Propulsor do apostolado
leigo
Prenunciando os rumos
tomados pela Igreja no século XX, uma intuição profética levou São Vicente
Pallotti a valorizar o apostolado dos leigos e conjugá-lo harmonicamente com os
esforços missionários do clero.
Roma parece estar
catalogada no restrito número das cidades que não têm nada de novo a conhecer.
Tudo quanto a imaginação possa conceber em matéria de fastígio, esplendor,
tragédia, perigo ou transformação social, de alguma maneira já se passou dentro
ou nos arredores de suas muralhas. Entretanto, Deus, que muito a ama, sempre
encontra novas fórmulas para revelar na Cidade Eterna fulgores desconhecidos
numa ordem superior e gloriosa: a santidade de seus filhos.
Afirmou alguém com
acerto que o Catolicismo deitou raízes na França pelo mérito de seus Bispos, e
na Inglaterra pela evangelização de seus monges. Certamente, diríamos nós, na
Urbe isso se deve à ação dos santos. Num encadeamento ininterrupto,
contribuíram eles para fazer de Roma, além da cidade dos mártires, também a dos
bem-aventurados, pois a Sé de Pedro deveria estar amparada pelo sacrifício dos
primeiros e a virtude dos segundos.
Pode-se escolher a esmo
qualquer quadra histórica de nossa Era Cristã, e nela encontraremos mais de um
santo percorrendo as ruas romanas, operando prodígios e dando mostras de
consumada virtude.
Hoje, quando tanto se
fala da necessidade de um clero cada vez mais devoto e missionário, fixemos por
alguns instantes a atenção na figura de São Vicente Pallotti, cujo labor
apostólico se desenvolveu de ponta a ponta no coração da Cristandade.
Menino deslumbrado com o grande Deus
O bairro popular de San
Lorenzo in Damaso fervilhava de vitalidade naqueles últimos anos do século
XVIII.
No lar de Pedro Paulo
Pallotti, onde o êxito no comércio propiciava uma vida digna e estável, dez
bam bini encheram de alegria o convívio familiar. Vicente foi o terceiro,
vindo ao mundo a 21 de abril de 1795. Alguns irmãozinhos morreram logo nos
primeiros meses de vida, mas os sobreviventes puderam receber dele a benéfica
influência emanada de uma criança exemplar.
Deslumbrado pelos
ensinamentos maternos a respeito do grande Deus imolado na Cruz, Vicente corria
todos os dias para fazer-Lhe companhia na igreja paroquial. Brincava como os
outros meninos, mas o fundo de sua alma permanecia absorto pelos ensinamentos
do bondoso Jesus; em suas infantis cogitações, nada importava tanto quanto
dar-Lhe alegria.
Sua mãe, Maria
Madalena, percebeu que as qualidades morais do filho não encontravam paralelo
no campo da inteligência, pois esta se revelava bem discreta. Então chamou o
pequeno para, juntos, fazerem uma novena ao Divino Espírito Santo, implorando
aptidão para o estudo. Depois disso, para surpresa de todos, o intelecto do
menino se abriu e, reforçado por prodigiosa memória, lhe proporcionou
abundantes recursos para o exercício de suas futuras atividades apostólicas.
Perspectiva decisiva para sua espiritualidade
Bastava conviver um
pouco com Vicente para discernir nele os sinais do chamado sacerdotal. Amigo da
mortificação, da prece e do apostolado, revelava-se insensível às promessas e
gozos mundanos, mas seus olhos brilhavam de encanto simplesmente ao ouvir
pronunciar o nome de Jesus.
Assim, encontramo-lo
aos 15 anos estudando no Colégio Romano e mais tarde na Universidade de Roma.
Poderíamos ressaltar o êxito de seu aproveitamento acadêmico, mas sem atingir o
cerne desta fase de sua vida. Os estudos de filosofia e teologia, mais do que
fazer dele um homem douto, colocaram-no diante de uma perspectiva decisiva para
sua espiritualidade, abrindo-lhe os horizontes para o aspecto da Divindade pelo
qual se fascinou: a infinitude do Criador.
As noções clássicas de
ser absoluto e ser contingente, a limitação essencial das criaturas e a
existência de um Ser infinito, no qual todos os outros têm sua origem,
impressionaram o estudante que, inegavelmente, recebeu uma graça para penetrar
de alguma maneira em tal mistério. “Esse jovem — escreve um biógrafo — era
consumido pela chama de uma profundíssima compreensão da glória, da majestade e
infinidade de Deus e do dever que todos os homens têm de glorificá-Lo. […] Quem
ler seus escritos ficará profundamente impressionado pelo ardor com que Vicente
Pallotti abraçou este ideal”.1
A partir desse período,
define-se o norte de sua existência: glorificar a Deus em seus infinitos
atributos, contando com o auxílio da graça para suprir a limitação da natureza
humana. Mas Vicente sabia que a virtude teologal da caridade possui um
indissociável desdobramento, sem o qual pode-se duvidar da sua autenticidade: o
amor ao próximo. Pouco antes de se tornar padre, escreveu: “Ao saber […] que
existem muitas almas que, bem dirigidas, poderiam fazer coisas grandíssimas no
caminho do Senhor; muitos ignorantes que, bem instruídos, seriam grandes santos
[...]; e sabendo ainda que existe uma multidão que sofre grandes enfermidades
do espírito, motivar-me-ei para um grande desejo de instruir, iluminar,
preparar, santificar, aperfeiçoar e converter todas essas almas, se fosse
possível com perfeição infinita de minha parte e da parte delas, com glória
infinitamente grande de Deus”.2
Empenhado em levar
adiante esses propósitos, recebeu a ordenação sacerdotal em 16 de maio de 1818,
como membro do clero secular. A fecundidade do seu ministério, fruto da
seriedade e entrega com que o santo abraçou sua vocação, mostra que todos estes
anseios acabaram por realizar-se. Bem unido a Nossa Senhora, a “quase
infinita”, ele lançou-se com ânimo valoroso nas obras pastorais.
Docente e diretor espiritual
Os dez primeiros anos
de vida presbiteral do padre Vicente foram marcados pela docência. Era por
demais instruído para que os superiores não desejassem vê-lo ocupando alguma
cátedra. Mas entre os seus notáveis conhecimentos de grego e a sede de almas
que o abrasava, prevaleceu esta última. Ao cabo desse período, estará ele
entregue por completo ao apostolado, com a vantagem de poder atuar inclusive
nos meios estudantis.
A direção espiritual
ocupou sempre um importante papel na vida de nosso santo. Sabia exercê-la de
modo tão excelente, a ponto de ser nomeado diretor espiritual do Seminário Romano
em 1827, e da Propaganda Fide em 1835. Revelou-se, nesse encargo, a
personificação do Bom Pastor, dando mostras de uma paciência inesgotável e uma
caridade inextinguível. Fazia questão de estar ao alcance de seus dirigidos,
sem jamais manifestar o menor incômodo quando lhe tomavam muito tempo. Estes
não demoraram em atestar o renouveau espiritual propiciado pelos encontros com
o padre Vicente, e a concluírem que ele era algo mais que um bom sacerdote.
Percebiam quanto Deus o amava e Se comunicava com ele.
De fato, embora uma
humildade a toda prova o levasse a dissimular sua vida mística, a luz não podia
permanecer debaixo do alqueire. O acerto dos conselhos e a sua penetração nas
almas denotavam um raro comércio com o sobrenatural. Certa tarde, por exemplo,
aconselhou um jovem a confessar-se logo, mas este alegou preferir fazê-lo outro
dia. O padre Vicente insistiu e conseguiu que ele se reconciliasse com Deus
pouco antes de falecer, contra toda expectativa, naquela madrugada.
Carisma de profecia e discernimento
Sabe-se, com efeito,
que São Vicente Pallotti foi favorecido com os carismas de profecia e
discernimento dos espíritos. Essas insignes graças permitem interpretar os
acontecimentos, predizer o futuro e penetrar nas consciências, em benefício das
almas dos por ele orientados.
Em diversas circunstâncias
o padre Vicente transmitia aos fiéis a sorte os aguardava. A seu irmão de
sangue, Salvatore Pallotti, disse certa vez: “Deus lhe deu mais três anos de
vida”,3 previsão que se cumpriu à risca, pois após o mencionado prazo ele de fato
faleceu. E o santo, nesta ocasião, consolou os parentes comentando: “A
Bem-Aventurada Virgem Maria, em cuja honra Salvatore por muitos anos jejuou a
pão e água todos os sábados, não se esqueceu dele”.4
Quando confortava os
enfermos, fazia-o ora nos termos: “Devemos nos resignar à vontade de Deus”, e nestes
casos a morte era certa, ora em outros: “Tenha fé em Nossa Senhora”,
significando que a recuperação era segura. E nunca seu conselho falhou!
Fatos semelhantes a estes
pululam em seu processo de canonização, e as testemunhas são unânimes em salientar
o acerto dos conselhos, o “inexplicável” das previsões e a despretensão com que
transmitia os segredos mais recônditos que, por vezes, os penitentes procuravam
lhe ocultar.
De outro lado, as asas
de um anjo pareciam protegê-lo a cada minuto, pois ele andava na chuva sem
molhar-se e certa vez foi baleado por um sequaz de Garibaldi, mas o tiro não lhe
causou dano. Essas notícias corriam de boca em boca, e quando ele passava pela
rua, as pessoas diziam baixinho: “Este é o santo!”.
Zelo e dedicação sem limites
“Vicente tinha um
elevado conceito do dever especial que incumbe ao clero de Roma”,5 para o qual
sempre se voltaram os olhares do mundo inteiro, e desejava que ele fosse
perfeito, digno ornato da diocese do Sumo Pontífice. Nesse intuito, começava por
dar o exemplo de um zelo e dedicação sem limites: punha em marcha grande número
de confrarias; entusiasmava as almas generosas e as colocava a serviço de Deus
e do próximo; condoia-se dos necessitados e não poupava esforços para atendê-los,
arranjando donativos e empregando com sabedoria as somas obtidas. Onde ele
punha suas mãos ungidas, tudo florescia e se operava um revigoramento
espiritual.
Nunca foi possível
contar o número de moribundos por ele assistidos, mas sabe-se que um deles foi
São Gaspar del Búfalo, em cujo processo de canonização deu importante
testemunho. Reduzia suas horas de sono, para fazer caber em seu dia tantas
obras de caridade. Rejeitou categoricamente todas as promoções que lhe foram
oferecidas, temendo perder, por causa das honrarias, alguma oportunidade de
salvar almas, para o que bastava-lhe o múnus sacerdotal.
A Sociedade do Apostolado Católico
Um providencial
acontecimento, na aparência corriqueiro, veio mudar os rumos da vida de São
Vicente Pallotti. Com efeito, uma das mais belas lições que os santos nos dão é
a sua extremada sensibilidade à vontade de Deus. Eles não têm outra lei e,
pode-se dizer, possuem “ouvidos muito afinados” para discernir as moções do
Espírito Santo nos dias em que vivem.
Certo dia, um
missionário enviou-lhe um pedido: queria que o padre Vicente promovesse a
edição em língua árabe da obra Máximas eternas, de Santo Afonso de Ligório,
para auxiliar a evangelização no Oriente. O santo sempre devotou especial
interesse pelas missões, mas estava sem meios financeiros de atendê-lo.
Solicitou, então, a alguns leigos que batessem de porta em porta e, “em nome de
Jesus crucificado”, pedissem donativo para esse fim. O resultado foi
surpreendente, ultrapassando de muito as expectativas. Pelo empenho desses
homens e mulheres, realizou-se com pleno êxito a difícil empresa.
Vicente Pallotti
meditou muito sobre o acontecido e vislumbrou nos leigos um potencial pouco
explorado para realizar grandes feitos evangelizadores. Passou a desenvolver um
apostolado mais específico entre eles e as constatações não deixavam margem a
dúvidas: cabe aos leigos um importante papel nas obras da Igreja de Deus.
Essa intuição —
qualificada como profética por Pio XI, João XXIII e Paulo VI — levou o santo a
fundar, em 14 de abril de 1835, a Sociedade do Apostolado Católico, e a ela
dedicar integralmente seus 15 últimos anos de vida. Os rumos tomados pela Igreja
no século XX e os documentos do Concílio Vaticano II, especialmente o decreto
Apostolicam Actuositatem, seriam a melhor confirmação desse conceito, sem
dúvida prenunciador do que Deus pede dos batizados nos dias atuais.
A Sociedade, como a
idealizou Pallotti, procura unir os esforços do clero e dos leigos,
harmonizando-os em atividades conjuntas. Aos sacerdotes cabe a direção e
assistência sacramental do grupo, enquanto os leigos lideram múltiplas
atividades de apostolado. Muito haveria a dizer sobre os sofrimentos sem conta
que se abateram sobre o padre Vicente na luta pela solidificação e
reconhecimento da Sociedade, pois o fundador sempre paga com o alto preço do
holocausto o êxito da sua fundação. Esta obra era querida pelo Senhor e sua Mãe
e, portanto, ninguém poderia impedi-la. Apesar das perseguições, antipatias e
escassez de recursos, ela prosperou.
O Papa Gregório XVI
escreveu de punho e letra, em 1835, esta bela aprovação: “Sua Santidade concede
mil bênçãos à Sociedade do Apostolado Católico e a todas as obras de zelo e de piedade
que a Sociedade empreender”.6 E hoje, herdeiros dos planos missionários de um varão de grandes
desejos, os filhos espirituais de São Vicente Pallotti realizam por todo o mundo
as mais diversas atividades evangelizadoras.
Partindo rumo à Pátria eterna
Sua morte, aos 54 anos,
foi considerada por muitos como prematura, mas São Vicente não pensava dessa forma:
“Que Deus me dê a longevidade que Ele quiser e como quiser”.7 Recebeu a
derradeira enfermidade — sofria dos pulmões — como uma dádiva, e preparou-se
com serenidade para romper o último véu que o separava da posse definitiva do
Senhor: o corpo. Na noite de 22 de janeiro de 1850, rodeado pelos padres da
Sociedade do Apostolado Católico, exalou o último suspiro e partiu para gozar,
pelos séculos eternos, da visão do Deus infinito tão amado por ele.
Em nossa época, quando
até o Ocidente cristão assume as características de uma grande zona de missão,
o ímpeto evangelizador de São Vicente Pallotti nos repete este conselho: “Não
te julgues incapaz de alcançar menos que os maiores santos! Com a graça de
Deus, atingirás metas ainda mais altas. Trabalhemos, trabalhemos
incansavelmente na propagação da Fé e em suscitar o amor pela infinita glória
de Deus”.8
1 GAYNOR, SAC, Juan
Santos. São Vicente Pallotti. Santa Maria: Pallotti, 1981, p.24.
2 Idem, p.31.
3 PISTELLA, SAC,
Domenic. Saint Vincent
Pallotti – The Patron of Lay Apostolate. New York: Knights of St. John, 1963,
p.63.
4 Idem.
5 GAYNOR, Op. cit.,
p.53.
6 Idem, p.61.
7 Idem, p.80.
8 SALES, Andrés de. In:
Año Cristiano. Madrid: BAC, 2002, v.I, p.440 -441.
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