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quinta-feira, 9 de outubro de 2014

São João Berchmans

Quando São Tomé inquiriu Nosso Senhor acerca do rumo que deveriam tomar seus discípulos para seguir suas pegadas, Jesus não indicou outro caminho senão a Si mesmo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 16, 6). Ensinava assim o Mestre que Ele personificava a doutrina que pregava. Nesse sentido, algo análogo pode ser dito dos fundadores das Ordens Religiosas, cuja espiritualidade própria a cada carisma é o sendeiro por onde seus filhos devem trilhar para o cumprimento da sua vocação.
Exemplo paradigmático foi Santo Inácio de Loyola, que almejou a santidade com todas as veras de seu coração e soube “formar a mentalidade de seus seguidores de acordo com o que hauriu da Igreja, encaminhando-os à perfeição. E os jesuítas, por sua vez, procuravam se conformar a Santo Inácio, tendo não poucos alcançado de fato a heroicidade de virtudes”.1 Um desses foi São João Berchmans.
Concepção séria da vida desde a infância
Primogênito de cinco irmãos, nasceu em Diest, a 13 de março de 1599, no seio de fervorosa família católica, recebendo o Batismo logo no dia seguinte. As guerras, que ao longo do século XVI semearam a destruição em toda a região dos Países Baixos, não pouparam os ilustres Berchmans da pobreza. O pai, curtidor de peles, chegou até a ter que exercer o humilde ofício de sapateiro, enquanto a mãe, acometida de uma paralisia, via-se obrigada a guardar o leito. Nessas circunstâncias, a educação do pequeno João e de seus irmãos foi entregue aos cuidados de umas tias religiosas. O fato de ter conhecido de perto as dificuldades dos pais na manutenção do lar ajudou a dar-lhe, desde bem pequeno, “uma concepção da vida, se não severa, pelo menos muito séria”.2
Com apenas seis anos de idade ingressou na Klyne school, transferindo-se pouco tempo depois para a Grande École. No caminho para as aulas, seu olhar infantil contemplava um espetáculo cotidiano de ruínas. No meio delas, perto do velho mercado, erguia-se a imponente Igreja de Saint Sulpice, onde fora batizado. Todos os dias o menino ali entrava para rezar. Um sacerdote convidou-o para ser coroinha e a partir daí começou a desabrochar no pequeno João seu entusiasmo pelo serviço do altar.
Quando completou dez anos, estava claríssima sua propensão ao sacerdócio. A mãe, desapegada do filho, aceitou seu afastamento e foi ele confiado ao cônego Pierre van Emmerick, excelente educador e pároco de Notre Dame de Diest, que lhe proporcionou boa formação intelectual e religiosa. Com o passar do tempo o jovem se revelava cada dia mais humilde e solícito, bem como inteligente, aplicado e dócil.
Encontro com a vocação religiosa
Aos 13 anos, devido à difícil situação econômica familiar, o pai o chamou para ajudá-lo no trabalho. O rapaz, todavia, suplicou-lhe: “Pai, não me impeça de continuar meus estudos; viverei de pão e água, mas deixe-me ser sacerdote”.3
A Providência interveio em seu favor: a pedido de suas tias religiosas, o capelão da comunidade o recebeu em sua casa, ainda que por pouco tempo, pois o cônego Frans van Groenendonk, amigo da família, julgava que tão brilhante aluno deveria ir para a Grande École de Malines. Os pais aquiesceram e ele para lá se dirigiu, alojando-se como empregado doméstico na casa do cônego e grande cantor da Catedral de Saint Rombaut, o qual arcava com as despesas de seus estudos.
Representou uma considerável mudança de horizontes ir da interiorana Diest para Malines, naquele tempo cidade importante e com ares de capital. De dia servia a seu mestre e à noite estudava, à luz de uma simples vela, no sótão onde dormia. Nessa rotina foi forjando e temperando a vontade, sem deixar macular a espontaneidade de sua alma inocente.
Em 1615, a abertura de um colégio jesuíta na cidade provocou uma grande evasão de alunos das outras instituições educacionais para o novo educandário, entre eles João Berchmans, que ali se matriculou no curso de retórica. Firme nos ensinamentos recebidos desde a infância e ávido de uma vida disciplinada, traçou para si um programa de conduta, tendo como pontos principais: “a cada dia a Missa, a recitação do Rosário e do Pequeno Ofício da Santíssima Virgem; Confissão semanal e — o que era muito para a época — a Comunhão a cada 15 dias”.4
A leitura da vida de Luís de Gonzaga o entusiasmou; tomou a resolução de fazer-se religioso e escreveu aos pais: “depois de muitas comunhões e de boas obras preparatórias, decidi-me e fiz o voto de, pela graça de Deus, nosso Mestre, servi-Lo na vida religiosa”.5
A primeira grande prova
Isso trouxe uma tremenda decepção para o senhor Berchmans, que partiu para Malines, a fim de impedir a realização dos propósitos do filho. Se ao menos ele se doutorasse na Universidade de Louvain, poderia ajudar a família! Fazendo valer sua autoridade, levou João aos padres capuchinhos, pedindo-lhes para examinarem a autenticidade de sua vocação. Estes, porém, não puderam deixar de reconhecer o apelo divino, e encorajaram o jovem em seu intento. Houve ainda troca de cartas entre Malines e Diest, mas o tempo acalmou os ânimos. Estava vencida esta grande prova inicial.
João concluiu como primeiro aluno o curso de retórica e, aos 17 anos, bateu à porta do noviciado da Companhia de Jesus. Seu coração palpitava de ardor missionário: queria ir encontrar-se com os filhos de Santo Inácio nas terras longínquas da Índia, do Japão, da China e das Américas; e com esse objetivo desejava estudar para conhecer com profundidade a beleza dos tesouros da doutrina da Igreja, chegando a ser um notável teólogo. Tão feliz se sentia por ter sido admitido como noviço jesuíta que chorou de alegria.
Frère Hilarius
No noviciado, a rigorosa disciplina espiritual vai esculpir e burilar sua personalidade, pondo-lhe as rédeas da alma nas mãos. Sua fé intrépida e a fidelidade inquebrantável à Regra, unidas a uma requintada delicadeza de coração, refulgem em toda a sua pessoa.
Após um ano de noviciado, o superior confiou-lhe o cargo de prefeito dos noviços. Quando era necessário impor um trabalho desagradável, ele o pedia com uma palavra tão amável e um sorriso tão franco que a resistência se tornava impossível. E se tinha uma reprimenda a fazer, jamais abordava o companheiro sem antes haver rezado.
Seus confrades o chamavam de Frère Hilarius — Irmão Alegre —, pois rejeitava energicamente qualquer sombra de tristeza ou melancolia. Sua grande mortificação consistia na vida comum, na dupla acepção do termo: o cotidiano e a exímia fidelidade à Regra em todos os atos da comunidade, em perfeita e contínua obediência.
Em setembro de 1618, emitiu os votos solenes e escreveu ao pai: “Eu morrerei sobre a Cruz de Jesus, nela pregado pelos três cravos da pobreza, da castidade e da obediência. Quão doce é morrer na Companhia de Jesus, nos braços de Jesus. Alegrai-vos: vosso filho viverá nesta morte e viverá feliz”.6
Defensor da Imaculada Conceição
Apesar de sua firmeza, experimentava o medo espiritual de não perseverar na vocação, o que na verdade era a desconfiança de si mesmo. E é junto à Virgem que ele encontra a paz. “Se amo a Maria, estou seguro de minha salvação, de minha perseverança no estado religioso, e obterei de Deus tudo quanto quero”.7 E ele não queria senão a santidade.
Ainda no noviciado, pronunciara um voto de devoção a Nossa Senhora, segundo um costume na época; e em 1620, já no último ano de sua vida, escreveu de punho e letra um novo voto em defesa da Imaculada Conceição, assinando-o com o próprio sangue. Até hoje esse documento se conserva em um relicário, no Colégio São João Berchmans de Bruxelas.
Segundo o Cardeal João de Lugo, jesuíta e eminente teólogo contemporâneo do Santo, “não se teria conseguido, sem a influência sobrenatural desse jovem estudante jesuíta de Roma”,8 a promulgação do decreto de 24 de maio de 1622, no qual o Papa Gregório XV prescreveu: “Ninguém afirme, verbalmente ou por escrito, em público ou em privado, sob pena e censura gravíssima, nada contrário à Imaculada Conceição”.9 Foi este um importante passo para a solene proclamação do dogma, feita dois séculos e meio mais tarde pelo Beato Pio IX.
No Colégio Romano
No mesmo ano em que fez os votos solenes, seu superior o mandou estudar filosofia no Colégio de Antuérpia. Entretanto, sua inteligência e aplicação determinaram o Padre Provincial a transferi-lo para o Colégio Romano, atual Universidade Gregoriana.
Ali, uma grande alegria lhe encheu a alma: a cela do Bem-aventurado Luís de Gonzaga lhe fora atribuída. Coincidência... ou Providência? Sua chegada causou viva impressão aos professores e alunos. Entre estes, comentava-se: “Chegou um pequeno flamengo com ares de anjo”.10 Sua única obrigação agora era estudar, e a isso se dedicou com todas as suas energias.
Ânimo e alegria na enfermidade
No começo de sua vida religiosa ele se interrogava: “Com tantos meios que me serão oferecidos, como não chegar à mais alta santidade?”. E, profeticamente, dizia: “Se não me santifico em minha juventude, os anos não me trarão a santidade”.11 O Senhor concedeu-lhe a graça de chegar ao heroísmo das virtudes com apenas 22 anos de idade.
Julgava-se um pecador e se submetia a austeras privações em matéria de alimento. Como se admirar de que isto, somado a tantos esforços intelectuais e morais, lhe debilitasse a saúde? Assim, no fim de 1620, João viu-se em face da enfermidade.
Enquanto a doença minava seu corpo, ele travava uma grande luta interior para manter a serenidade. Seu diário de notas íntimas revela a tremenda aridez pela qual passava. Em meados de dezembro, Deus recompensa sua severidade para consigo, concedendo-lhe uma grande consolação, “um rio de paz”.12 No último dia do ano ele reconhece seu progresso no completo abandono nas mãos do Criador: “Não creio que seja mais apegado a qualquer coisa”.13 E em abril seguinte, manifesta sua inteira impassibilidade no tocante à saúde: “Antes morrer do que ser obrigado, pela preocupação com minha saúde, a renunciar a qualquer coisa do ideal de santidade ao qual Deus me chama”.14
Embora debilitado, prestou em julho, com grande êxito, o exame público conclusivo do ano de filosofia. E em princípios de agosto, designado pelos superiores, representou o Colégio Romano na defesa de sua tese, no Colégio Grego. Desempenhou-se com tanto brilho que o auditório o aclamou encantado. No dia seguinte, acometido por uma violenta febre, foi transportado para a enfermaria, de onde não mais saiu.
Integridade de alma até o fim
Reinava a inquietação no Colégio Romano: professores, alunos e até os médicos mostravam-se comovidos.
No dia 10 de agosto, agravou-se o mal do jovem Berchmans. As visitas se sucediam e o enfermo consolava os visitantes, falando-lhes das alegrias do Céu. Na madrugada seguinte, recebeu o Santo Viático e improvisou uma profissão de Fé. Foi-lhe administrada a Extrema Unção e, segundo o costume da Companhia, ele se acusou publicamente das faltas contra a Regra, calmo e imperturbável. No ouvido do Padre Reitor, porém, confidenciou que sua grande consolação era a de nunca haver cometido um pecado venial deliberado, durante sua vida de religioso.
Adentrava-se a derradeira noite. O santo enfermo começou a agitar-se e exclamou de súbito, com a fisionomia alterada: “Não! Não! Não farei! Isso jamais... Mil vezes não! Fora, satanás!”.15 Mistério da luta final... Todos os presentes redobraram as orações e aspergiam o leito com água benta. Empunhando seu Rosário e seu Crucifixo, João disse: “Eis as minhas armas!”.16 Abriu, em seguida, o livro da Regra e recitou com piedade a fórmula dos votos, omitindo as palavras “a fim de nela passar o resto de meus dias”. Estava na plena posse de sua consciência.
Chegara o dia 13 de agosto de 1621. Amanhecia e, como precisava sair para celebrar sua Missa, o Padre Reitor se aproximou do catre do moribundo e rogou-lhe que não morresse antes do seu retorno. Irmão João assentiu, em sinal de obediência. E quando ele regressou, o Santo manifestou ainda uma vez a alegria de haver obedecido, e pediu que os presentes recitassem a Ladainha de Nossa Senhora. Era por volta das 8 horas da manhã e suas últimas palavras foram Jesus e Maria. Nas invocações Sancta Virgo Virginum e Mater Castissima, inclinou a cabeça, em sinal de veneração, e expirou com os olhos fitos no Crucifixo.
Uma multidão afluiu ao Colégio Romano para prestar-lhe a extrema homenagem. Sua batina foi feita em pedaços. Por duas vezes tiveram que revestir o cadáver. Todos queriam uma relíquia do jovem santo jesuíta. Um cego recuperou a vista e as graças se multiplicaram. O Papa Leão XIII o canonizou em 15 de janeiro de 1888.
São João Berchmans passou com admirável serenidade por tudo quanto se pode chamar de decepções humanas: não teve tempo de ser missionário, nem foi o grande teólogo almejado. Mas realizou plenamente seu ideal sobrenatural: “Quero ser Santo, um grande Santo e em pouco tempo”!17
1 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Santo Inácio de Loyola. Alma repleta de lógica e enlevo. In: Dr. Plinio. São Paulo. Ano IX. N.100 (Jul., 2006); p.62.
2 HOORNAERT. Introduction. In: LIOBA, Marie. Le vrai visage de Saint Jean Berchmans. Bruges: De la Vigne, 1962, p.18.
3 LIOBA, op. cit., p.36.
4 Idem, p.40.
5 Idem, p.42.
6 Idem, p.48.
7 Idem, p.50-51.
8 GONZÁLEZ VILLANUEVA, Joaquín. San Juan Berchmans. In: ECHEVERRÍA, Lamberto de; LLORCA, Bernardino; REPETTO BETES, José Luis. Año Cristiano. Madrid: BAC, 2005, v.VIII, p.418.
9 REYES PEÑA, Mercedes de los. Un pasquín anti-inmaculista en la Sevilla del primer tercio del siglo XVII. In: REYES CANO, Rogelio; REYES PEÑA, Mercedes de los; WAGNER, Klaus (Eds.). Sevilla y la literatura: homenaje al Profesor Francisco López Estrada en su 80 cumpleaños. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2001, p.143.
10 LIOBA, op. cit., p.57.
11 Idem, p.73.
12 Idem, p.76.
13 Idem, p.77.
14 Idem, p.78.
15 Idem, p.90.
16 Idem, ibidem.
17 Idem, p.47.


Irmã Juliane Vasconcelos Almeida Campos, EP – Revista Arautos do Evangelho n.140 ago 2013

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