Vamos recordar aqui um episódio da Idade Média em que está envolvido Aquele que é o próprio símbolo da amenidade cristã: Nosso Senhor Jesus Cristo Menino. O fato é extraído de uma antiga tradução portuguesa da Vie des Saints (“Vida dos Santos”), da Bonne Presse de Paris. Embora sempre pese a dúvida quanto à credibilidade de narrações como essa, não se pode negar que, segundo a doutrina católica, tal acontecimento poderia ter se verificado. Ou seja, nada nele contraria a ortodoxia cristã, e está na onipotência divina o realizar esplêndidos milagres como o do seguinte exemplo:
São Bernardo de Morlat, da Ordem dos Dominicanos, era sacristão no convento de Santarém, em Portugal. Tomara ele como discípulos dois meninos, filhos de um cavaleiro de Santarém, os quais receberam logo o hábito e a tonsura monástica, e daí por diante passavam os dias no convento, ajudando as Missas e estudando com frei Bernardo.
A pedagogia antiga preceituava que as crianças se vestissem desde pequenas como pessoas adultas. Por isso vemos nas pinturas de pouco antes da Revolução Francesa as meninas com saia balão, os meninos com trajes de homens que poderiam se dirigir a uma reunião de negócios ou a um evento na Corte. Os trajes propriamente infantis foram introduzidos pelo Marquês de Girardin, no Jardim do Luxembourg, pouco antes da Revolução Francesa. Eram inspirados na moda inglesa e visavam não mais a apresentar a criança com a compostura e gravidade de um adulto, e sim como um ente que pula, salta e não se quebra. Então, as roupas triviais que hoje conhecemos. A Igreja, porém, sempre mais conservadora do que a sociedade temporal, ainda preservou esse costume.
Assim, podemos também imaginar esses dois meninos da narração, recebidos na Ordem Dominicana e vestidos de “fradinhos”. É-nos familiar o hábito de São Domingos. Aliás, um dos predicados da Igreja é que ela sabe, como nenhuma outra instituição, a partir das coisas muito simples, produzir efeitos estéticos extraordinários. O hábito dominicano é uma túnica com escapulário brancos, cobertos por uma grande capa negra; por cima desta, sobressai o capuz branco do escapulário. É a simplicidade extrema da Igreja, aliada ao magnífico senso da beleza que ela coloca em tudo quanto faz.
O convite para um banquete no Céu
Prossegue a narração:
Todos os dias os dois meninos saíam bem cedo da casa de seus pais para se dirigirem ao convento, levando consigo a provisão diária. Uma manhã, com uma familiaridade toda infantil, sentaram-se aos pés de uma imagem de Nossa Senhora, que trazia ao colo o Menino Jesus, diante da qual sempre rezavam o Rosário, para em seguida tomarem o seu desjejum. Com a mesma candura, concertaram entre eles que não seria muito gentil comerem a refeição sem para ela convidarem o outro Menino ali presente. E, todas as vezes, o hóspede divino dignou-se aceitá-lo, até que se tornou desnecessário convidá-Lo. Mal os pequenos entravam na capela e abriam o embrulho de alimentos, o Menino Jesus lá estava entre eles. Isso tornou-se tão familiar que não só comiam juntos, mas também conversavam, e Jesus os ajudava nas dificuldades que tinham no estudo.
Apraz imaginar essas duas crianças fazendo toda sorte de perguntas, e Nosso Senhor que lhes responde, no aconchego de uma capelinha do interior de Portugal. Contudo, ao lado de tanta candura, não tarda em se manifestar o drama que frequentemente aparece nas relações entre a criatura e o Criador: a miséria humana vai mostrar-se nesses meninos magníficos, do modo mais incoerente e mais inesperado. E nesse conto encantador, ouve-se de súbito o guizo da serpente, como no mais belo do Paraíso veio a tentação.
Uma coisa somente surpreendia os dois inocentes: é que o Menino Jesus nunca trazia sua quota de comida, enquanto eles eram obrigados a conseguir mais alimentos, embora seus pais fossem muito pobres. “Não haverá muitas coisas boas no Paraíso?” — perguntavam. A surpresa dos dois degenerou em murmúrios. E resolveram confiar a frei Bernardo suas angústias. Esse, tendo examinado bem o relato, ficou tocado por tão grande prodígio. Rogou a Deus que o iluminasse e o fizesse conhecer seus desígnios sobre os meninos. Um dia, dirigindo-se aos pequenos discípulos, ele sugeriu: “Se o Menino Jesus continua não trazendo nenhuma provisão, não vos agradaria que Ele vos convidasse, ao menos uma vez, à casa de seu pai?”
A saída do padre é muito inteligente. Não é pedir ao Menino Jesus que traga pão, que traga comida, mas rogar que os deixe ver o Céu.
“Oh, sim! gostaríamos muito”, responderam, “mas Ele nunca nos falou sobre isso”. Disse o frade: “É preciso que Lhe peçais. Se Ele atender vosso pedido, não tereis perdido nada, pois de um só convite d’Ele recebereis mil vezes mais do que Lhe destes”.
Note-se que o padre sentiu necessidade de pôr o argumento em termos um tanto comerciais, a fim de mover aquelas almas, entretanto tão cândidas, tão puras. Não nos façamos ilusão! Essa é a criatura humana e assim todos nos devemos olhar. Ou há muita vigilância sobre nossas más inclinações, ou saem misérias como essas.
E continuando a falar-lhes, frei Bernardo fez entrever simbolicamente o palácio do Pai Celeste, com suas magnificências e delícias, e concluiu: “Quando o Menino da capela vier novamente comer convosco, não vos esqueçais de pedir que vos convide, por sua vez. Mas dizei a Ele que quero também ser convidado. Não vos permito que vades sozinhos à festa. Eu vos acompanharei, ou tereis de recusar o convite, porque desejo muito ter parte neste festim.
No dia 21 de Maio de 1227, segunda-feira das Rogações, o Menino Jesus desceu de novo para tomar o desjejum com as duas crianças. Terminada a refeição, antes que o Divino Infante se pusesse de pé sobre o pedestal de pedra para subir aos braços de Nossa Senhora, os dois pequenos expressaram timidamente o seu desejo:
“Não nos convidais também uma vez?” Jesus fez um sinal de afirmação, enquanto os pequenos acrescentavam:
“Nosso mestre gostaria de participar também da festa.
Jesus então lhes disse: “Dentro de três dias será a Ascensão. Haverá grande alegria na casa de meu Pai. Dizei a frei Bernardo que Eu o convido convosco à minha mesa, onde estareis com os Anjos e os Santos”.
Contentíssimos, os dois correram para comunicar ao mestre a boa notícia. Ao chegarem a suas casas, avisaram aos pais que dentro de três dias iam participar de um banquete no Céu. Frei Bernardo comunicou o mesmo ao seu Diretor Espiritual. Durante os três dias, mestre e discípulos permaneceram em oração, ajoelhados ao pé do altar do Rosário. O frade explicou aos meninos o sentido do convite de Jesus e eles, abrasados de amor, não queriam outra coisa senão deixar este mundo e entrar sem tardança na verdadeira Pátria.
Chegou o dia da Ascensão. Todas as missas já haviam sido celebradas na aldeia. Enquanto os frades estavam no refeitório, frei Bernardo dirigiu-se ao altar do Rosário, acompanhado por seus acólitos, e começou o Santo Sacrifício. Os dois discípulos receberam com grandíssima devoção, pela primeira vez, o Pão Eucarístico. Chegou a hora da ação de graças. Os três ajoelharam-se nos degraus do altar, aguardando com confiança o momento de partida para a morada celeste. Mais tarde, quando a comunidade voltou à igreja para a recitação das orações após a refeição, encontraram o frade e os dois acólitos imóveis, as mãos levantadas ao céu e os olhos fixos no Menino Jesus. Aproximaram-se deles e — oh! morte preciosa e mil vezes digna de inveja! — constataram que haviam trocado a vida terrestre pela bem-aventurança eterna.
Os seus corpos foram enterrados ao pé do altar. Em 1577, quando foi aberto o túmulo para a transladação das relíquias, os ossos sagrados exalavam um delicioso perfume. A imagem da Virgem com o Menino Jesus conserva-se até hoje num rico tabernáculo.
Candura e amenidade, vigilância e holocausto
Aí temos a candura com seus dois contrafortes: a vigilância e o holocausto. Sem tais complementos, ela jamais é autêntica. O homem verdadeiramente cândido deve ter uma vigilância constante sobre si mesmo, noite e dia, uma vigilância infatigável, para não ceder aos maus impulsos inumeráveis que formigam no interior de cada alma. Este é um primeiro ponto a considerar.
Em segundo lugar, quando é genuína, a candura recebe o convite para o holocausto. Quer dizer, há um determinado momento em que a Providência pede a ela sua própria imolação. Donde vermos esses meninos, que tiveram seu mau momento, serem perdoados e, depois, convidados para o holocausto. Seguramente souberam que iam morrer. Foram consultados sobre se desejavam a morte e a aceitaram. Tiveram suas almas levadas para o Céu, envoltas na doçura e na suavidade dos que adormecem no Senhor.
Depois desse relato que tanto nos fala da inocência medieval, fica-nos muito menos a imagem das duas crianças ou a de frei Bernardo, do que a figura do Menino Jesus, tão bondoso, tão misericordioso, tão capaz de condescender a todos os desejos dos homens e entrar com eles nessa familiaridade. D’Ele está dito na Escritura: “Minhas delícias consistem em estar com os filhos dos homens” (Pr. 8, 31). Ao mesmo tempo, entretanto, pedindo um preço, igual ao que Ele próprio pagou: o preço do holocausto. Em certo momento Ele nos convida ao sacrifício e é preciso aceitá-lo. Então a vida termina maravilhosamente bem.
Candura e amenidade, vigilância e conformidade com o sacrifício eram disposições de alma correntes na Idade Média, as quais merecem ser lembradas e imitadas pelos homens de hoje, assim como pelos das épocas vindouras.
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