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domingo, 10 de maio de 2015

São José de Calasanz

Militia est vita hominis super terram — A vida do homem sobre a Terra é uma luta” (Jó 7, 1). Quem poderia negar a grande verdade imortalizada nestas palavras do Santo Jó? Estamos neste mundo em estado de prova, num campo de batalha. Os trabalhos ou as penitências nos custam; nada, porém, é tão difícil quanto a luta.
É no combate às dificuldades internas ou externas que se abatem sobre o homem, ameaçando fazê-lo sucumbir, que ele alcança a verdadeira humildade. E ao se reconhecer contingente e necessitado do auxílio divino, não desfalecendo, alcançará a promessa do Divino Redentor: “Ao vencedor concederei assentar-se comigo no meu trono, assim como Eu venci e Me assentei com meu Pai no seu trono” (Ap 3, 21).
Tal foi a vida de São José de Calasanz: uma luta árdua e quase ininterrupta ao longo dos seus 92 anos de existência. Chamado à sublime vocação de santificar as crianças para, por este meio, resgatar cidades inteiras, sua vida foi uma contínua batalha, tão mais dolorosa “quanto as perseguições lhe advinham daqueles que mais obrigados estavam a apoiá-lo”.1
Prenúncio dos dotes futuros
Nasceu ele no povoado espanhol de Peralta de la Sal, nos confins de Aragão e Catalunha — quiçá em 1556, diz antiga tradição —, no seio de piedosa família fidalga, cujo pai era o administrador da cidade.
Sabendo ser o demônio o pior inimigo de Deus e dos homens, com apenas cinco anos decidiu exterminá-lo. Em sua mente infantil, julgava ter este malfeitor corpo visível. Armou-se de um punhal e, como não o encontrou em casa, resolveu procurá-lo campo afora. Um batalhão de crianças foi-se lhe juntando e detiveram-se todos num olival: diante daqueles olhinhos assustados, o maligno aparecera na forma de uma pavorosa sombra e aninhara-se no alto de uma oliveira. Com a arma entre os dentes, o pequeno herói subiu corajosamente pelo tronco, disposto a matá-lo. No entanto, o príncipe das trevas fez com que se quebrasse o grosso galho no qual se encontrava, para acabar com ele. A Virgem Santíssima, todavia, o protegeu e o menino se levantou ileso do chão. Era o primeiro encontro de um longo combate que haveria de durar toda a vida do Santo. “Mais tarde, ao exorcizar um possesso, confessará o demônio que naquele momento não tinha no mundo inimigo maior que José”.2
Alguns outros fatos de sua infância revelam os dons que recebera, tendo em vista sua futura missão. Previu profeticamente numerosos episódios ocorridos em família e, prenunciando o cerne de sua vocação religiosa, costumava reunir as crianças, subia numa cadeira como num púlpito improvisado e transmitia-lhes, com muita seriedade, as lições de catecismo que recebia. Depois rezavam o Rosário, com cânticos de hinos e salmos. Era o pedagogo que já pulsava em seu coração, atraindo os pequeninos para o seio da Igreja.
Esmerada educação
Recebeu as primeiras letras de seus zelosos pais e, por volta de dez anos, foi estudar gramática e humanidades em Estadilla. Ali jamais saiu de seus lábios uma palavra impertinente ou imodesta, permanecendo intacta sua inocência batismal.
Alto e robusto, tinha a compleição perfeita para seguir a carreira das armas, desejada pelo pai. Mas José o convenceu a deixá-lo estudar filosofia, na Universidade de Lérida, cátedra então considerada como base de todas as carreiras. Sua vivacidade e inteligência levaram-no a brilhantes resultados. Isto agradou muito ao pai, que o incentivou a estudar direito civil e canônico. A proposta vinha ao encontro de seu grande anelo: ser sacerdote.
Seguindo o costume da época, em 1575 recebeu a primeira tonsura das mãos do Bispo de Urgel, Diocese à qual pertencia sua terra natal, em cerimônia na Igreja do Santo Cristo, em Balaguer, e fez também um voto de virgindade perpétua aos pés de uma imagem de Nossa Senhora.
Aos 20 anos foi estudar teologia na Universidade de Valência, onde enfrentou o primeiro combate em defesa de sua pureza. Para fugir do assédio de uma dama, se transferiu para a Universidade de Alcalá de Henares.
Primeiros anos de sacerdócio
A trágica morte de seu irmão mais velho fê-lo retornar para a casa paterna, onde teve de enfrentar novas batalhas. O pai, a quem muito respeitava e queria, desejava vê-lo perpetuar o nome da família e foi penoso para o Santo manter o voto que fizera. Nesse ínterim, faleceu também a mãe.
Vencidas todas as dificuldades, foi por fim ordenado sacerdote em 17 de dezembro de 1583. Os primeiros anos de seu ministério estiveram cheios de importantes encargos que dizem muito acerca da excepcional maturidade, piedade e boa formação do jovem sacerdote. De Peralta de la Sal partiu para a Diocese de Barbastro, onde auxiliava o novo Bispo, o dominicano Felipe de Urries. Após sua morte, tornou-se secretário e confessor de Dom Gaspar de la Higuera, Bispo de Lérida; e falecido este voltou para Urgel, onde exerceu com exemplar dedicação os ofícios da secretaria capitular e era mestre de cerimônias.
Em sua Diocese de origem, além de desempenhar com habilidade delicados encargos pastorais e diplomáticos, dedicou-se com afinco aos labores próprios da vida sacerdotal: atendia Confissões, pregava, ensinava o catecismo, visitava os hospitais e assistia os encarcerados. “Neste período espanhol da vida do Santo” — afirma um dos seus mais conhecidos biógrafos contemporâneos — “devemos encontrar, descobrir, pelo menos em gérmen, o grande Calasanz do período romano: santo, educador, apóstolo social”.3
“Vá para Roma”
Estando a serviço do Bispo de Urgel, começou a ouvir em seu interior uma clara voz:
— Vá para Roma. E, em sonhos, parecia-lhe estar na Cidade Eterna, rodeado de crianças que se assemelhavam aos Anjos; os ensinava a viver como bons cristãos, os abençoava e os acompanhava às suas casas. Para ajudá-lo naquela missão de caridade se unia a ele grande número de espíritos angélicos.
Contando com o apoio do seu diretor espiritual, partiu para Roma em fevereiro de 1592, sem saber muito bem o que Deus lhe reservava...
Ali, o Cardeal Colonna o escolheu como teólogo e auditor, e o tomou como orientador e confessor de toda a sua família. Mudou-se São José para o palácio Colonna, decidido a viver na mais estrita pobreza pessoal, respeitando, entretanto, as exigências da dignidade de suas funções e nascimento, as quais o obrigavam, por exemplo, a vestir-se de seda. Ademais, aumentou os jejuns e mortificações, o tempo das orações e reduziu as horas de sono.
Começaram a se manifestar com mais brilho seus carismas. Liberava possessos, operava milagres e previa acontecimentos futuros por onde passava. Dos inúmeros casos registrados pelos cronistas, registramos aqui um dos mais belos, o qual se deu na Igreja de São João de Latrão, com uma possessa que força humana alguma podia mover. Conduzindo-a apenas com os dedos polegar e indicador, nosso Santo a fez entrar no templo e expulsou o demônio. Aos que se maravilhavam com tal prodígio disse: “É que não sabeis a virtude que possuem estes dedos pelo contato cotidiano com a Sagrada Eucaristia”.4
Delineia-se a vontade divina
Cinco anos de trabalho pastoral em Roma o puseram em contato com a juventude pobre desta cidade, e ele via não somente seus vícios desenfreados, como também sua extraordinária ignorância. Aquelas crianças “não sabiam sequer as coisas necessárias para salvar-se”.5 Esta infância abandonada comprometia as gerações futuras. De meninos bem educados em sua tenra idade se espera homens bons todo o curso da vida: “Ensina à criança o caminho que ela deve seguir; mesmo quando envelhecer, dele não há de se afastar” (Pr 22, 6). Daí a extrema necessidade de uma educação católica gratuita aos desprovidos de meios econômicos.
Procurou alguém que pudesse abraçar esta causa, mas as escolas estabelecidas não dispunham de recursos e os mestres de profissão não podiam trabalhar sem salário. Um dia, caminhando pelas ruas romanas, ouviu aquela mesma voz interior que o conduzira ao centro da Cristandade:
— Olhe, José.
Virando-se, viu um grupo de crianças do povo com brincadeiras imodestas. E a voz lhe repetiu esta frase do Salmo: “É a vós que se abandona o infortunado, sois vós o amparo do órfão” (Sl 9, 35). Estava delineada a vontade divina a seu respeito.
Era lento para tomar decisões, porém, uma vez convencido dos desígnios de Deus tinha grande firmeza de caráter e indomável energia para vencer os obstáculos que encontrasse. Aconselhando-se com seus diretores e doutos amigos, e em meio às orações e mortificações, lembrou-se das sábias palavras de São Tomás: “Aqueles que foram eleitos por Deus para alguma coisa, Ele os prepara e dispõe de modo que sejam idôneos”.6 Não mais hesitou: toda a sua vida não havia sido senão uma preparação para esta obra.
Nascem as Escolas Pias
No outono de 1597, no Trastévere, bairro pobre de Roma, nasciam as Escolas Pias. Conseguiu a casa paroquial da Igreja de Santa Doroteia e, junto com mais três sacerdotes, começou a dar a instrução clássica — leitura, escritura, aritmética e gramática —, mas seu objetivo principal era a piedade e os bons costumes. Na primeira semana se apresentaram mais de 100 meninos.
Passavam-se os anos e, atendendo a solicitações provenientes de várias cidades, as Escolas Pias se expandiam não só nos reinos da Península Itálica, como em outros países. Aumentavam as vocações para professores sacerdotes e o novo instituto religioso tomava corpo com o início da vida comunitária em sua nova Casa-Mãe, contígua à Igreja de São Pantaleão, cujo uso mais tarde lhes foi concedido.
Em 1617, o Papa Paulo V erige a Congregação Paulina dos Clérigos Regulares Pobres da Mãe de Deus das Escolas Pias — logo conhecida como dos Escolápios —, com votos simples e tendo como hábito uma capa curta sobre a batina. Nomeado superior geral, o padre Calasanz fez os votos nas mãos do Cardeal Benedetto Giustiniani, representando o Santo Padre, e adotou o nome de José da Mãe de Deus. Ele mesmo recebeu os votos de seus 14 primeiros filhos espirituais e lhes impôs o hábito, numa cerimônia privada em São Pantaleão.
No cadinho se purifica o ouro
Com a morte de Paulo V, em 1621, viajava de Bologna para Roma, a fim de participar do conclave, o Cardeal Alessandro Ludovisi, e hospedou-se na casa das Escolas Pias de Narni. Ali se encontrava São José, escrevendo as Constituições do instituto, que previu a iminente elevação deste Cardeal ao Sólio Pontifício. Não errou o Santo: poucos dias depois ele foi eleito Papa sob o nome de Gregório XV. E em novembro deste mesmo ano aprovava as referidas Constituições, elevando a congregação a Ordem Religiosa, com votos solenes e perpétuos.
Não obstante, surgiram calúnias e desejos de vingança da parte de uma minoria de religiosos que, por ambição e orgulho, não se enquadrava nas regras do instituto. Houve quem quisesse matar o fundador; apareceu um falso escolápio que roubou em vários países fazendo-se passar por membro da Ordem; mas o pior se deu quando apareceram os traidores dentro de seus santos muros, denegrindo-o de tal modo que levantaram desconfianças e suspeitas na Santa Sé. Apesar de sua longa e santa vida, coalhada de milagres conhecidos, José chegou a ser preso pelo Santo Ofício e constituiu-se uma comissão cardinalícia para estudar o caso.
As cartas e conselhos do Santo a seus filhos espirituais em todo esse período dão um admirável testemunho da grandeza de ânimo com que enfrentava esta batalha tão dura e aviltante: “O inimigo do gênero humano persegue todos os homens em geral e a cada um em particular: isto se vê principalmente nas Ordens Religiosas e hoje nos cabe a nós. Tenta a todos quanto encontra débeis na virtude, sobretudo na da humildade”;7 “A perfeição da virtude [...] consiste em suportar com paciência as calúnias e os ultrajes que nos vêm daqueles a quem fizemos o bem, e em fazer-lhes mais bem ainda, por amor a Deus”;8 “Não há mal tão grande que não tenha remédio, e estou certo de que suprirá Deus naquilo que faltaram os homens. Permita a Divina Misericórdia que todas as nossas coisas terminem para sua maior glória”.9
Os alunos das Escolas Pias em nada foram afetados pela perseguição que sofriam seus mestres, pois as atividades escolares continuaram em todas as casas, como se nada acontecesse. Em São Pantaleão, foco do litígio, dava São José exemplo de paz de alma e temperança, sem jamais se alterar ou deixar suas aulas.
No meio das provações foi-lhe dado conhecer o porvir da Ordem, que seria destruída, mas renasceria mais pujante que nunca para continuar sua missão na Igreja: “Espero que tudo o que se fez se desfaça com a ajuda de Deus, e que triunfará a verdade sobre a inveja. Tende constância, como os que amam o instituto, porque chegará o dia em que renascerá mais glorioso do que nunca”.10
De fato, realizou-se uma Visita Apostólica totalmente manipulada por seus inimigos que, distorcendo a realidade, com falsos testemunhos e acusações, conseguiram a condenação pontifícia, em 16 de março de 1646. No dia seguinte, o secretário do Cardeal Vigário reuniu todos os padres no oratório de São Pantaleão e leu o breve de redução da Ordem a uma congregação sem votos, o que era “uma supressão camuflada, uma condenação à morte lenta, mas inexorável. [...] Ao terminar a leitura, no silêncio embaraçoso e dramático do momento, se ouviu a voz do já definitivamente destituído superior geral, padre José de Calasanz, que repetia as palavras de Jó: ‘O Senhor deu, o Senhor tirou: bendito seja o nome do Senhor!’ [1, 21]. Era o final. A hecatombe”.11
Estava destruída uma obra de 50 anos! Não podia haver maior humilhação. No entanto, ele sabia que os homens passam, mas as obras de Deus permanecem e florescem quando depuradas pelas provas: é no cadinho que se purifica o ouro...
Da cruz à glória
Sua única “vingança” consistiu em rezar por seus inimigos. “Nas grandes desgraças que nos vieram, seria grande loucura determo-nos nas causas segundas, que são os homens, não vendo a Deus que as envia para nosso maior bem”,12 disse em confidência a um de seus sacerdotes. “Quanto mais nos humilhemos, mais nos exaltará Deus”,13 afirmou nas vésperas da morte. Em seu processo de beatificação, declarou o Cardeal Crescenzi: “Não posso deixar de dizer que seu maior milagre foi a paciência, e sem embargo era de temperamento fogoso e inclinado à cólera”.14
Em agosto de 1648, dois anos depois daqueles terríveis acontecimentos, chegou sua hora de despedir-se desta vida. A Providência o fazia beber o cálice das amarguras até o fim, pois lhe revelava todas as penúrias e dificuldades pelas quais passariam seus filhos espirituais nos próximos oito anos, até que a Ordem se restabelecesse. Contudo, Nossa Senhora o veio visitar, acompanhada de 250 escolápios falecidos até aquela data — todos tinham se salvado, à exceção de um. Consolando-o, prometeu auxiliá-lo em seu momento derradeiro, como o fizera em toda a sua vida.
No dia 22, sentindo-se próximo do fim, recebeu o viático e passados três dias entregou sua alma ao Criador. Multidões acorriam a vê-lo pela última vez e milagres se operavam em quantidade. A vox populi já o exaltava, antecipando o que a Igreja declararia 100 anos depois, ao concluir um processo com documentos e provas indubitáveis: José de Calasanz praticou as virtudes em grau heroico.
Atualmente, existem pelo menos outras 11 congregações religiosas dedicadas à educação que reconhecem ter encontrado sua fonte de inspiração na Ordem Escolápia. “A semente que ele semeou em Santa Doroteia do Trastévere, há 400 anos, frutificou e se estendeu por todo o mundo. As Escolas Pias hoje estão implantadas em 26 países de quatro continentes, e os conceitos de gratuidade e universalização do ensino que preconizam são aceitos em quase todos os sistemas educativos”.15
Com quanta razão afirmou Pio XII, ao comemorar o terceiro centenário de sua beatificação: “A Calasanz pode-se aplicar de modo super excelente a promessa do Salmo: Qui seminant in lacrimis, in exultationen metent (Ps 125, 5). [...] O 25 de agosto de 1648 é ainda tempo da dolorosa semeadura, das lágrimas, da prova crucificante; ao mesmo tempo que semeador, ele era o grão de trigo lançado no sulco para morrer e germinar. Mas eis que o trigo nasce, cresce, amadurece, e o semeador, vivendo na eternidade de luz, vê, encoraja, abençoa os ceifeiros”.16
1TIMÓN-DAVID, SCJ, Joseph-Marie. Vida de San José de Calasanz, fundador de las Escuelas Pias. Zaragoza: La Editorial, 1905, p.XXIII.
2 Idem, p.3.
3 SÁNTHA, SchP, György. Prenotandos históricos. In: SÃO JOSÉ DE CALASANZ. Su obra. Escritos. Madrid: BAC, 1956, p.9.
4 TIMÓN-DAVID, op. cit., p.44.
5 SÁNTHA, op. cit., p.57.
6 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.27, a.4.
7 SÃO JOSÉ DE CALASANZ. Carta ao Pe. Melchior Alacchi, em 1633, apud TIMON-DAVID, op. cit., p.245.
8 TIMÓN-DAVID, op. cit., p.252.
9 SÃO JOSÉ DE CALASANZ. Carta ao Pe. Gavotti, de 16/3/1646, apud TIMÓN-DAVID, op. cit., p.341.
10 SÃO JOSÉ DE CALASANZ. Carta de 3/3/1646, apud TIMÓN-DAVID, op. cit., p.339.
11 GINER GUERRI, SchP, Severino. San José de Calasanz. Madrid: BAC, 1985, p.254.
12 TIMÓN-DAVID, op. cit., p.360.
13 Idem, p.383.
14 Idem, p.450.
15 DOMÈNECH I MIRA, Josep. José Calasanz. In: Perspectivas: revista trimestral de educación comparada. Unesco: Oficina Internacional de Educación. Paris. Vol.XXIII. N.3-4 (1993); p.819-820.

16 PIO XII. Discurso pelo III centenário da beatificação de São José de Calasanz, de 22/11/1948.

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