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sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Beato José Vaz

Nascido na Índia em 1651, na alta casta dos brâmanes, José Vaz era chamado por Deus para ser o apóstolo do Ceilão.
Em Goa, quem atravessa uma das pontes que cruzam o rio Mandovi pode notar, no distrito de Sancoale, a fachada de uma singela igreja colonial. Essa parede frontal destaca-se em meio à densa vegetação e é o que restou da igreja de Nossa Senhora da Saúde, destruída por um incêndio em meados do século XIX. Contudo, resistindo a ventos e tempestades, como também ao silêncio com que a História às vezes cobre certos vestígios do passado, essa ruína bem conhecida evoca um gesto de profunda piedade, próprio a suscitar a admiração das almas católicas ao longo dos tempos.
“Escravo de Maria”
Ali, no remoto ano de 1677, fez sua consagração como “escravo de Maria”, um jovem sacerdote indiano, Padre José Vaz. Para documentar esse ato, redigiu ele um expressivo texto, que subscreveu, genuflexo, aos pés da imagem de Nossa Senhora da Saúde. Essa solene e voluntária entrega como escravo de amor da Santíssima Virgem, foi inspirada pela sublime humildade com que Ela própria se proclamou escrava do Altíssimo, respondendo ao Arcanjo Gabriel: “Eis aqui a escrava do Senhor...”.
Ao tomar essa atitude, o Padre Vaz deu um grande passo em sua vida espiritual, cresceu ainda mais no serviço de tão excelsa Rainha e, portanto, uniu-se ainda mais a Jesus Cristo, sendo favorecido com graças que levaram-no a empreender, mais tarde, um lance de extraordinária envergadura.
De tal modo esse sacerdote marcou seus contemporâneos e as gerações posteriores, que o caminho de acesso às ruínas é hoje denominado Rua Escravo de Maria, e sua localização figura numa placa de informações, na rodovia que passa nas imediações. Não muito distantes encontram-se o santuário do Padre Vaz, ora em fase final de construção, e a residência que pertenceu à sua família. Nesta, o quarto que ele ocupou foi transformado numa pequena capela. Na vizinhança, as casas são poucas e esparsas, de modo que o ambiente é, em linhas gerais, o mesmo de três séculos atrás: um exuberante arvoredo equatorial, cortado por uma estreita e sinuosa estrada.
Seus antepassados, que receberam o santo Batismo e se tornaram fervorosos católicos, pertenciam à casta dos brâmanes, a mais alta da sociedade na Índia.
Uma visita mudou sua vida
Depois de uma temporada de pregação em Kanara, retornou o Padre Vaz a Goa, ingressando na Congregação do Oratório. Essa congregação, que contava então com vários sacerdotes filhos de famílias brâmanes, tomou como modelo o Oratório fundado em Roma por São Filipe Néri e foi distinguida com uma carta de aprovação do Papa Clemente XI. Contam as crônicas que o Padre Vaz, exímio no cumprimento de suas obrigações de vida espiritual, não descuidava das necessidades materiais da comunidade, empenhando-se com afinco na construção de novas celas do convento.
Um dia, nova página se abriu na sua biografia e também na história das missões asiáticas. Retornara de uma visita a Macau, na China, um Cônego da Catedral de Goa, que passara também pelo Ceilão (atual Sri Lanka), de onde trouxe trágicas notícias: protestantes holandeses, estabelecidos nessa ilha, haviam expulsado os portugueses e proibido, sob severas penas, a prática da religião católica. Os sacerdotes foram expulsos, as igrejas confiscadas ou destruídas, e os fiéis dispersados, ficando sem qualquer assistência espiritual.
Tal relato, ouvido pelo Padre Vaz com sentimentos de surpresa e indignação, acendeu em sua alma a chama de uma dedicação ousada e sem limites, à maneira de um São Paulo, de um São Francisco Xavier... Por que não transferir-se para o Ceilão, disfarçado de escravo ou de trabalhador manual, para localizar esses católicos perseguidos e dispensar-lhes toda a assistência necessária? Tratava-se de um plano realmente arriscado, ao qual o Padre Vaz se entregou com alegria. Após um período de espera, obteve ele a necessária autorização de seus superiores. Acompanhou-o um jovem seminarista, seu sobrinho. Nessa época, os mercadores holandeses estabelecidos no Ceilão costumavam vir em embarcações comprar escravos na cidade indiana de Tuticorin. Foi numa dessas naus que, em 1686, o escravo de Maria, levando consigo apenas seu missal, cálice e algumas roupas, fez sua heróica travessia, para alcançar a messe que o Senhor lhe oferecia.
Missão repleta de riscos e sofrimentos
A vida do missionário foi fecunda em cruzes. Chegando em 1687 ao Ceilão, ao desembarcar em Jafna, tanto ele quanto seu companheiro viramse acometidos por grave enfermidade, chegando à beira da morte e sem ter com que se alimentar. Uma mulher pobre apiedou-se deles e caridosamente deu-lhes alimento. Passado algum tempo e recuperada a saúde, puderam entregar-se à luta. Após grandes sacrifícios — inclusive dois anos de prisão —, múltiplos esforços e muita confiança, uma porta se abriu.
Em Jafna, embora com o terço ao pescoço, o Padre José Vaz trajava-se como um pobre trabalhador braçal. Um dia, alguém indagou-lhe, de súbito, se ele era sacerdote católico. O missionário viu-se diante de um grande risco, mas respondeu com uma simples palavra — sim — e uma expressão de santidade... A pergunta partira de um influente chefe de família, um daqueles fiéis que, havia mais de duas décadas, aguardavam o momento de encontrar um sacerdote. Ante a resposta alvissareira, convidou o missionário para ir a sua casa... à noite. E a partir de então, começaram as missões domésticas e noturnas.
Reflorescimento da Igreja no Ceilão
De início, seu apostolado não visava primordialmente converter os pagãos, mas dar assistência aos católicos. Destes, muitos haviam se mantido fiéis e fervorosos sob a terrível perseguição; outros, infelizmente, haviam adormecido num estado de relaxamento e semi-fidelidade. O reafervoramento — quase uma ressurreição — dessas almas, era obra especialmente necessária e difícil. Confiou-a o Padre Vaz à maternal proteção da Santíssima Virgem, sob o título de Nossa Senhora da Conversão dos Fiéis, à qual dedicou também a primeira igreja que construiu. “Conversão dos Fiéis”, uma invocação aparentemente contraditória, porém muito acertada. Pouco a pouco, reconquistada certa liberdade, a Igreja começou a reflorescer em meio aos escombros do passado.
Em 1696, o Padre Vaz escreveu ao Oratório de Goa, pedindo a vinda de outros sacerdotes para ajudá-lo nas lides apostólicas. Encontrou-se muitas vezes em situação difícil, humanamente sem solução. Nessas horas, milagrosamente, a Providência Divina intervinha a seu favor.
Em certo dia, por exemplo, soldados holandeses tentaram prendê-lo. Entretanto, não obstante terem entrado numa sala da residência na qual ele se encontrava pregando, não conseguiram vê-lo.
Em uma de suas frequentes viagens pelo interior da ilha, num caminho em meio à floresta, uma manada de elefantes ameaçou atacar a pequena comitiva. Porém, ao aproximar-se do Padre Vaz, o animal que vinha à frente se deteve e prostrou-se, sem lhe fazer nenhum mal, e os demais seguiram-lhe o exemplo.
Mais tarde, durante uma terrível epidemia que assolou o Ceilão, o Padre Vaz pôde pregar com seu próprio exemplo os ensinamentos da parábola do Bom Samaritano. Sem que sua saúde fosse atingida, dispensou toda a assistência espiritual e material aos doentes, salvando muitas vidas, e também dando sepultura aos mortos.
Por ocasião de outra calamidade, quando a ilha padeceu uma de suas mais rigorosas secas, as orações do abnegado missionário, como outrora as de Santo Elias, atraíram a tão esperada chuva.
Beatificado por João Paulo II
O Padre Basílio Barreto, que saiu de Goa para trabalhar com o Padre Vaz, deixou-nos um expressivo depoimento a seu respeito: “Vendo-o e tomando sua bênção, e dando graças a Deus, pareceu-me que toda a viagem que tinha feito e os trabalhos que nela tinha padecido foram bem empregados, por chegar a ver um padre de tão grande e santa vida. Pois só para ver a esse servo de Deus e imitá-lo, pode vir qualquer pessoa a esta missão, para aprender a santa doutrina, ainda que por isso haja de padecer muitos trabalhos: a sua vida mesma tem efeito de pregação. Não tem ele que ensinar; simplesmente por vê-lo, a pessoa fica logo compungida.” De fato, ao longo de vinte e quatro anos reconquistou o Padre Vaz para Cristo uma ponderável parcela do Ceilão. Nos seus últimos anos, o Rei Vimaladharma dispensava-lhe grande estima, tratando-o como nobre.
A 15 de janeiro de 1711, os sinos das igrejas e capelas do Ceilão repicaram finados por sua morte. Um pouco antes, ao ver a Cruz erguida naquela ilha, repetira ele as palavras do velho Simeão ao ver o Menino Jesus: “Agora, Senhor, podeis levar este vosso servo” (Lc 2, 29).

Em 21 de janeiro de 1995, os sinos de catedrais, igrejas e capelas, agora mais numerosas, repicaram de novo. Desta vez, porém, o repicar era especialmente festivo. Pisando o mesmo solo, contemplando o mesmo panorama — como outrora fizera o Padre José Vaz — e encontrando-se com a multidão dos filhos espirituais do ardoroso escravo de Maria, o Papa João Paulo II vinha a este abençoado país, a fim de proceder à cerimônia de sua beatificação, proclamando solenemente as virtudes heróicas do humilde escravo que se tornou o Apóstolo do Sri Lanka. 

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