Desde as mais remotas épocas, a
escravidão era praticada entre os povos antigos, afundados na barbárie e no
paganismo após o desastre da Torre de Babel. Se uma nação triunfava sobre outra
na guerra, os derrotados eram levados para o cativeiro e condenados à
humilhante servidão. Até no Império Romano, tão civilizado sob muitos aspectos,
os escravos tinham o status jurídico de coisa (res), sobre a qual o direito
conferia aos senhores poder de vida ou morte.
A Igreja une a humanidade
Foi a Igreja Católica que, como mãe
bondosa, suavizou aos poucos o duro jugo imposto pela crueldade, ao ensinar por
todas as partes o “Amai-vos uns aos outros” (Jo
13, 34), o novo mandamento de Jesus, e conduziu as relações humanas a um
equilíbrio cristão. Pregando a existência de uma alma racional e imortal,
elevada à participação da vida divina pelo Batismo, a doutrina católica alça
todos à dignidade a que são chamados.
Longe de abolir as desigualdades
decorrentes da missão ou dos dons conferidos pelo Criador a cada alma em particular,
a Igreja convida os homens a um relacionamento de mútuo respeito: os inferiores
submetendo-se com alegria aos superiores, por verem neles um reflexo do próprio
Deus, e estes debruçando-se sobre os primeiros com verdadeiro afeto e proteção.
Já no século I, o grande São Paulo
escrevia aos Efésios uma síntese deste estado de espírito: “Servos, obedecei aos vossos senhores temporais, com temor e
solicitude, de coração sincero, como a Cristo […]. Senhores, procedei também
assim com os servos. Deixai as ameaças. E tende em conta que o Senhor está no
Céu, Senhor tanto deles como vosso, que não faz distinção de pessoas” (Ef
6, 5.9).
Almas modelo
Entretanto, dado o orgulho do coração
humano, ao longo da História, as admoestações do Apóstolo das Gentes e de tantos
outros santos e pregadores, muitas vezes não foram ouvidas, quer pelos grandes,
quer pelos pequenos. Daí a tirania por parte de uns e rebeliões por parte de
outros, dando origem a guerras e dissensões cuja narração nos faz estremecer de
horror.
Deus, porém, tem suscitado incontável
número de homens e mulheres que não só ouviram Sua Palavra, mas souberam pôla
em prática, constituindo assim uma coorte de modelos a serem imitados pelos
demais. Todos eles, cada um a seu modo e segundo sua vocação específica,
compreenderam a fundo a lei do Amor trazida pelo Divino Mestre e conformaram
com ela suas existências.
Tal foi a vida da jovem escrava
sudanesa Josefina Bakhita, cuja docilidade de alma foi tão grata aos olhos de
Deus que a levou à honra dos altares.
Os caminhos da obediência
Dotada de um caráter fácil e
submisso, com uma marcada propensão para fazer o bem aos outros, a pequena
descendente da tribo dos Dagiu dava, desde a mais tenra infância, mostras de
ser uma predileta de Deus.
Certa vez, estando com uma amiga nas
proximidades de sua aldeia, situada na região de Darfur, no oeste do Sudão,
Bakhita deparou-se com dois homens que surgiram de improviso de trás de uma
cerca. Um deles pediu-lhe que fosse pegar um pacote que esquecera no bosque
vizinho e disse à sua companheira que podia continuar o caminho, pois ela logo
a alcançaria. “Eu não duvidava de nada, obedeci
imediatamente, como sempre fazia com a minha mãe” — narrou
ela. 1
Protegidos pela floresta e longe de
qualquer testemunha importuna, os dois estrangeiros agarraram a menina e
levaram-na à força com eles, ameaçando-a com um punhal. Sua ingenuidade, bem
compreensível em seus oito anos, custara-lhe caro.
Contudo, eram essas as misteriosas
vias da Providência, por meio das quais se realizariam os desígnios de Deus a
seu respeito.
Se tal fato não tivesse ocorrido
talvez sua vida teria continuado na normalidade do convívio familiar, em meio
aos afazeres domésticos e às práticas rituais do culto animista que professavam
seus parentes. Provavelmente ela jamais conheceria a Fé Católica, e
permaneceria submersa nas trevas do paganismo.
Uma escravidão providencial
Empurrada violentamente por seus
raptores, foi levada para uma cruel e penosa escravidão. E embora ela o
ignorasse, estava dando os primeiros passos que a conduziriam, à custa de
sofrimentos atrozes, rumo à verdadeira liberdade de espírito e ao encontro com
o grande Senhor a Quem já amava antes de conhecer.
Sim, desde muito pequena, Bakhita
deleitava-se em contemplar o Sol, a Lua, as estrelas e as belezas da natureza,
perguntando-se maravilhada:
“Quem é o patrão destas coisas
tão bonitas? E sentia uma grande vontade de vê-lo, de conhecê-lo, de
prestar-lhe homenagem”.
Ensina São Tomás de Aquino que “uma pessoa pode conseguir o efeito do Batismo pela força do
Espírito Santo, sem Batismo de água e até sem Batismo de sangue, quando seu
coração é movido pelo Espírito Santo a crer e amar a Deus e a arrepender-se de
seus pecados”. 2 É o que se chama
Batismo “de desejo”, ou “de penitência”. Apoiando-nos nessa doutrina, podemos
supor que na alma admirativa da escrava sudanesa brilhava a luz da graça
santificante, muito antes de ela receber o Batismo sacramental.
Para Bakhita, porém, apenas começara
a terrível série de padecimentos que se prolongaria durante 10 anos. Tal foi o
choque produzido em seu espírito pela violência do sequestro, que ela
esqueceu-se até do próprio nome. Assim, quando foi interrogada pelos bandidos,
não pôde pronunciar sequer uma palavra. Então um deles disse-lhe: “Muito bem.
Chamar-te-emos Bakhita”. Em sua voz havia um acento irônico, uma vez que este
nome, em árabe, significa “afortunada”.
Padecimentos no cativeiro
Chegando a um povoado, Bakhita foi
introduzida numa cabana miserável e trancada num quarto estreito e escuro, onde
permaneceu durante um mês. “Quanto eu tenha sofrido naquele
lugar, não se pode dizer com as palavras”, escreveria ela mais
tarde. Por fim, depois desses dias nos quais a porta não se abria senão para
deixar passar um parco alimento, a prisioneira pôde sair, não para ser posta em
liberdade, mas para ser entregue a um traficante de escravos que acabava de
adquiri-la.
Bakhita haveria de ser vendida cinco
vezes sucessivas, aos mais variados patrões, exposta nos mercados, presa pelos
pés a pesadas correntes e obrigada a trabalhar sem descanso para satisfazer os
caprichos de seus amos. Colocada a serviço da mãe e da esposa de um general, a
jovem escrava ali enfrentou os piores anos de sua existência, como ela mesma
descreve: “As chicotadas caíam em cima de nós sem misericórdia; de modo que
nos três anos que estive a serviço deles, não me lembro de ter passado um só
dia sem feridas, porque não havia ainda sarado dos golpes recebidos e recebia
outros ainda, sem saber a causa. […] Quantos maus tratos os escravos recebem
sem nenhum motivo! […] Quantas companheiras minhas de desventura morreram pelos
golpes sofridos!”.
Além desses e de outros tormentos,
fizeram-lhe uma tatuagem que a obrigou a permanecer imóvel sobre sua esteira
por mais de um mês. Bakhita conservou até o fim da vida 144 cicatrizes sobre o
corpo, além de um leve defeito ao caminhar.
Certa vez, interrogada sobre a
veracidade de tudo quanto fora contado a seu respeito, ela afirmou ter omitido
em suas narrativas detalhes verdadeiramente espantosos, vistos apenas por Deus
e impossíveis de serem ditos ou escritos. Entretanto, a mão do Senhor não a
abandonou sequer um instante. Mesmo nos piores momentos, Bakhita sentia dentro
de si uma força misteriosa que a sustentava, impelindo-a a comportar-se com
docilidade e obediência, sem nunca se desesperar.
Proteção amorosa de Deus
Anos mais tarde, lançando um olhar
sobre seu passado, reconhecia a intervenção divina nos acontecimentos de sua
vida: “Posso dizer realmente que não morri por um milagre do Senhor, que
me destinava a coisas melhores”. E a Ele manifestava sua gratidão: “Se eu
ficasse de joelhos a vida inteira, não diria, nunca, o bastante, toda a minha
gratidão ao bom Deus”.
Prova dessa proteção amorosa de Deus,
que a acompanhou desde a infância, foi a preservação de alma e de corpo na qual
se manteve, mesmo em meio às torturas, sem que jamais sua castidade fosse
atingida. “Eu estive sempre no meio da lama, mas não me sujei. […] Nossa
Senhora me protegeu, ainda que eu não A conhecesse. […] Em várias ocasiões me
senti protegida por um ser superior”.
A mudança para a Itália
Em 1882, o general que a comprara
teve de retornar à Turquia, seu país, e pôs à venda seus numerosos escravos.
Bakhita, fazendo jus a seu nome, logo despertou a simpatia do cônsul italiano
Calixto Legnani, que se dispôs a adquiri-la. “Desta vez fui verdadeiramente
afortunada, porque o novo patrão era bastante bom e começou a querer-me tanto
bem”.
Embora o cônsul não pareça ter-se
esforçado em iniciar nas verdades da Fé a jovem escrava, durante os anos em que
esta viveu em sua casa, este período foi para ela a aurora do encontro com a
Igreja. Como católico que era, Legnani tratou Bakhita com bondade. Ali não
havia castigos, pancadas, nem mesmo repreensões, e ela pôde gozar da doçura
característica das relações entre aqueles que procuram cumprir os mandamentos
da caridade cristã.
Ante o avanço de uma revolução
nacionalista no Sudão, Calixto Legnani teve de voltar para a Itália. A pedido
de Bakhita, levou-a consigo. Porém, chegados a Gênova, o cônsul cedeu a jovem
sudanesa a seus amigos, o casal Michieli. Assim, ela passou a morar na
residência desta família, em Mirano, na região do Veneto, tendo por encargo
especial o cuidado da filha, a pequena Mimina.
O encontro com seu verdadeiro Patrão e
Senhor
Estando ali, Bakhita recebeu de um amável senhor, que se interessara por
ela, um belo crucifixo de prata: “Explicou-me que Jesus Cristo,
Filho de Deus, tinha morrido por nós. Eu não sabia quem fosse […]. Recordo que
às escondidas o olhava e sentia uma coisa em mim que não sei explicar”.
Pouco a pouco, a graça foi trabalhando a alma sensível da ex-escrava africana,
abrindo-a para as realidades sobrenaturais que ela desconhecia.
Em sua Encíclica Spe Salvi, o Santo
Padre Bento XVI assim descreve o milagre que se operou no Restos mortais de
Santa Josefina Bakhita na Igreja da Sagrada Família, interior de Bakhita: em
Schio, Itália “Depois de ‘patrões’ tão terríveis que a
tiveram como sua propriedade até agora, Bakhita acabou por conhecer um ‘patrão’
totalmente diferente — no dialeto veneziano que agora tinha aprendido, chamava
‘Paron’ ao Deus vivo, ao Deus de Jesus Cristo. Até então só tinha conhecido
patrões que a desprezavam e maltratavam ou, na melhor das hipóteses, a
consideravam uma escrava útil. Mas agora ouvia dizer que existe um ‘Paron’
acima de todos os patrões, o Senhor de todos os senhores, e que este Senhor é
bom, a bondade em pessoa. Soube que este Senhor também a conhecia, tinha-a
criado; mais ainda, amava-a. Também ela era amada, e precisamente pelo ‘Paron’ supremo,
diante do qual todos os outros patrões não passam de miseráveis servos. Ela era
conhecida, amada e esperada; mais ainda, este Patrão tinha enfrentado
pessoalmente o destino de ser flagelado e agora estava à espera dela ‘à direita
de Deus Pai’”. 3
Uma inesperada decisão cheia de
valentia
Mais sofrimentos ainda a aguardavam,
embora de ordem muito diversa dos anteriormente suportados: Deus lhe pediria
uma prova de sua entrega, de sua renúncia a tudo, em razão do amor a Ele,
oferecida de livre e espontânea vontade.
Quando Bakhita, já instruída na
Religião Católica pelas Irmãs Canossianas de Veneza, preparava-se para receber
o Batismo, sua patroa quis levá-la de novo ao Sudão, onde a família Michieli
resolvera fixar-se definitivamente. De caráter flexível e submisso, acostumada
a se considerar propriedade de seus donos, revelou ela, naquela conjuntura, uma
coragem até então desconhecida mesmo pelos seus mais próximos. Temendo que
aquela volta pusesse em risco sua perseverança, negou-se a seguir sua senhora.
As promessas de uma vida fácil, a
perspectiva de rever sua pátria, a profunda afeição a Mimina e a gratidão a
seus amos, nada disso pôde mudar sua decisão de dar-se a Jesus Cristo para
sempre. Bakhita mostrara-se sempre dócil a seus superiores. Agora manifestava
de outra forma essa virtude, obedecendo mais a Deus do que aos homens (cf. At
4, 19). “Era o Senhor que me infundia tanta firmeza, porque queria
fazer-me toda sua”.
A entrega definitiva a Deus
Tendo saído vitoriosa dessa batalha,
Bakhita foi batizada, crismada e recebeu a Eucaristia das mãos do Patriarca de
Veneza, no dia 9 de janeiro de 1890. Foram-lhe postos os nomes de Josefina
Margarida Afortunada. “Recebi o santo Batismo com uma alegria que só
os Anjos poderiam descrever”, narraria mais tarde.
Pouco depois, querendo selar sua
entrega a Deus de maneira irreversível, solicitou seu ingresso no Instituto das
Filhas da Caridade, fundado por Santa Madalena de Canossa, a quem devia sua
entrada na Igreja. Na festa da Imaculada Conceição, em 1896, após cumprir seu
noviciado com exemplar fervor, Josefina pronunciou seus votos na Casa-Mãe do
Instituto, em Verona.
A partir daí sua vida foi um
constante ato de amor a Deus, um dar-se aos outros, sem restrições, nem
reservas. Ora encarregada de funções humildes, como a cozinha ou a portaria,
ora enviada em missão através da Itália, a santa sudanesa aceitava com
verdadeira alegria tudo quanto lhe ordenavam, conquistando a simpatia daqueles
que a rodeavam, sem se cansar de dizer: “Sede bons, amai o Senhor, rezai
por aqueles que não O conhecem”.
Sobre o espírito missionário de
Bakhita comenta Bento XVI em sua encíclica: “A libertação recebida através
do encontro com o Deus de Jesus Cristo, sentia que devia estendê-la, tinha de
ser dada também a outros, ao maior número possível de pessoas. A esperança, que
nascera para ela e a ‘redimira’, não podia guardá-la para si; esta esperança
devia chegar a muitos, chegar a todos”. 4
Submissão até o fim
Por fim, após mais de 50 anos de
frutuosa vida religiosa, durante os quais suas virtudes se acrisolaram no fogo
da caridade, Bakhita sentiu a morte aproximar-se. Atacada por repetidas
bronquites e pneumonias que foram minando sua saúde, suportou tudo com
fortaleza de ânimo. Em suas últimas palavras, proferidas pouco antes de seu
falecimento, deixou transparecer o gozo que lhe enchia a alma: “Quando uma pessoa ama tanto uma outra, deseja ardentemente ir
para junto dela: por que, então, tanto medo da morte? A morte nos leva a Deus”.
Em 8 de fevereiro de 1947, a Irmã
Josefina recebeu os últimos Sacramentos, acompanhando com atenção e piedade
todas as orações. Avisada de que aquele dia era um sábado, seu semblante
pareceu iluminar-se e exclamou com alegria: “Como estou contente! Nossa
Senhora, Nossa Senhora!”. Foram estas suas últimas palavras antes de
entregar serenamente sua alma e encontrar-se face a face com o “Paron”, que desde pequenina ansiava por conhecer.
Seu corpo, transladado para junto da igreja, foi objeto da veneração de
numerosos fiéis, que durante três dias ali afluíram, desejosos de contemplar
pela última vez a querida Madre Moretta, como era carinhosamente conhecida, que
com tanta bondade os tratara sempre. Miraculosamente, seus membros
conservaram-se flexíveis durante esse período, sendo possível mover seus braços
para pôr sua mão sobre a cabeça das crianças.
Por este meio, Santa Josefina Bakhita
revelava o grande segredo de sua santidade, refletido em seu próprio corpo. A
via pela qual Deus a chamara fora a da submissão heroica à vontade divina e,
para a posteridade, ela deixava um modelo a ser seguido. A humildade, a
mansidão e a obediência transparecem em suas palavras, numa disposição
verdadeiramente sublime de sua alma: “Se encontrasse aqueles
negreiros que me raptaram, e mesmo aqueles que me torturaram, ajoelhar-me-ia
para beijar as suas mãos; porque, se isto não tivesse acontecido, eu não seria
agora cristã e religiosa”.
1Salvo indicação em contrário, todas as
citações entre aspas pertencem a DAGNINO, Ir. Maria Luísa, Bakhita racconta la
sua storia. Trad. Cecília Maríngolo, Canossiana. Roma: Città Nuova, 1989. p.
38.
2Cf. Suma Teológica, III, q. 66, a.11.
3BENTO XVI, Carta Encíclica Spe Salvi, 30/11/2007, n. 3.
4BENTO XVI, Carta Encíclica Spe Salvi, 30/11/2007, n. 3.
Revista Arautos do Evangelho fev 2009
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