Ao tratarmos de São
João Eudes, convém tomar em consideração que a devoção aos Sagrados Corações de
Jesus e Maria suscitou, nos séculos XVII e XVIII, toda espécie de movimentos
destinados a evitar a Revolução Francesa. No século XIX, e durante uma parte do
XX, foi também a devoção própria de todos os contrarrevolucionários.
É preciso notar que
essa devoção, tão combatida pelos jansenistas, é de uma substância teológica
extraordinária, muito recomendada pelos documentos pontifícios e por vários
santos.
Grandes praças
públicas se enchiam para ouvir suas prédicas
Vejamos o que diz uma
ficha1 sobre esse Santo.
São João Eudes nasceu
em Ery, pequena cidade da Normandia, a 14 de novembro de 1601. Era o filho mais
velho do casal Isac Eudes e Maria Ruber. Depois dele, seus pais tiveram mais
quatro filhas e dois filhos. Família profundamente religiosa, cresceram todos
num ambiente sério, impregnado de vida sobrenatural. Receberam excelente
educação, orientada pelos ensinamentos da Igreja.
Em 1615, sendo
educado pelos jesuítas de Caen, fez voto de virgindade, doou-se a Maria e
votou-Lhe, desde então, um culto fervoroso. Da Universidade de Caen entrou na
Congregação do Oratório, fundada por Bérulle, onde permaneceu durante vinte
anos.
Bérulle quisera
restabelecer entre o clero a doutrina e a santidade, mas não havia pensado em
seminários, e foi para instituí-los que São João Eudes, em 1643, deixou o
Oratório e fundou a Congregação de Jesus e Maria; e com seus cinco companheiros
padres abriu o primeiro seminário de Caen, logo seguido de muitos outros.
Para reconduzir os
pecadores à vida cristã, fundou a Ordem de Nossa Senhora da Caridade e, para
evangelizar as almas desamparadas, fez-se missionário durante longos anos,
pregando nos campos abandonados, nas cidades e até na corte, com uma liberdade
e uma eloquência que tinham como suporte a sua eminente santidade.
Pai, apóstolo e
doutor da devoção aos Sagrados Corações de Jesus e de Maria, quando morreu já
tinha conseguido a introdução dessa festa em um grande número de dioceses, não
só da França, como de outros países. Foi ele também que compôs o seu primeiro
ofício. Grande pregador, nas suas missões atraía multidões. E, muitas vezes,
era obrigado a falar em grandes praças públicas completamente tomadas pelo
povo. Novo São Vicente Ferrer, conquistava os ouvintes pelo ardor de sua fé,
pela energia com que fustigava os vícios e pela caridade com que tratava os
arrependidos e penitentes.
Existe um testemunho
histórico de grande valor que comprova o seu êxito. É uma carta de São Vicente
de Paula, comentando as missões que assistira. Diz ela:
“Alguns sacerdotes da
Normandia, conduzidos pelo Padre Eudes, pregaram uma missão em Paris com uma
bênção extraordinária. O pátio dos Quinze Ventos é muito grande, porém
tornou-se pequeno, dado o grande número de pessoas que desejavam ouvi-lo.”
O bispo pró jansenista, Ana d’Áustria e Luís XIV
Os hereges não lhe
perdoavam o combate enérgico que movia contra os seus erros. Sendo a heresia o
maior dos males, ele não compreendia ter, com os seus adeptos, nem a mais leve
aparência de relações, chegando mesmo a não cumprimentá-los.
Conta-se um fato que,
de um lado mostra o cuidado com que guardava a pureza de sua Fé, e de outro, a
frivolidade, a prepotência dos eclesiásticos de então.
Um dia, o Bispo de
Bayeux convidou-o a subir em sua carruagem na qual já se encontrava outro
sacerdote. Quando ela se pôs em movimento, o bispo lhe perguntou se sabia com
quem viajava.
— Tenho a honra —
respondeu — de me encontrar em companhia de Vossa Excelência.
— Não é o que eu lhe
estou perguntando — disse o bispo. Sabe o senhor que este eclesiástico que está
conosco é um dos mais ferrenhos jansenistas?
Imediatamente São
João Eudes abriu a porta, e pediu ao cocheiro que parasse a carruagem porque
precisava descer. O bispo o impediu em nome da obediência e, durante o resto da
viajem, divertiu-se com o mal-estar criado.
Não eram só os
hereges que o atacavam. Algumas congregações religiosas os ajudavam, dizendo
que ele era exagerado e criticando a violência de sua linguagem. Chamavam de
exagero e violência a santa liberdade com que chamava à ordem os pecadores,
mesmo os de condições elevadas.
Certa vez, pregando
em Versailles, censurou com tanta energia os escândalos da corte, que seus
amigos temiam que fosse enviado para a Bastilha.
Ana d’Áustria, ao ter
conhecimento desses comentários, mandou-lhe dizer que fizera bem e, desde
então, tornou-se sua protetora.
Noutra ocasião,
estava celebrando Missa na corte, quando percebeu que Luís XIV estava
ajoelhado, mas que a nobreza não se comportava convenientemente. Depois do
Evangelho, voltou-se para o Rei e o cumprimentou pela piedade com que assistia
à Missa, acrescentando: “Admiro-me, no entanto, de que, estando Vossa Majestade
prostrado diante do Criador do Céu e da Terra, vossos cortesãos estão longe de
imitar tão belo exemplo.” Luís XIV olhou para trás e imediatamente todos os
homens se ajoelharam.
Foi canonizado em
1925, no dia de Pentecostes.
Santos de fogo
Na vida de São João
Eudes há uma coincidência entre a obra jurídica e a obra espiritual, que é
muito bonito assinalar. Ele viveu num país católico, como era a França, e sua
tarefa não foi a de combater os inimigos expressos e extrínsecos da Igreja. Ele
estava num país corroído por uma profunda crise religiosa da qual haveria de
nascer, afinal, a Revolução Francesa.
Essa crise religiosa
provinha do fato de que o fervor tinha decaído inteiramente, o senso católico
estava muito baixo. Para evitar as tragédias e, sobretudo, as apostasias
provocadas pela Revolução, a Providência suscitava grandes almas que, de várias
maneiras, procuravam reacender o fervor na França.
Todos os santos dos
séculos XVII e XVIII foram santos de fogo. Não foram tanto grandes teólogos quanto
santos que tomavam por intenção contaminar, com o amor de Deus, essa mecha que
ainda fumegava, mas na qual havia apenas um fogo em estado de brasa e não mais
em estado de chama.
Vemos, então, entre
outros, São Vicente de Paula, que era um homem de um amor de Deus irradiante;
São Francisco de Sales, que exercia uma penetração profunda de amor de Deus nas
camadas da alta sociedade. Para essa obra de combustão de amor de Deus, de
acender de caridade, encontramos, sobretudo, duas obras fundamentais: a de São
Luís Grignion de Montfort, no século XVIII, na Vendeia e na Bretanha, da qual
nasceu depois a Chouannerie; e a de São João Eudes, que devemos analisar mais
especialmente hoje.
Quem lê as revelações
de Nosso Senhor a Santa Margarida Maria Alacoque, nota que elas tiveram como
intenção expressa enunciar a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, dizendo que
essa devoção, especificamente considerada, tinha um dom de tirar os tíbios de
sua tibieza, de acender o amor de Deus nas almas frias. É a finalidade específica
dessa devoção.
Quando se toma um
tíbio, um homem que está mais amando suas coisas pessoais do que as de Deus, a
devoção indicada para acender nele o amor de Deus desfalecente é a devoção ao
Sagrado Coração de Jesus, e naturalmente também ao Imaculado Coração de Maria.
Luís XIV recusou acolher o pedido de Nosso Senhor
Santa Margarida
Maria, portanto, recebeu essa devoção, mas era uma freira visitandina reclusa e
não podia sair do convento. Ela não tinha como missão difundir essa devoção,
mas sim registrá-la, praticá-la, e com isso ser canonizada o que significaria
uma espécie de aprovação dessa nova devoção. Ela possuía como missão fazer
conhecer essa devoção aos homens que poderiam difundi-la. Entre outros, Luís
XIV.
Ela mandou pedir a
Luís XIV que fizesse uma alteração na bandeira da França, incluindo a figura do
Sagrado Coração de Jesus, e realizasse a consagração desse país ao Sagrado
Coração de Jesus. Luís XIV recusou-se a isso. Como resultado dessa recusa, no
que diz respeito ao poder real, foi água abaixo a monarquia francesa.
Luís XVI, na prisão
do Templo, fez essa consagração e prometeu que, se fosse salvo dos perigos da
morte que já o circundavam, ele a realizaria de modo solene. Mas já era tarde!
Ele ainda tinha o poder de direito, porém não mais o de fato. E a França estava
em tais condições que essa consagração não podia mais ser considerada um ato
nacional — como o seria se feita por Luís XIV —, mas era o ato de um rei
desacompanhado da população, que estava naquelas convulsões da Revolução e não
podia acompanhar esse ato.
lém do rei, Santa
Margarida Maria quis também fazer chegar essa devoção a missionários. E assim,
espalhando-se nos círculos piedosos, tal devoção tocou São João Eudes que
chamou sobre si a tarefa de difundi-la.
Um profeta não atendido que combateu tenazmente contra a tibieza
Sendo um grande
orador e um santo muito fogoso, ele fundou uma Congregação para ver se, com o
prestígio de uma Ordem religiosa nova, essa devoção pegava na França. E aí nós
vemos uma outra recusa, já não do rei, mas do povo francês, pecador
solidariamente com o monarca. A devoção impressionou pouco.
Os escritos de São
João Eudes foram muito aproveitados para a generalização que a devoção ao
Sagrado Coração de Jesus teve, no século XIX. Mas no século XVIII não pegou.
Temos, então, um
grande santo o qual é uma espécie de profeta não atendido, e que empregou todas
as suas forças no campo espiritual para combater a tibieza francesa, por meio
dessa devoção.
Com esse objetivo,
São João Eudes utilizou dois métodos: um de caráter espiritual, fundando uma
Congregação destinada a difundir tal devoção; outro de cunho jurídico, erigindo
um tipo de organização de ensino, os seminários, já existentes em tese, mas
ainda não de fato na França, e que ele constituiu dando-lhes as características
atuais.
Os seminários eram
destinados a tirar os seminaristas das respectivas famílias e educá-los num
ambiente fervoroso, de maneira tal que, quando eles fossem padres, tivessem
verdadeiro entusiasmo, verdadeira consagração à sua vocação e não ficassem
presos às coisas do mundo. Os seminários constituíram um elemento realmente
admirável para a formação do clero, e uma das grandes alavancas para a
restauração religiosa da Europa, no século XIX.
Repulsa ao herege e respeito à autoridade eclesiástica
Eu gostaria de
lembrar três aspectos mencionados por essa ficha biográfica de São João Eudes:
a presença do herege na carruagem, o mal-estar do santo com esta presença e a
atitude do bispo.
Vê-se que o bispo,
pregando ao santo aquela cilada, não era inimigo dos jansenistas. Para ter um
jansenista viajando com ele, evidentemente é porque não sentia esse mal-estar.
O bispo tratava São
João Eudes com a atitude com a qual a impiedade trata quem é verdadeiramente
piedoso, ou seja, divertindo-se durante a viagem com o mal-estar de São João
Eudes, pela vizinhança daquele herege. Enquanto o prelado, naturalmente,
bancava que se encontrava com muito bem-estar com o herege, São João Eudes
manifestava uma espécie de repulsa, de horror, de aversão, como se houvesse uma
possibilidade de contágio. E o bispo, então, caçoando do santo, divertia-se com
o fato.
É a velha atitude do
ímpio em relação ao piedoso que se recata e, por isso, defende-se contra coisas
dessas, e é tido como imaginoso, fantasioso, medroso, homem sem coragem, sem
decisão.
E, por se tratar de
um bispo, São João Eudes, que era um homem tão enérgico, não queria tomar a
atitude enérgica que adotara com Luís XIV. Nota-se o grande respeito de São
João Eudes pela autoridade do bispo. Porque, quem era capaz de dizer ao maior
rei da Terra o que ele afirmou, evidentemente teria facilidade também de dizer
para o bispo. Não lhe faltava personalidade nem coragem.
Mas, uma é a
autoridade eclesiástica, outra é a autoridade civil. E sempre que se pode tomar
uma atitude submissa em relação à autoridade eclesiástica, a melhor via é a da
submissão.
De maneira que,
diante da má atitude do bispo e do outro jansenista, a posição de São João
Eudes nos mostra bem qual é o amor que o católico deve ter à obediência, sempre
que, em consciência, lhe seja possível manter essa obediência. E, de outro
lado, em que alta conta se deve ter a autoridade eclesiástica.
Pecados que preparavam as monstruosidades de hoje
O episódio com Ana
d’Áustria mereceria ser narrado depois do fato ocorrido com Luís XIV.
Não pensem que a
atitude dele elogiando Luís XIV, como vem narrada na ficha, não ia sem uma
censura ao rei, porque era óbvio que Luís XIV sabia o que estava se passando
ali, pois eram esses os costumes da corte precedida pelo monarca.
Havia, portanto, ao
lado do modo cortês de começar por elogiar o rei, uma verdadeira censura. E, de
fato, o mal que podia ser ali removido, de tal forma dependia do soberano, que
bastou o rei olhar para os fidalgos que todos se ajoelharam.
Mas não é este o
único fato da vida de Luís XIV em que ele ouviu — humildemente, como filho da
Igreja — uma porção de verdades do alto do púlpito. Ele era, sem dúvida, um
pecador público e prestou à Igreja, ao lado de alguns serviços, alguns
desserviços insignes. Mas a profundidade e o modo de ser do pecado — e até do
pecado grave — nas almas daquele tempo, não era a profundidade nem o modo de
ser do pecado nas almas de hoje em dia.
Se considerarmos
pecadores daquela época, às vezes de má vida, encontraremos neles restos de
moralidade, de piedade, de fé, de humildade que, no pecador de hoje,
absolutamente não se encontram.
Isso indica bem que
naqueles tempos, em que se preparavam as monstruosidades de hoje, havia ainda
muita seiva, muita possibilidade de resistência, a qual só não foi levada a cabo
inteiramente por um conjunto de circunstâncias históricas, que não vem ao caso narrar
no momento. Mas era, em todo caso, uma época muito mais católica do que a
nossa.
Característico também
é o caso com Ana d’Áustria, mãe de Luís XIV. Ela era uma soberana que, embora
tivesse um oratório em seu palácio, absolutamente não se distinguia por uma
piedade saliente nem deu uma educação muito piedosa a seus filhos. Entretanto,
quando toma conhecimento de que São João Eudes falou fortemente na corte contra
a imoralidade, ela o apoia e manda dizer-lhe que gostou. Ela mesma tinha como
seu conselheiro São Vicente de Paula.
É uma atitude
completamente diferente do afastamento sistemático de todo
contrarrevolucionário, de todo aquele que reage e procura ser séria e
sinceramente católico, nos dias de hoje.
Quer dizer, não havia
o boicote completo do católico verdadeiro, como existe atualmente. O que
indica, exatamente, que o vício, o erro, o mal ainda estavam num estado de
debilidade, e não se permitiam as insolências, os despotismos que se permitem
hoje.
Isso nos faz ver, com
toda clareza, o tamanho de nossa decadência e acende em nós a esperança de um castigo,
bem como de um auxílio de Nossa Senhora para nos tirar desta triste era histórica na qual estamos.
Plinio Correa de
Oliveira – Extraído
de conferências
de 19/8/1965, 18/8/1966 e 19/8/1970
1) Não dispomos dos
dados bibliográficos da ficha lida nesta conferência.
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