Em 17 de julho comemora-se
o martírio das 16 carmelitas de Compiègne1, guilhotinadas nesse dia, em 1794.
Com frequência, a Igreja celebra a festa dos mártires no dia de sua morte,
porque foi o mais glorioso dia de suas vidas, e também porque nasceram para a
vida eterna.
Firmeza heroica diante do tribunal revolucionário
A respeito de uma
delas, Irmã Marie Henriette de la Providence, que contava com 34 anos por
ocasião do martírio, escreveu a Irmã Marie de Encarnation, biógrafa das santas
mártires:
Quando as religiosas entraram
no tribunal, Irmã Henriette distinguiu-se sem pretensão por uma atitude de
firmeza verdadeiramente heroica; tendo ouvido o acusador público tratá-las de
fanáticas, interpelou-o deliberadamente:
“Queira, cidadão,
dizer-nos: o que entende por essa palavra ‘fanática’?”
O juiz, irritado,
respondeu-lhe com uma torrente de injúrias que vomitou contra ela e suas
companheiras.
Nossa Santa, nem um
pouco desconcertada, disse-lhe com um tom de dignidade e firmeza:
— Cidadão, vosso dever
é honrar o direito a uma pergunta de uma condenada. Eu vos peço, portanto, que
nos responda e nos diga o que entendeis pela palavra “fanática”.
— Eu entendo —
respondeu Fouquier-Tinville — o vosso apego por vossas tolas práticas de
religião.
Irmã Henriette,
depois de haver agradecido, voltou-se para a Madre Priora e disse:
“Minha querida Madre,
minhas irmãs, vós acabais de ouvir o acusador declarar que é por nosso apego a
nossa santa Religião que vamos ser mortas. Todas nós desejávamos esse
testemunho e nós o veneramos. Graças imortais sejam dadas Aquele que, em
primeiro lugai nos abriu o caminho do Calvário. Oh! que felicidade morrer por
nosso Deus!”
Segundo outra versão,
Fouquier-Tinville teria respondido:
— Pelo que quereis conhecer
saibais que é por vosso apego à vossa religião e ao rei.
Ao que Irmã Hentiette
teria dito:
— Agradeço, cidadão,
essa feliz explicação.
E, voltando-separa as
companheiras, teria declarado:
“Minha querida Madre,
minhas irmãs, exultemos e regozijemo-nos na alegria do Senhor porque morremos
por causa de nossa santa Religião, nossa Fé, nossa confiança na Santa Igreja
Católica Romana.”
Irmã Henriette foi a
última a morrer antes da Priora, e até o fim exortou suas companheiras à
coragem.
Quando uma pessoa caridosa
ofereceu água a uma das religiosas, como esta ia aceitar Irmã Henriette
impediu-a, dizendo: “No Céu, no Céu, minha irmã, nós tomaremos longos tragos.”
Caracterizado o martírio
Para que ficasse constando,
ad perpetuam rei me moriam2, serem
elas mártires, era preciso que o acusador público declarasse o motivo da
condenação.
Ficava, assim, caracterizado
o martírio. Isso foi um consolo na resistência delas. Eis a razão da pergunta, à
qual se seguiu a resposta. De fato, elas eram mártires porque estavam sendo
condenadas por causa da Igreja Católica.
Como vimos, há duas
versões desse fato. Uma diz que Fouquier-Tinville não teria falado do rei, mas
somente de religião. A outra afirma que ele declarou estarem elas morrendo por
causa do rei também. Esta segunda versão parece-me muito mais provável porque,
uma vez que ele matava todo mundo por causa da fidelidade a Deus e ao rei, o
normal é que ele tenha se referido também ao monarca.
Mas o essencial era
Deus, Nosso Senhor. E quando souberam disso, todas se alegraram, e a Irmã Henriette
acompanhou-as até à morte.
Depois, veio o belo
episódio do copo d’água. Por certo, era uma religiosa que estava com muita
sede, abalada, naturalmente, do ponto de vista emocional, pelo trauma de quem
está se sentindo às portas da morte, e uma morte trágica, violenta. Essa
religiosa quis aceitar um copo d’água que alguém lhe oferecia.
A Irmã Henriette
pensou: “Esse pequeno sacrifício vai ser uma pérola a mais para a glória de
Deus. Para que beber água? Para que ter esse pequeno consolo na hora em que se
pode oferecer mais um pouco de sacrifício?”
Então ela teve essa
expressão magnífica: “No Céu, no Céu, minha irmã, nós beberemos grandes tragos.”
É claro, porque ali
estão as fontes de água viva, Nosso Senhor Jesus Cristo, a contemplação de Deus
face a face e, portanto, a felicidade perpétua.
A outra religiosa
atendeu e, ao receber a coroa do martírio, tinha uma estrela a mais nessa
coroa, por toda a eternidade, por causa desse pequeno sacrifício.
Diversidade das escolas de vida espiritual
Podemos estabelecer
um contraste entre essa narração da Irmã Marie de Encarnation e aquela famosa
figura da peça teatral 3 de Bernanos, Irmã Blanche de la Force, carmelita que,
pelo simples fato de ou vir falar da morte, ficava apavorada, e, dominada por uma
espécie de complexo, acabou fugindo do convento. Ao saber que suas irmãs do
Carmelo estavam indo para o patíbulo, quis assistir à execução.
Quando as últimas religiosas,
que subiam ao cadafalso entoando o Veni Creator Spiritus, se encaminhavam à
guilhotina, a Irmã Blanche saiu do meio da multidão e, cantando também, entrou
na fila, galgou o patíbulo e morreu.
Outra comparação
caberia também entre esta personagem e sua Superiora, que representava uma
escola espiritual oposta à psicologia da Irmã Blanche.
La Force é o nome da
familia francesa dos Duques de la Force, e significa “a força”. Ela chamava-se,
portanto, Branca da Força. Ora, essa Blanche de la Force, segundo o “Diálogo
das Carmelitas”, era uma pessoa com uma espécie de psicose de medo, possuindo
verdadeiro pavor de morrer.
A Superiora, ao contrário,
era como a mulher forte da Escritura: coerente, varonil, de grande
personalidade, dessas que veem aproximar-se a morte de longe, e que vão de
encontro a ela, passo a passo, em holocausto. E, no momento da dor e da
imolação, cumprem um ato de vontade ponderado e maturado antes, profundamente, durante
anos inteiros. Portanto, o esplendor da coerência e da grande escola clássica
de vida espiritual.
Essa Superiora poderia
morrer tendo nos lábios aquelas palavras de São Paulo: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a Fé. Desde
já me está reservada a coroa da justiça que me dará o Senhor, justo Juiz...”4
Em contraposição a ela
está a Irmã Blanche de la Force: fraca, frágil, suscetível a pânicos, muito
desejosa de ser fiel, mas tendo até a miséria de, por psicose, fugir do convento
para escapar da guilhotina. Mas, depois — triunfo da fidelidade dos fracos —,
subindo ao cadafalso, na última hora, e deixando-se matar juntamente com as
outras.
A oposição das duas
escolas insinuã a possibilidade — que existe mesmo — de uma alma ter essa
estrutura e, entretanto, ser muito bem intencionada e fiel.
O perigo está no fato
de isso poder ser legitimo, mas ao mesmo tempo muito parecido com o contrário
da virtude, com a covardia, a incongruência. E, por essa razão, a divulgação de
uma coisa dessas, muito legítima, tanto pode fazer muito bem, em alguns casos,
como muito mal em outros, pois de um lado contribui para animar as pessoas
fracas chamadas a uma grande santidade, mas pode também servir de pretexto à fraqueza
de almas sem generosidade. .
O caso dessas
carmelitas de Compiègne é bem o contrário disso.
Pulcritudes da Santa Igreja
Li o parecer de um
Delegado Apostólico que esteve com elas, alguns anos antes da Revolução
Francesa, e que dizia ter feito uma visita longa, pormenorizada, severa, e as achou,
em tudo e por tudo, de tal maneira perfeitas que ele nem sequer sabia como lhes
aconselhar para melhorarem.
Não se pode fazer um elogio
mais magnífico do que este. Percebe-se que a visita, para ele, redundou em
embaraçosa porque, provavelmente, elas diziam: “Padre, nós estamos descontentes
conosco, queremos melhorar, indique-nos novas virtudes!” E elas estavam num tal
ápice, que ele não sabia o que lhes aconselhar para terem uma virtude ainda
maior.
Então elas foram
colhidas como fruto maduro, quer dizer, a virtude nelas tinha alcançado seu
apogeu, quando chegou a Revolução, a qual foi de encontro a elas, o que
significava também a morte. Mas com a morte, era o Esposo que vinha de encontro
às virgens. E elas eram as virgens fiéis, cujas lâmpadas se encontravam
repletas de azeite, e cujas chamas cintilavam com o maior brilho. De maneira
que, chegando o Esposo, realmente elas estavam prontas para o martírio.
Foi lindíssima a
morte dessas religiosas! Todas elas, antes de subirem ao patíbulo, passavam
diante da Superiora e pediam licença para morrer; a Superiora concedia,
dava-lhes a bênção, e elas iam para a guilhotina. Saíam, assim, diretamente das
mãos do carrasco para as mãos imaculadas de Nossa Senhora.
Essas coisas são de
uma beleza angélica, supraterrena!
É uma trajetória em
linha reta, toda feita de força, de coerência, que consola, anima e estimula a
quem, como em nossa época, é obrigado aos zigue-zagues das incoerências, das
exceções, dos conformes.
Ali, não! É como o
voo da águia; não tem incoerências nem transigencias. Vai direto da torre ao
mais alto rochedo, olhando para o Sol numa linha reta que verdadeiramente nos
entusiasma!
O que devemos deduzir
disso?
Há almas fracas a
quem esses exemplos enregelam e paralisam. Entretanto, não os recordo para
causar-lhes terror, mas a fim de que compreendam e amem todas as vias dentro da
Igreja Católica. Há moradas para todos; e cada um deve amar sua morada e também
as moradas dos outros. Porque é o conjunto dessas moradas que constitui, na Terra,
a Igreja militante, e no Céu formará a Igreja triunfante.
E reconheçamos que a
morada dessas carmelitas é esplêndida, um verdadeiro palácio. E o palácio da
coerência, da previsão e do grande estilo da vida espiritual.
São as vias diferentes
da Providência Divina para as almas, e as várias maravilhas que Deus opera nas
pessoas que Ele escolhe. A algumas, por exemplo, Ele chama por meio desse ato
da Irmã Henriette, que é o contrário da Irmã Blanche de la Force. Vê a morte de
longe, encara-a, enfrenta com alegria o acusador, fá-lo declarar o martírio
para todas, ajuda-as a aceitar a morte, e só não morre depois da Priora porque
a ordem hierárquica pedia que esta morresse por último.
É um caminho de Deus,
um modo de guiar as almas e de modelá-las. Mas Ele é infinitamente belo na unidade
e na variedade desse caminho. Exatamente por serem os santos tão diversos e
haver escolas espirituais distintas dentro da Santa Igreja Católica, cada uma
delas refletindo uma beleza de Deus, compreendemos algo da pulcritude da Igreja.
Assim, temos uma ideia
do que pode ser a beleza no Céu, onde não só vemos Deus face a face, mas O contemplamos
pela formosura incomensurável de cada uma das almas que ali se encontram; cada
Anjo, cada Santo e, sobretudo, Aquela que compendia em Si e supera indizivelmente
a beleza espiritual de todos os Anjos e todos os Santos: Maria Santíssima.
Plinio Correa de
Oliveira – Extraído de conferências de 23/6/1965, 23/7/1969 e 1 /8/1972)
1) Cidade
próxima a Paris.
2) Do latim:
para a perpétua memória do fato.
3) “Diálogo das
Carmelitas” (título Original: Dialogue des Carmelites), de Georges Bernanos (*
1888 - t1948).
4) 2Tm 4, 7-8.
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