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sábado, 14 de janeiro de 2012

São Francisco Assis

O enlevo pelas coisas divinas
Nas veredas de um mundo que caminhava de modo torrencial atrás das riquezas, São Francisco de Assis foi o trovador que entoou o hino do desapego e da pobreza, da doação levada ao mais alto esplendor do amor de Deus e do desejo de se Lhe entregar. Ele foi o santo da caridade e da bondade; o santo que, indo de encontro à Cruz, mereceu a glória de receber os estigmas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi, igualmente, o santo entusiasta dos ideais da cavalaria católica, toda voltada para o serviço da Igreja. Por tudo isso, terá sido ele, a meu ver, a personalidade mais contagiante que talvez tenha havido na Cristandade.
A característica de uma alma enlevada
Entre tantos predicados dignos de consideração, creio ser oportuno ressaltar esse aspecto da alma de São Francisco: o seu amor arrebatado pelas coisas divinas, seu enlevo que chegava ao êxtase, diante das maravilhas criadas por Deus e diante da própria perfeição do Criador.
Tenho para mim que ponderável parcela da felicidade que nos é dado ter nesta Terra — vale de lágrimas — consiste em nos enlevarmos com aquilo que merece nosso encanto, amor e admiração, e em fazermos a doação desses sentimentos ao objeto de nosso enlevo. Bem entendido, essa admiração desinteressada e fervorosa deve se dirigir, acima e antes de tudo, ao que representa para nós uma expressão de Deus Nosso Senhor. E, portanto, tal enlevo será, em última análise, a manifestação de nosso amor ao Altíssimo.
Nesse sentido, é ilustrativo o fato narrado por um literato: certa vez, levou um amigo para ver, de longe, uma aldeia por ele já conhecida. Chegaram ao topo de uma colina e, lá do alto, após divisarem o belo cenário de montanhas e campos que envolviam a aldeia, ele começou a indicar: “Aquela é a casa de fulano, aquela outra de beltrano, a outra de sicrano”. O amigo, surpreso, perguntou-lhe:
— Bem, e a sua, qual é?
— Ah, eu não tenho casa. Não tenho nada. Só o panorama…
Compreende-se: quem tem o panorama, tem mais que o casario, porque tem o enlevo e a capacidade de admirar aquela superior beleza como um reflexo de Deus. É o gesto desinteressado de contemplar o cenário pelo cenário, sem vantagem própria.
A necessidade de doar-se
Insisto nessa ideia do amor desinteressado a algo que se ama por se tratar de uma manifestação da grandeza de Deus. E, portanto, uma disposição de alma que devemos cultivar para irrigar e alimentar nossa vida espiritual, para aumentarmos nossa capacidade de enlevo pelas coisas divinas.
Como saber se estamos trilhando esse caminho?
A meu ver, o sintoma de que fomos tocados pelo raio divino do enlevo é precisamente o fato de sentirmos uma necessidade de doar o nosso amor, abnegadamente, ao objeto amado enquanto tal e nada mais. No Glória que se reza na Missa, essa atitude de alma está muito bem expressa, quando se diz: Nós vos damos graças, Senhor, por vossa imensa glória. Ou seja, amo tanto a Deus porque Ele é Deus, e eu O agradeço por ser Deus como se fosse um inestimável favor feito a mim, quando a glória e o benefício é exclusivamente para Ele. Eu, homem, não participo dessa magnitude, a não ser como um adorador pequenino no fundo do santuário, com os olhos fitos no Tabernáculo.
Há, portanto, uma certa forma de enlevo pela qual a pessoa quer dar-se inteiramente e não conservar nada para si. E faz disso o ideal de sua vida, de tal maneira que coloca sua felicidade no ter oferecido tudo a Deus: “Senhor, eu vos trago tudo, não conservo nada para mim, dou-me por completo.”
A perfeita alegria de São Francisco, expressão de enlevo
E, oh! coisa inexplicável, oh! paradoxo: essa é a felicidade mais autêntica que se possa ter. Prova-o o exemplo dos santos, e o exemplo do próprio São Francisco de Assis. Ele o exprimiu de modo perfeito, quando, durante o trajeto entre uma casa e outra de sua ordem, em tempo de rigoroso inverno, seu acompanhante Frei Leão lhe perguntou no que consistia a perfeita alegria, e São Francisco respondeu:
— Imagine que, chegando ao convento no meio da noite, sob neve intensa, com frio e fome, ao batermos à porta, o irmão porteiro nos atenda irritado, nos admoeste com desaforos e não nos deixe entrar. Então permaneceremos ao relento, sofrendo os rigores do frio e o aguilhão da fome, aceitando tudo com serenidade e resignação por amor a Deus: nisto estaria a perfeita alegria.
Penso que não se poderia compreender essa afirmação de São Francisco, a não ser em função do enlevo. Ou seja, é um tal amor e uma tal veneração pela ordem franciscana e tudo quanto ela representa, que um membro dela, após receber toda espécie de maus tratos e injúrias à porta de um dos seus conventos, ainda se deixa tomar de enlevo, como se exclamasse: “Ó moradia do meu Beato Pai Francisco! Ó muros sagrados! Ó paredes! Ó conteúdo sacrossanto! Ó espírito que habita nisto! Com que alegria eu, não podendo entrar, fico contente em estar de fora, imaginando o que está dentro!”. Isso é o enlevo perfeito.
Imagem viva do enlevo exercitado ao último ponto
E por essa atitude de alma se compreende também, que, por exemplo, um franciscano possa dizer: “Não sou eu mais quem vive, mas é meu pai São Francisco que vive em mim”. Claro está, não significa que ele deixou de existir materialmente, mas que o enlevo dele pela pessoa de São Francisco chegou a um tal extremo que, por assim dizer, ele se transformou num outro São Francisco de Assis, assimilou e se identificou com a personalidade de seu fundador. Do mesmo modo como o próprio São Francisco podia dizer: “Não sou eu mais que vivo, mas é Cristo que vive em mim”. Assim aquele religioso exclamaria: “É Francisco que vive em mim e, por meio deste, é Cristo que vive em mim. Eu morri, dando-me por inteiro ao ideal franciscano, transformando-me num filho completo de São Francisco.”
Aliás, creio que uma forma de holocausto das mais sensíveis que houve na História — de propósito não digo que tenha sido a maior, nem a comparo com o exemplo de Nossa Senhora, que está acima de todos os conceitos — foi a realizada por São Francisco de Assis. De fato, o doce Poverello conformou-se tanto à figura de Nosso Senhor Jesus Cristo que chegou a se tornar fisicamente parecido com o Divino Mestre, inclusive recebendo os estigmas da Paixão.
Qual o significado dessa semelhança?
Significa uma tal união que, por todo o jogo das razões naturais, e mais ainda sobrenaturais, ele se transformou num outro Cristo: era a imagem viva do enlevo praticado até o último ponto.

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