A extraordinária epopeia apostólica de São Francisco Xavier, enfrentando toda sorte de riscos a fim de conquistar os povos do Oriente para a Igreja Católica, faz-nos compreender o teor do verdadeiro ideal: mais do que a realização de uma grande coisa, é o glorificar a Deus, submetendo-se humildemente à sua superior vontade.
Pode-se dizer que o significado de certas palavras sofre transformações ao longo dos tempos, de acordo com o entendimento das gerações que se sucedem umas às outras. Exemplo característico, a meu ver, são os termos “ideal” e “idealismo”.
Luminosidade e harmonia sonora
A palavra “ideal” possui uma ressonância peculiar, luminosidade, harmonia sonora — quase diria visual — que lhe dão significado próprio. De algum modo ela impele o menos poético dos homens a pronunciá-la como um cântico: ideal!
Quando se diz que alguém tem ideal, entende-se tratar-se de um valor maior que o simples e vil desejo de lucrar vantagem pessoal. Não se aplica, no sentido literal e plano do termo, a afirmações como esta: “Fulano cultiva um ideal, o de tornar-se riquíssimo”. Isto se refere a uma meta, um objetivo, uma ambição, não a um ideal.
Dizer-se de um indivíduo que ele é um homem ambicioso, pois deseja fazer coisas grandes, pode ser até um elogio. Porém, há diferença entre uma coisa grande e uma grande coisa.
O genuíno idealismo de São Francisco Xavier
Imaginemos, por outro lado, São Francisco Xavier dirigindo-se para a Índia e o Japão, como primeiro passo para alcançar também a China. Naqueles idos do século XVI, viajar da Europa para o Extremo Oriente podia representar tanto ou mais perigo do que, hoje, uma expedição de astronautas rumo à Lua.
O discípulo de Santo Inácio enfrentou riscos e dificuldades impensáveis, imbuído de um anelo muito superior ao dos mais audaciosos comerciantes da época: ele ia em busca de almas para Nosso Senhor Jesus Cristo. Viaja com o coração estraçalhado de dor diante das devastações que a Pseudo-Reforma produzia na cristandade européia, e talvez pensasse: “Vou para a Índia, Japão, China, convidar novos povos e almas ainda não evangelizadas a corresponderem à graça, e assim trazê-las para a fé católica que agora se mostra abalada no Ocidente.”
Quem procede desta maneira não realiza uma coisa grande, mas uma grande coisa. Isto se chama ideal. E todos os reluzimentos que esta palavra possa ter, fulguram com toda a sua beleza quando os esforços são empregados na mais alta das finalidades: salvar almas para a glória de Deus e de Maria Santíssima. Nesse ideal não está presente o egoísmo; para alcançá-lo, o homem entrega toda a sua vida, disposto a passar pelos maiores riscos, dissabores, perigos, sofrimentos, preocupado unicamente com o serviço divino.
Eis o verdadeiro ideal, autenticamente glorioso. E ao considerarmos essa disposição de São Francisco Xavier, nós o veneramos e lhe imploramos: rogai por nós.
Na aparência, um ideal fracassado
Contudo, a vida de São Francisco Xavier pode parecer, até certo ponto, frustrada. Como se sabe, seu maior objetivo era conquistar a China para Deus. Esteve na Índia e a evangelizou. Visitou o Japão e ali obteve imensas vantagens para a fé cristã. Em seguida partiu em direção à China, sua grande meta, pois este país de população incalculável, riqueza cultural extraordinária e grande prestígio em todo o Extremo Oriente, seria uma conquista incomparável para a Igreja Católica.
Mas, mistérios de Deus... Esse apóstolo de zelo e fervor invulgares morre antes de chegar àquela nação. Seu supremo ideal, a evangelização do povo chinês, não se realizaria. Doente, sentiu a morte se aproximar enquanto se achava na Ilha de Sancian, de onde já se divisava a China continental. Quis então expirar no puro amor de Deus, com seus olhos voltados para aquela China na qual não conseguiu entrar. Rendeu seu derradeiro suspiro em paz, embora não houvesse atingido seu ideal.
Diante dessa situação, vem-nos a perplexidade: “Por que Deus permite tal frustração? Por que o herói desejoso de conquistar para Ele algo tão excelente como toda a China não atingiu seu objetivo? Como entender esse (ao menos na aparência) fracasso?”
Encontro com um Bispo chinês do século XX
Estas questões me trazem à lembrança a figura de um Bispo, que conheci em Roma, dotado de um charme próprio, gesticulava e alterava a fisionomia de acordo com seu modo de ser. Sobre a cabeça, um tanto pequena em relação ao resto do corpo, portava um chapéu preto, ornado de uma pena de pavão que oscilava conforme seus movimentos. Ao vê-lo, pensei: “Este homem é um porta-penas de pavão perfeito!”
Numa palavra, esse Bispo trazia consigo toda a graça daquela antiga e misteriosa China que fascinou São Francisco Xavier. E no meu interior ecoou algo do imenso desejo que este santo missionário alimentou de conquistar o povo chinês para a Igreja Católica.
Hipótese entusiasmadora
Pode-se supor que se o grande ideal de São Francisco Xavier fosse realizado e tivéssemos uma China católica, a Santa Sé provavelmente consentiria em estabelecer uma liturgia peculiar àquele povo, com manifestações simbólicas dos dogmas da Igreja conforme as circunstâncias locais, um canto sacro próprio, edifícios sagrados inspirados nos estilos arquitectónicos chineses e segundo o talento de seus artistas. Imaginemos, por exemplo, a mirífica beleza de uma catedral feita de porcelana, e cuja torre, semelhante a um pagode, ostentasse no alto uma imagem da Imaculada Conceição! As estalas do presbitério talhadas em marfim, os bancos da nave central feitos de algum lindo bambu, encerado e perfumado...
Se, diante dessa hipótese, nossa alma se entusiasma, não será difícil calcular a intensidade do entusiasmo ainda maior que latejava no coração de São Francisco Xavier.
Dar glória a Deus, o mais elevado ideal
Ora, no momento em que maravilhas semelhantes começariam a se produzir, Deus, em cujas mãos estão as vidas dos homens, diz ao santo missionário jesuíta: “Cessa a tua luta, venha para o Céu!”
E Francisco, olhando para a China e por esta nação rezando, expira docemente no Senhor, dizendo sem ressentimento algum: “Deus que me insuflou esse ideal, não permitiu sua realização. Senhor, seja feita a vossa vontade assim na Terra como no Céu!”
Algum companheiro de São Francisco Xavier, vendo-o morrer assim, quiçá se tomasse de desânimo: “Então, não se dará a conversão do povo chinês? Dir-se-ia que as orações de São Francisco não foram atendidas, e seu ideal foi posto de lado”. Por essas dúvidas percebemos quanto é sutil o tema do idealismo, e de quantos aspectos se reveste, a serem considerados para compreendermos a obra de Deus.
Claro está, o ideal de São Francisco Xavier era a evangelização da China, porém não era seu fim supremo, que consistia em dar glória a Deus. Desde que o Altíssimo, por insondáveis desígnios, dele quisesse, não a China, mas um ato de submissão à vontade divina, São Francisco o aceitava como seu mais elevado ideal. O ideal que os anjos proclamaram na noite de Natal, em Belém: “Glória a Deus nas alturas, e paz na Terra aos homens de boa vontade”.
À semelhança do Divino Mestre e Nossa Senhora
Francisco era um desses homens de vontade boa, santa, reta, nobre, voltada para o ideal. Por isso morreu em paz na Terra, glorificando a Deus. E talvez o Criador tenha recebido mais louvor pela conformidade desta grande alma com os desígnios d’Ele, do que na conversão da China. Desse modo ensinou a todos os homens de boa vontade a cumprirem esse supremo ideal que é dar-lhe a devida glória acima de tudo.
Nisso se assemelham a Nosso Senhor Jesus Cristo, que padeceu e morreu proclamando sua conformidade com a vontade do Pai Eterno. No Horto das Oliveiras, bradou: “Pai meu, se for possível, afaste-se de Mim este cálice, mas seja feita a vossa vontade e não a minha”. Como se assemelham, igualmente, à Santíssima Virgem que, quando da Anunciação do anjo, diante do excelso convite para a maternidade divina, respondeu:
“Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra”. “Faça-se”, Fiat, termo que aqui significa obediência, disciplina, confiança, bondade, ideal, glória a Deus.
“Faça-se em mim segundo a tua palavra”. Pronunciemos a frase da Santíssima Virgem, unamo-nos a Ela na mesma obediência e assim cumpriremos nosso ideal. Pode ser que num primeiro momento Deus espere de nós que desejemos nossas “Chinas”.
Num segundo passo, teremos a impressão de que não as conquistamos, elas nos escaparam das mãos e nada conseguimos. Nesta hora, recordemo-nos de São Francisco Xavier e, pelos rogos de Maria, digamos: “Meu Deus, aconteceu como quisestes; quero o que quereis. Fez-se a vossa vontade e não a minha. Morro em paz.”
Dessa forma nossa vida terá atingido sua finalidade, e de algum modo que não sabemos explicar, o mérito de nossa submissão será maior que o de todas as nossas conquistas.
Mais do que a China convertida
Certamente, ao perceber a morte se aproximar, São Francisco Xavier olhava para aquela nação tão amada e desejada, e pensou: “Meu Deus, esta China virá quando quiserdes. Ela vale muito, mas o Céu tem maior valor. Contemplando vosso Sagrado Coração e o Coração Imaculado de Maria, rogo-vos a graça de sempre ir para frente e para cima”.
Aos olhos de Deus, essa atitude se reveste de um alcance incalculável. Nosso santo não conquistou a China, porém, sem o saber, obteve inúmeras outras vitórias. Somente no Juízo Final saberemos quantas glórias foram dadas a Deus, muito maiores do que a China, simplesmente pela obediência animosa, intrépida e heróica de São Francisco Xavier!
Podemos imaginar que, ao expirar, ele tenha elevado a Deus uma prece semelhante a esta:
“Senhor, meu Deus, meu Criador, meu Redentor. Senhora, Maria Santíssima, Mãe de Deus e minha. Vim até aqui para vos obter a China. Porém, quereis de mim uma viagem maior, que eu transponha os sombrios umbrais da morte e vá para a eternidade. Quereis quebrar-me, separando minha alma do meu corpo, o qual em breve não será senão um cadáver. Rogo-vos que minha alma, julgada por Vós em espírito de benignidade, seja conduzida ao Paraíso.
“Senhor, não pude conquistar a China, mas bem sei que de tudo quanto alcancei na vida, algo queríeis mais do que todo o resto: de Francisco, queríeis Francisco!
“Minha Mãe, aqui está Francisco. Oferecei-me a Deus, pois não nasci senão para isto! Salve Rainha, Mãe de misericórdia...”
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