Mártir da
fidelidade ao Papado
Os séculos XVI e
XVII foram tempos difíceis para a Igreja na Inglaterra. A outrora
cognominada Ilha dos Santos encontrava-se imersa em problemas de
índole política que logo transcenderam para a esfera eclesiástica,
com as mais graves repercussões.
Em 1534, Henrique
VIII se autonomeou Chefe Supremo da Igreja na Inglaterra e declarou
réu de morte a quem não reconhecer essa autoridade. Ao ano
seguinte, foram decapitados dois dos mais proeminentes opositores ao
Ato de Supremacia: São John Fisher e São Thomas More. Os mosteiros,
conventos e confrarias foram dissolvidos. Uma implacável perseguição
se desatou contra os que permaneciam fiéis ao Papa. Foi nessas
circunstâncias históricas que nasceu em Londres, no dia 25 de
janeiro de 1540, Edmundo Campion.
Aluno
brilhante, orador eloquente, professor estimado
Filho de pais
abastados, o pequeno Edmundo era dotado de inteligência ímpar e de
grande facilidade para o estudo das letras, o que fazia abrir-se
diante dele um futuro brilhante. Teve um tal progresso no colégio
que, com apenas 13 anos, foi o estudante escolhido para fazer, em
latim, o discurso de boas-vindas à Rainha Maria I, quando esta
entrou solenemente em Londres, em 1553.
O donaire e a
vivacidade do menino cativaram os presentes. Entre estes estava Sir
Thomas White, fundador do Colégio São João de Oxford, que o tomou
sob sua proteção e levou para essa instituição, a fim de educá-lo
e formá-lo.
Edmundo não
defraudou seu benfeitor. Coroou seus estudos com brilho,
correspondendo às esperanças do mestre. Por sua privilegiada
inteligência e grande eloquência, era sempre o orador escolhido
para discursar nas ocasiões importantes. Como professor, destacou-se
de tal forma que alunos de outros cursos vinham assistir às suas
aulas como simples ouvintes. Foi nomeado proctor (chefe dos
inspetores de disciplina da Universidade). Em pouco tempo tornou-se
estimado e popular entre os estudantes a ponto de “fazer escola”:
formou-se em Oxford um grupo de estudantes denominados “os
campionistas”, porque o imitavam na maneira de falar, nos gestos,
nos modo de ser e até de vestir-se.
Encontro
com a rainha Isabel I
Algum tempo depois
de sua coroação como rainha, Isabel I visitou Oxford com uma grande
comitiva, para passar alguns dias entre os estudantes da célebre
Universidade. Tinha por objetivo arregimentar para a sua causa jovens
universitários ou professores de grande talento. A visita durou seis
dias e constou de vários atos acadêmicos, entre os quais uma
homenagem do corpo docente. O orador escolhido foi Edmundo Campion,
então com 27 anos de idade.
A rainha escutou-o
com muita satisfação, fez-lhe os mais lisonjeiros oferecimentos e
colocou-o sob a tutela de seu chanceler, William Cecil, que mais
tarde referiu-se a ele como sendo “um dos diamantes da
Inglaterra”.1
Começa
a batalha pela fidelidade
Quase que por
instinto, Campion rejeitava as reformas implantadas na esfera
espiritual por Henrique VIII e seus sucessores. Inebriado, porém,
pelas possibilidades de uma brilhante carreira, deixou-se levar pelos
acontecimentos e prestou o Juramento de Supremacia em 1564,
reconhecendo a rainha como governadora suprema da Igreja na
Inglaterra. Quatro anos mais tarde, recebeu das mãos do bispo
anglicano de Gloucester a ordenação diaconal.
Entrementes, o
futuro mártir dedicara-se aos estudos de filosofia aristotélica, de
teologia natural e dos Santos Padres, e não tardou a tomar
consciência de sua falta. Profundamente perturbado pelos remorsos,
procurou um sacerdote católico, fez uma boa confissão e assumiu
publicamente sua condição de filho da Igreja.
Tinha ele clara
noção de que sua atitude o obrigaria a abandonar a carreira
acadêmica, mas não hesitou em fazer esse sacrifício. Também não
ignorava que, se permanecesse na Inglaterra nessas circunstâncias,
estaria exposto a grandes riscos. Por isso deixou Oxford e mudou-se
em 1569 para Dublin.
Um
novo porvir: o sacerdócio e o martírio
No ano seguinte, o
Papa São Pio V promulgou a bula Regnans in Excelsis, excomungando a
rainha Isabel I. Após esse ato pontifício, os ânimos se acirraram,
e a situação de Edmundo tornou-se especialmente delicada. Os
irlandeses o viam com maus olhos, por ter se dedicado a escrever uma
História desse país sob o ponto de vista inglês; os católicos o
olhavam com suspeitas, pelo fato de ele ter sido ordenado diácono
anglicano; e os anglicanos e luteranos o detestavam por ser um
“papista”.
Não teve outra
alternativa senão voltar à Inglaterra, com o nome de Mr. Patrick e
disfarçado de lacaio. Chegou a Londres a tempo de testemunhar o
juízo de um dos primeiros mártires oxfordianos: São João Storey,
jurista, executado em 1571 por sua fidelidade ao Romano Pontífice.
Percebeu, então, o quanto a Santa Igreja em sua nação necessitava
de almas dispostas a uma doação total, para sustentar na Fé os
católicos e manter o estandarte da catolicidade erguido naquela
terra outrora conhecida como a Ilha dos Santos.
Este fato despertou
em sua alma a vocação ao sacerdócio, com a disposição de
sacrificar tudo, inclusive a vida, se preciso fosse, em defesa da
Igreja de Cristo. O martírio passou a fazer parte de suas cogitações
e de seu futuro.
No
seminário em Douai
Decidido a
corresponder sem tardança ao chamado do Divino Mestre, empreendeu
uma viagem para Flandres, num momento crítico em que todos os
viajantes eram suspeitos. Após muitas peripécias, conseguiu chegar
ao seminário de Douai, fundado e dirigido pelo padre William Allen,
o futuro Cardeal, também oxfordiano. Neste seminário, que foi ponto
de partida para muitos santos e mártires, ele estudou Teologia,
Exegese e Divindade. A cópia da Suma Teológica usada por Campion em
seus estudos existe até hoje, mostrando as anotações por ele
feitas à margem do argumento de São Tomás sobre o “batismo de
sangue”, isto é, o martírio.
Martírio parecia
ser o único tema de conversa no seminário de Douai, naquela época.
Todos se julgavam indignos de tão grande privilégio, mas contavam
com o auxílio da graça. Convictos da realidade expressa na famosa
frase de Tertuliano: “O sangue dos mártires é semente de
cristãos”,2 estavam realmente dispostos a tudo.
Santo Edmundo
permaneceu aí nove anos e recebeu as ordens menores e o
subdiaconato. Mas tinha o coração sempre atormentado por ter
prestado o Juramento de Supremacia. Desconfiando de suas próprias
forças, colocava sua confiança “nAquele que conforta” (Fl 4,
13), e empenhava-se, ao mesmo tempo, em preparar sua alma na
humildade. Almejava, para isso, uma vida de austera disciplina e
obediência. Acreditava que assim talvez se tornasse “digno do
verdugo e da forca por seu Deus”.3
Sacerdote
jesuíta
Partiu então para
Roma, como peregrino, e solicitou ingresso na Companhia de Jesus. O
Superior Geral, padre Everardo Mercuriano, o recebeu como noviço e o
designou para Brunn, na Província da Áustria. Mais tarde foi
transferido para Praga, onde estudou por mais cinco anos e recebeu a
ordenação sacerdotal em 1578.
Começou para Santo
Edmundo uma fase de intensas atividades de apostolado. Era
constantemente chamado para pregar e atender Confissões nas cidades
próximas, e não deixava de dar assistência aos fiéis nos
hospitais e nas prisões.
Um dia, recebeu uma
carta do Cardeal Allen, comunicando-lhe que havia organizado uma
incursão de missionários na Inglaterra e que ele, padre Edmundo,
fazia parte do grupo. “O Geral acedeu às nossas súplicas; o Papa,
verdadeiro pai de nosso país, consentiu; e Deus nos permitiu que
nosso querido Campion, com seus dotes extraordinários de sabedoria e
graça, nos fosse afinal restituído”.4 Aproximava-se o almejado
martírio... Seus companheiros do Colégio de Praga deram-lhe um
pergaminho com a profética inscrição: “Padre Edmundo Campion,
mártir”.
Cem
mil conversões em um ano!
Em 18 de abril de
1580, partiu de Roma, com a bênção do Papa Gregório XIII, uma
pequena caravana de missionários, entre eles três jesuítas: padre
Robert Persons, superior, padre Edmundo Campion e o irmão Ralph
Emerson. Receberam estes, também, a bênção de São Felipe Neri,
no Oratório, e os incentivos de São Carlos Borromeu em Milão, por
onde passaram.
Sua missão era
puramente espiritual: procurar as ovelhas perdidas, recuperar os
católicos que vacilavam ou contemporizavam sob o regime
persecutório, afervorar as almas fiéis. Jamais poderiam imiscuir-se
em problemas políticos, menos ainda participar de confabulações,
ou mesmo simples conversas, contrárias à rainha.
Não foi sem grandes
riscos e dificuldades que conseguiram cruzar o Canal da Mancha e
entrar disfarçados em Dover, pois espiões ingleses em Roma haviam
enviado notícias da sua partida, e em toda a Inglaterra a força
policial estava mobilizada para impedir a entrada desses “fora da
lei” em seu território.
Os católicos
ingleses, animados pela chegada dos sacerdotes, encarregaram-se de
hospedá-los e dar-lhes condições de exercer seu ministério
apostólico. Puderam eles, assim, durante mais de um ano, desempenhar
suas funções sacerdotais, sempre em situação de risco. Disfarces,
nomes falsos, precários esconderijos, apreensões nos momentos de
buscas policiais, tudo isso fazia parte da rotina dos heroicos
missionários.
Campion pregava com
frequência sobre o primado de Pedro. Celebrava a Santa Missa,
atendia Confissões, dava conselhos, alentava os fracos, “tudo como
nas catacumbas”,5 diz um de seus biógrafos. Mais ainda, trazia de
volta ao Rebanho de Cristo inúmeras ovelhas desgarradas. “Cem mil
conversões em um ano!”, exclama o mesmo autor.6
O
“jesuíta sedicioso”
Refugiado em York,
padre Campion escreveu, em latim, sua mais famosa obra: Decem
Rationes (As dez razões para ser católico), logo divulgada por todo
o país. No dia 29 de junho de 1581, apareceram sobre os bancos da
igreja de Santa Maria de Oxford 400 exemplares dessa obra, lá
deixados por uma mão desconhecida...
Em resposta a essa
audaciosa iniciativa dos missionários, a rainha ofereceu grande soma
pela captura deles, sobretudo do padre Campion. Em 16 de julho, festa
da Virgem do Carmo, ele e o irmão Emerson estavam em uma casa de
Lyford Grange, para ministrarem os Sacramentos. Disfarçado entre os
fiéis, entrou lá um espião, chamado George Eliot. Tal qual Judas o
Infame, saiu logo depois de receber a Sagrada Comunhão, para
denunciar os missionários a quem lhe pagava o salário de seu vil
ofício.
Não tardaram a
chegar os agentes do governo, que vasculharam a casa e prenderam os
ministros de Deus. Amarrados aos cavalos e cavalgando de costas,
foram conduzidos a Londres, onde entraram sob manifestações de
escárnio de um pequeno populacho. No chapéu do padre Edmundo estava
afixada uma inscrição: “Campion, o jesuíta sedicioso”.
Julgamento
e condenação
Na Torre de Londres,
iniciou-se processo do padre Campion. A rainha quis falar
pessoalmente com ele. Ofereceu-lhe a vida, a liberdade, honrarias e
até mesmo a Diocese de Cambridge, com a condição de que ele
reconhecesse sua supremacia espiritual no Reino da Inglaterra. O
destemido varão recusou todas essas ofertas. Deu-se, então,
prosseguimento ao inquérito. Embora submetido a terríveis torturas,
o padre Campion defendeu-se com tanto acerto que os acusadores não
encontravam meios de incriminá-lo. Foi preciso recorrer ao
depoimento de falsas testemunhas.
Num ridículo
julgamento realizado em Westminster, no dia 20 de novembro, é
decretada a sentença de morte na forca, seguida de estripação e
esquartejamento. Santo Edmundo e seus companheiros condenados, o
padre Sherwin e o também jesuíta Briant, acolheram-na com o cântico
jubiloso do Te Deum laudamus e de um versículo do salmo 117: “Este
é o dia que o Senhor fez: seja para nós dia de alegria e
felicidade” (v. 24).
George Eliot, o
delator, procurou o santo missionário no calabouço para pedir-lhe
perdão. E foi perdoado imediatamente.
O
martírio
Caía uma chuva fina
e fria sobre Londres, na manhã de 1º de dezembro de 1581. Os três
condenados foram conduzidos ao patíbulo amarrados numa esteira de
vime arrastada por cavalos. Ao passar o arco de Newgate, Santo
Edmundo conseguiu erguer a cabeça o suficiente para saudar uma
imagem de Nossa Senhora que ali se encontrava em seu nicho.
Chegando a Tyburn,
onde estavam levantadas as forcas, Campion subiu com toda a firmeza
que lhe permitiam seus membros deslocados pelas torturas. Ouviu-se um
murmúrio de admiração entre espectadores, seguido de um longo
silêncio. Começou ali uma nova colheita de conversões, entre as
quais a de um jovem que se fez jesuíta e sofreu, 14 anos depois,
idêntico martírio: Santo Henrique Walpole.
Já com a corda
colocada no pescoço, o padre Campion foi pela última vez
interrogado por um conselheiro da rainha, que lhe exigiu uma
confissão pública de suas “traições”.
A História registra
suas derradeiras palavras: “Se ser católico é ser traidor, me
confesso como tal. Mas se não, tomo a Deus — ante cujo Tribunal
vou agora apresentar-me — como testemunha de que em nada ofendi a
rainha, nem a Pátria, nem qualquer pessoa, para merecer o título ou
a morte como traidor”.7 Rezou por fim o Pai-Nosso e a Ave Maria, e
pediu aos católicos presentes que rezassem o Credo enquanto ele
expirava. Entregou, assim, sua alma ao Criador, como mártir da
fidelidade à Cátedra de Pedro.
1WAUGH, Evelyn.
Edmundo Campion. San Francisco: Ignatius Press, 2005, p. 68.2
TERTULLIANO. Apologget., 50; PL 1, 534.3 BRICEÑO J., SJ, Pe. Manuel.
San Edmundo Campion. In: ECHEVERRÍA, L., LLORCA, B., REPETTO BETES,
J.L. (Org.). Año Cristiano. Madrid: BAC, 2006, vol. 12, p.19. 4
WAUGH, Op. cit., p. 87. 5 BRICEÑO J., SJ, Op. cit., p. 21. 6 Idem,
ibidem. 7 Idem, p. 23.
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