando do santo, divertia-se com o fato.
É a velha atitude do ímpio em relação ao piedoso que se recata e, por isso, defende-se contra coisas dessas, e é tido como imaginoso, fantasioso, medroso, homem sem coragem, sem decisão.
E, por se tratar de um bispo, São João Eudes, que era um homem tão enérgico, não queria tomar a atitude enérgica que adotara com Luís XIV. Nota-se o grande respeito de São João Eudes pela autoridade do bispo. Porque, quem era capaz de dizer ao maior rei da Terra o que ele afirmou, evidentemente teria facilidade também de dizer para o bispo. Não lhe faltava personalidade nem coragem.
Mas, uma é a autoridade eclesiástica, outra é a autoridade civil. E sempre que se pode tomar uma atitude submissa em relação à autoridade eclesiástica, a melhor via é a da submissão.
De maneira que, diante da má atitude do bispo e do outro jansenista, a posição de São João Eudes nos mostra bem qual é o amor que o católico deve ter à obediência, sempre que, em consciência, lhe seja possível manter essa obediência. E, de outro lado, em que alta conta se deve ter a autoridade eclesiástica.
Pecados que preparavam as monstruosidades de hoje
O episódio com Ana d’Áustria mereceria ser narrado depois do fato ocorrido com Luís XIV.
Não pensem que a atitude dele elogiando Luís XIV, como vem narrada na ficha, não ia sem uma censura ao rei, porque era óbvio que Luís XIV sabia o que estava se passando ali, pois eram esses os costumes da corte precedida pelo monarca.
Havia, portanto, ao lado do modo cortês de começar por elogiar o rei, uma verdadeira censura. E, de fato, o mal que podia ser ali removido, de tal forma dependia do soberano, que bastou o rei olhar para os fidalgos que todos se ajoelharam.
Mas não é este o único fato da vida de Luís XIV em que ele ouviu — humildemente, como filho da Igreja — uma porção de verdades do alto do púlpito. Ele era, sem dúvida, um pecador público e prestou à Igreja, ao lado de alguns serviços, alguns desserviços insignes. Mas a profundidade e o modo de ser do pecado — e até do pecado grave — nas almas daquele tempo, não era a profundidade nem o modo de ser do pecado nas almas de hoje em dia.
Se considerarmos pecadores daquela época, às vezes de má vida, encontraremos neles restos de moralidade, de piedade, de fé, de humildade que, no pecador de hoje, absolutamente não se encontram.
Isso indica bem que naqueles tempos, em que se preparavam as monstruosidades de hoje, havia ainda muita seiva, muita possibilidade de resistência, a qual só não foi levada a cabo inteiramente por um conjunto de circunstâncias históricas, que não vem ao caso narrar no momento. Mas era, em todo caso, uma época muito mais católica do que a nossa.
Característico também é o caso com Ana d’Áustria, mãe de Luís XIV. Ela era uma soberana que, embora tivesse um oratório em seu palácio, absolutamente não se distinguia por uma piedade saliente nem deu uma educação muito piedosa a seus filhos. Entretanto, quando toma conhecimento de que São João Eudes falou fortemente na corte contra a imoralidade, ela o apoia e manda dizer-lhe que gostou. Ela mesma tinha como seu conselheiro São Vicente de Paula.
É uma atitude completamente diferente do afastamento sistemático de todo contrarrevolucionário, de todo aquele que reage e procura ser séria e sinceramente católico, nos dias de hoje.
Quer dizer, não havia o boicote completo do católico verdadeiro, como existe atualmente. O que indica, exatamente, que o vício, o erro, o mal ainda estavam num estado de debilidade, e não se permitiam as insolências, os despotismos que se permitem hoje.
Isso nos faz ver, com toda clareza, o tamanho de nossa decadência e acende em nós a esperança de um castigo, bem como de um auxílio de Nossa Senhora para nos tirar desta triste era  histórica na qual estamos.
Plinio Correa de Oliveira – Extraído de conferências de 19/8/1965, 18/8/1966 e 19/8/1970

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da ficha lida nesta conferência.

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