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segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

São Pedro e São Paulo

Certa feita, mostraram-me a fotografia de uma iluminura que representava o enterro de Nossa Senhora. Em linguagem piedosa, dá-se o nome de  “dormição” (dormitio em latim) ao passamento de Maria  Santíssima, a fim de significar que sua provável morte foi  como um doce e aprazível sono. Seja como for, a ilustração apresenta o sepultamento da Mãe de Deus, cujo caixão é conduzido pelos Apóstolos, de modo saliente por  São Pedro e São Paulo. E sobre estes cabe um comentário.
Vigor e venerabilidade próprios ao chefe da Igreja
São Pedro aparece como um ancião venerável, resoluto, de barba branca, abundante, caudalosa, voltada  para a frente, indicando vigor e mais hombridade do  que se fosse direcionada para baixo. O pintor o imaginou calvo, com uma moldura de cabelos formando tufos copiosos nas laterais do rosto. Tudo nele indica vitalidade, não possuindo as características rugas da velhice. Sua face é quase corada, rósea. É o grande São  Pedro que ainda deverá lutar tanto pela Igreja Católica. Assim, à robustez da juventude ele alia a venerabilidade da idade madura, cujo aspecto respeitável é bem expresso pelo artista, dando-lhe o tônus conveniente ao primeiro Papa, chefe da Igreja.
Resolução e força de São Paulo
São Paulo, por sua vez, parece ser bem mais moço que São Pedro. Forte, sua fisionomia transpira resolução: o que ele deseja fazer, executa. Percebe-se nele o homem que percorrerá as regiões  em torno do Mediterrâneo, enfrentando imensos perigos. Por exemplo, certa vez, para fugir  dos que o perseguiam, ele desceu de um sobrado por uma cesta amarrada a uma corda, e se  afastou correndo a fim de não ser capturado e  morto. Noutra circunstância, estando num navio, sobreveio uma tempestade que fustigou a  embarcação e os tripulantes durante vários dias,  até naufragarem perto de uma ilha à qual todos  chegaram sãos e salvos.
No martírio de São Pedro, a homenagem ao Papado
Os dois Apóstolos são vistos inundados  de  glória,  participando  do  triunfo  da  Santíssima Virgem e, sobretudo, empenhados em exaltá-La. Sabe-se que  esses dois atletas, arautos de Nosso Senhor Jesus Cristo, padecerão  juntos o martírio e morrerão no  mesmo dia. Presos  pelos  romanos  pagãos,  sofreram  diversos  suplícios. São Pedro foi crucificado de cabeça para baixo,  o  que  devia  significar  um doloroso processo de  morte,  pois  o  sangue,  atraído pela lei da gravidade, aflui ao cérebro e não tarda em produzir derrame ou apoplexia. A crucifixão poderia ser feita por meio de cordas que amarravam o corpo à cruz, ou por cravos  que pregavam no madeiro as mãos e os pés dos  condenados, como sucedeu com Nosso Senhor  Jesus Cristo.
Os que crucificavam o Príncipe dos Apóstolos não tinham idéia de quanto, procedendo daquele modo, prestavam homenagem ao Papado. Disse o Divino Mestre ao primeiro Papa:  “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão  contra ela” (Mt 16, 18).
Para São Paulo, a celeste coroa de justiça
De outro lado, sendo cidadão romano, São  Paulo pereceria pela espada. Prestes a  ser  decapitado,  talvez  tenha  se  lembrado de suas magníficas  palavras, as quais me comprazo  em  recordar  por  muito admirá-las: Bonum, certamen certavi, cursum consummavi (2Tm 4, 7) — “combati o bom combate, completei o circuito da carreira inteira  que eu deveria percorrer”. Era uma alusão aos que disputavam corridas no circo romano. E acrescenta: “Guardei a  fé. Resta-me agora receber a coroa de justiça que o Senhor  justo juiz, me dará” (2Tm 4, 7-8).
Vale notar a extrema beleza do modo pelo qual a Providência guia as almas. São Paulo revela aqui a certeza  de que ele não tem perdão a pedir, porque já está perdoado de tudo, tendo levado uma vida ilibada após a sua  conversão. Nisto ele demonstra uma extraordinária segurança. Em linguagem contemporânea, dir-se-ia que São  Paulo lança um “cheque” para o Céu: Resta-me agora  receber a coroa da justiça. Senhor, Vós prometestes vossa glória a quem combatesse o bom combate e percorresse a carreira inteira que deveria percorrer. Eu o fiz. Agora, dai-me o vosso prêmio!”
Difícil não apreciar este modo varonil de se exprimir,  próprio de um homem de fé que crê em Nosso Senhor  Jesus Cristo, na Santa Igreja, e por isso não tem dúvida  alguma de que será recompensado.
O  carrasco  cortou-lhe  a  cabeça  e  esta    segundo  uma bonita lenda — ao cair no chão saltou três vezes.  Em cada lugar do solo tocado pela venerável cabeça do  Apóstolo teria nascido uma fonte. Donde o local em  que houve este milagre ser chamado de tre fontane: as  três fontes.
Objetos de inimaginável perdão
Frisamos o que há de imensamente belo no trato da  Providência com os homens. Tal sobressai quando uma pessoa possui grande vocação e, apesar de suas infidelidades, a graça continua a lhe fazer insistências extraordinárias. Pode a alma se encontrar numa lamentável situação, mas o chamado de Deus conserva todo o  frescor primitivo. Disso constitui a vida dos dois Apóstolos excelente exemplo.
O  olhar  de  Jesus  para  São  Pedro,  durante  a  Paixão, é característica manifestação desse misericordioso procedimento divino. O Redentor teve pena dele,  fitou-o e São Pedro, então receoso e pusilânime, passou a ser outro.
São Paulo, o Apóstolo das Gentes, confessa ter entrado para o colégio apostólico como um ente abortivo, depois de ter perseguido brutalmente a Igreja.  Chegou a ser cúmplice do martírio de Santo Estevão, tendo vigiado as vestes daqueles que apedrejaram o  primeiro mártir do cristianismo (AT 7, 58; 8, 1). Ora,  em determinado momento este homem é convertido  de modo extraordinário e levado por Nosso Senhor ao  deserto, onde recebe graças que não foram concedidas a nenhum outro apóstolo. Quer dizer, Jesus o chamou do fundo da ignomínia e lhe deu aquele dom incomparável.
É uma tão sublime lição em meio a tantos perdões,  e um tal perdão ao lado de tantas lições, que nossa pobre cogitação não alcança medi-los...

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