Segundo
uma poética lenda, as armas do Rei Clóvis eram simbolizadas por figuras de
sapos; quando ele e seus francos foram batizados, tais símbolos se
transformaram em flores de lis. Bela imagem que poderia resumir a história de
Santa Clotilde, cujo exemplo de virtudes fez despontar a aurora da santidade no
Reino franco.
A respeito de Santa Clotilde,
Pourrat1, no livro “Saints de France”,
diz o seguinte:
Santa Clotilde era princesa burgúndia, tendo visto toda a sua família
assassinada por seu tio Gondebaud, que poupou somente Clotilde e sua irmã,
tendo feito educá-las na religião católica, embora fosse ele ariano. Clóvis,
Rei dos francos, tendo ouvido falar da beleza e virtudes da princesa, pediu-a
em casamento ao tio. Não a obtendo, dirigiu-se diretamente a Clotilde, enviando-lhe
seu anel real como penhor, através de um emissário. Clotilde aceitou.
Embora se tratando de um pagão, e temendo então magoá-lo, Gondebaud permitiu
o noivado. Casando-se com Clóvis, a princesa tudo fez para sua conversão. Nada
obteve de início, pois seus filhos morriam logo após o Batismo e Clóvis
atribuía o fato ao Sacramento. Clotilde rezava e penitenciava-se, até que raiou
o dia da vitória de Tolbiac, quando o Rei franco, vencedor, fez-se batizar com
seus soldados por São Remígio. Estava fundado o primeiro reino católico
europeu. [...]
Santa Clotilde, sem dúvida, recebeu uma missão especial: ela tudo
transformou. Uma lenda comum em Estrasburgo conta que no dia do Batismo dos
francos, em Reims, um Anjo trouxe a Clotilde as armas do novo reino: as de
Clóvis eram três sapos, que se transformaram em três flores-de-lis.
O valor das lendas maravilhosas
Notamos aqui mais uma
manifestação do maravilhoso medieval. As armas do Rei pagão eram três sapos, mas,
ao receber ele o Batismo, tornaram-se flores de lis 2. É a ação da Igreja, tocando
o que é natural e decaído e transformando-o.
Não encontro imagem mais bonita
do que essa de sapos que se transformam em flores-de-lis. A Bíblia fala de
transformação das pedras em filhos de Abraão, que é uma coisa linda, mas esta é
muito poética e bonita.
Pode-se imaginar um sapo — com
aquela pele rugosa, aquele aspecto horrível dos pântanos, aquela suficiência cafajeste,
aquela falta de respiração dando ideia de sua avidez — que se transforma e se
torna um lírio maravilhoso. Esta é a transformação que as almas, por ocasião do
Reino de Maria, devem sofrer.
Aí está o valor das lendas e do
maravilhoso: às vezes, dizem muito mais do que um acontecimento autenticamente histórico.
Toda a história de Santa Clotilde pode basear-se nisto: transformação de sapos
em flores-de-lis.
Alto senso católico
Ela era de um meio ariano.
Católica, casou-se com um rei pagão.
Os bárbaros que invadiram a
Europa nos séculos IV e V eram arianos que tinham ódio ao nome católico. Eles
haviam sido pervertidos, na passagem do paganismo para o arianismo, por um
bispo ariano, Úlfilas, que percorrera as regiões dos bárbaros. Portanto, a
invasão dos bárbaros foi a dos hereges arianos, que já tinham atormentado de
todos os modos o Império Romano do Oriente e o Império Romano do Ocidente. Este
foi o sentido fundamental dos acontecimentos.
Com a invasão da Europa, um dos
antigos reinos, que decorreu da ocupação realizada na antiga colônia romana da
Gália, foi o borguinhão. O Rei dos borguinhões se tornara ariano. Era irmão do
antigo monarca católico, o qual ele havia destituído, e se proclamou rei. Tinha
uma sobrinha, filha do Rei católico deposto e morto, mantida por ele na corte
como uma espécie de “Gata Borralheira”. Tudo leva a crer que existia entre os
borguinhões um partido católico, o qual olhava para essa sobrinha com esperança.
De outro lado havia Clóvis, que
era um pagão, mas adotou a causa da Igreja em toda a Gália, mesmo antes de se
converter ao Catolicismo. Ele resolveu pedir essa princesa em casamento, e
colocar assim de seu lado o partido católico dos borguinhões, como também os
católicos de todo o resto da Gália. E assim ele se casou com ela.
Essa atitude de Santa Clotilde,
aceitando um pagão para sair do domínio dos hereges, revela um alto senso católico.
Ela se casa com Clóvis e começa a praticar a Religião Católica ao lado dele.
Clóvis viu Deus em Santa Clotilde
Eles discutiam, tinham alguma
polêmica, e Clóvis perguntou-lhe algo sobre a religião dela? Nunca encontrei notícias
a respeito disto, no pouco que tenho lido sobre o assunto. Mas tudo me leva a
crer que não, e tenha sido apenas a prática constante da Religião que foi
causando impressão no espírito de Clóvis.
Isso sucedeu até que numa
batalha, na qual, se não me engano, ele lutava precisamente contra os
borguinhões, sentiu-se perdido. Resolveu então fazer uma promessa a Deus, que
ele chamava o “Deus de Clotilde”: se ganhasse, ele se converteria à Religião
Católica.
Recordo-me do caso contado por
Dom Chautard3, sobre o advogado que esteve em Ars, no século XIX, viu o Santo
Cura de Ars e voltou para Paris. Perguntado sobre o que vira, respondeu
simplesmente: “Vi Deus num homem.”
Com certeza, Clóvis tinha visto
Deus em Santa Clotilde, e quando fez a promessa de se converter ao “Deus de
Clotilde”, via que esse Deus era verdadeiro e vivo.
Santa Clotilde teve filhos
criminosos que se jogaram uns contra os outros, a par de um filho santo, que
foi o famoso Saint Cloud. Ela foi de uma raça de sapos transformada numa pura
flor-de-lis 4. Teve junto de si algumas outras flores-de-lis, mas o resto era
sapo em via de transformação.
O sol da santidade começou a brilhar para os
francos
E aí vemos a tragédia de sua
vida. Era tão grande o peso do paganismo, dos maus costumes antigos, que se tornava
necessária uma virtude heróica para não cair nos pecados do paganismo, ainda
que se tivesse sido baptizado como católico.
Houve um fato curioso de uma
índia muito piedosa, que o Padre Anchieta encontrou em São Paulo, quando esta
não era mais do que o Pátio do Colégio. A índia estava bastante triste e ele perguntou-lhe
o que sentia. Ela: “Estou, padre, com saudade de comer o braço de uma criança
tapuia…” Ela era batizada, comungava e não comeria o braço da criança, mas
tinha vontade de fazê-lo…
O pessoal que rodeava Santa
Clotilde não era antropófago, mas pouco faltava para que o fossem. Eram
batizados, mas tinham saudades das coisas bárbaras. Ela no meio de tudo isto,
era uma flor-de-lis das mais perfeitas e admiráveis, ensinando a virtude, a
mansidão e dando também admiráveis exemplos de senso de sua própria dignidade.
Santa Clotilde é uma espécie de
Chanteclair 5 daquela época: é a primeira que faz raiar o sol. Nela o sol da santidade
começa a brilhar para os francos, trabalha para a conversão do Rei e dá
exemplos das virtudes que o reino acabará por praticar. É uma santa admirável,
que está na aurora dessa transformação dos sapos em flores-de-lis.
É muito oportuno que lhe
peçamos nos consiga a graça de vermos a hora da outra transformação de sapos em
flores-de-lis. E, quando houver o Grand Retour e se começar a trabalhar para a
construção do mundo futuro, sejamos o que ela foi no mundo dela: os precursores
de um admirável progresso. Esse, então, verdadeiro, porque progresso em Nosso
Senhor e em Nossa Senhora.
Plinio Correa de Oliveira Extraído de conferências
1) Henri Pourrat (* 1887 - †
1959). Escritor francês.
2) Flor de lis: símbolo
heráldico da Casa Real Francesa.
3) Jean-Baptiste Chautard (* 1858 - † 1935). Cisterciense trapista, abade
do mosteiro de Sept-Fons (França). Entre outras obras, escreveu “A alma de todo
apostolado”, à qual Dr. Plinio se refere na presente conferência.
4) Flor-de-lis:
Açucena-formosa, uma das espécies de lírio.
5) Peça teatral escrita por
Edmond Rostand em 1904.
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