O menino para quem
Jesus olhou...
Por duas vezes, Nosso
Senhor tomou um menino como exemplo para os discípulos, enaltecendo o valor da
inocência. Estêvão, o primeiro mártir da Igreja, teve o incomensurável
privilégio de ser um deles.
Ao lermos as
palpitantes páginas dos Evangelhos, sentimo-nos convidados a sair do
corriqueiro da vida cotidiana para sermos transportados a páramos mais elevados
de onde parece emergir, suave e majestosamente, a figura de Jesus.
Podemos então
imaginar aquela sagrada silhueta iluminada pelos últimos raios de um sol
poente, andando pelas poeirentas estradas da Galiléia ou acariciando com sua
sombra benfazeja as frescas margens do lago de Tiberíades.
Em todas as suas
atitudes, em seus nobres gestos e em suas palavras repassadas de seriedade, o
Divino Mestre deixava transparecer aquele insuperável amor pelas criaturas. Seu
olhar doce e atraente procurava com divino afã almas dóceis a seus conselhos,
que quisessem sujeitar-se ao suave domínio de seu jugo. Que alegria
experimentava aquele Coração amoroso ao encontrar, em meio às ruidosas
multidões que O seguiam, algum coração puro e inocente, inteiramente aberto e
consoante com o seu!
“Tomando um menino,
colocou-o no meio deles; abraçou-o e disse-lhes: ‘Quem recebe um destes meninos
em meu nome, a Mim é que recebe; e quem recebe a Mim, não Me recebe, mas Aquele
que Me enviou’” (Mc 9, 36-37).
Cena admirável: a
Inocência incriada inclina-se com agrado sobre a inocência
criada! Oh feliz criança cuja candura atraiu os olhares do Salvador!
“Homem cheio de fé e do Espírito Santo”
Uma piedosa tradição
multissecular conta-nos que se tratava de Estêvão. Desde cedo recebera esmerada
educação na escola de Gamaliel, famoso doutor da lei. Em pouco tempo, graças à
sua inteligência e aplicação, Estêvão tornou-se um entendido nas Sagradas
Escrituras. Segundo Santo Agostinho, quando ouviu a pregação de Pedro um raio
da graça penetrou seu coração e o jovem decidiu abraçar a fé cristã com grande
entusiasmo. Logo de início, destacou-se por seu zelo e virtude de tal modo que
nos Atos dos Apóstolos Lucas no-lo descreve como “homem cheio de fé e do
Espírito Santo” (At 6, 5).
A pregação incessante
dos Apóstolos, após Pentecostes, fazia aumentar a cada dia a multidão dos fiéis
que acreditavam no Senhor. Surgiu, porém, nesses dias um problema: os cristãos
gregos queixavam-se de que suas viúvas estavam sendo negligenciadas na
distribuição diária de auxílio. Necessitando dedicar-se exclusivamente à oração
e ao ministério da palavra, decidiram os Doze encarregar desse ofício “sete
homens de boa reputação” (At 6, 3), e Estêvão foi um dos escolhidos. Imediatamente
entregou-se ele ao serviço dos irmãos.
Rosto semelhante ao de um anjo
Tudo parecia pouco
para o ardoroso ímpeto daquele jovem que “cheio de graça e fortaleza, fazia
grandes milagres e prodígios entre o povo” (At 6, 8). Em meio aos árduos
trabalhos, encontrava alento na rememoração daquele olhar meigo e sereno de
Jesus que anos atrás havia acariciado seus cabelos de menino. E no mais
profundo de seu ser acalentava o sonho de um dia poder misturar o seu próprio
sangue ao Preciosíssimo Sangue derramado até a última gota no alto do Gólgota.
Os inimigos de Cristo
não podiam suportar por muito tempo a presença do intrépido jovem que lhes
lembrava pública e continuamente a imagem do Crucificado. Desejosos de reduzir
ao silêncio pregador tão importuno, “levantaram-se para disputar com ele, mas
não podiam resistir à sabedoria e ao Espírito que o inspirava” (At 6, 9-10).
Enfurecidos ao verem-se impotentes, “agarraram-no e o levaram ao Grande
Conselho” (At 6, 12). Mas ele não se acovardou: calmo e sereno, enfrentou o
populacho amotinado e as falsas acusações de testemunhas subornadas que lhe
imputavam o crime de ter blasfemado contra Moisés e contra Deus. A alegria de
poder oferecer sua vida pelo Senhor pervadia-lhe a alma e refletia-se
exteriormente, de modo que “todos os membros do Grande Conselho viram o seu
rosto semelhante ao de um anjo” (At 6, 15).
“Esbravejavam de raiva e rangiam os dentes contra ele”
Interrogado pelo Sumo
Sacerdote, Estêvão respondeu com longo e abrasado discurso, no qual manifestou
filial respeito e veneração pelos antigos patriarcas, louvou a piedade de
Abraão, a paciência de José e os grandiosos feitos de Moisés; e mostrou quão
injustas e infundadas eram as acusações contra ele proferidas. Depois,
inflamado de santa ousadia, exclamou: “Homens de dura cerviz, e de corações e
ouvidos incircuncisos! Vós sempre resistis ao Espírito Santo! Como procederam
vossos pais, assim procedeis vós também! A qual dos profetas não perseguiram os
vossos pais? Mataram os que prediziam a vinda do Justo, do qual vós agora
tendes sido traidores e homicidas. Vós que recebestes a lei pelo ministério dos
anjos e não a guardastes...” (At 7, 51-53).
O corajoso diácono
não pôde terminar seu inspirado testemunho. Aquelas palavras eram por demais
verdadeiras para serem suportadas pelos inimigos da fé, os quais “esbravejavam
de raiva e rangiam os dentes contra ele” (At 7, 54). Mas Estêvão, cheio do
Espírito Santo, permanecia de pé, no meio daquela hostil assembléia. Os
insultos para ele nada representavam. Pelo contrário, eram um estímulo para
crer nos coros de anjos que, além das muralhas das aparentes realidades desta
vida, o aguardavam com uma palma e uma coroa. Levantando os olhos para o céu,
viu aparecer-lhe o próprio Jesus, refulgente de glória, sustentando-o com seu
divino olhar naquele supremo instante. E exclamou cheio de gozo: “Eis que vejo
os céus abertos e o Filho do Homem, de pé, à direita de Deus” (At 7, 56).
Ouvindo isso, os
membros do Grande Conselho rasgaram as vestes e taparam os ouvidos enquanto,
com grandes gritos, clamavam pela morte do “blasfemador”. Estêvão viu-se rodeado
por uma multidão ululante e sedenta de vingança que o empurrava violentamente para
fora da cidade. Lá chegando, começaram a apedrejálo. Em meio a horríveis
sofrimentos, o atleta de Cristo orava: “Senhor Jesus, recebe o meu espírito”
(At 7, 59). Nem mesmo uma tão sublime cena conseguiu comover algum desses
corações endurecidos; cegos de ódio, continuavam a lançar enormes pedras sobre
a inocente vítima.
Posto de joelhos,
Estêvão percorreu uma última vez com os olhos a horda criminosa dos
perseguidores. Suas vistas, já turvadas pela iminência da morte, detiveram-se,
por alguns momentos, sobre um jovem de Tarso que guardava os mantos dos
apedrejadores. Saulo, o fanático adepto dos fariseus, o adversário irreconciliável
de Jesus Cristo, sentiu-se perturbado ante a insistência daquele olhar que o
fixava com expressão severa e compassiva. E o angelical diácono exclamou em
alta voz: “Senhor, não lhes leves em conta este pecado... E a estas palavras
expirou” (At 7, 60).
Na aparente derrota, a vitória suprema
Tudo estava
consumado. O primeiro mártir acabava de regar com o seu próprio sangue aquela
semente de santidade que, numa quente tarde de verão, o Homem-Deus havia
lançado
em seu infantil coração. O grão de trigo estava morto, jazendo por terra, caído
sob os golpes de um ódio bestial e injusto. Os lábios do jovem pregador não
mais se abririam para invectivar com palavras de fogo; as dedicadas mãos do
diácono não mais se moveriam para batizar ou servir; sua nobre presença,
insuportável para os maus e doce para os bons, não mais se faria sentir; tudo
isso estava agora reduzido a um pobre corpo ensanguentado, sem vida.
Entretanto, os
inimigos não festejaram com manifestações de alegria sua vitória homicida. Ao
contrário, diante da demonstração de fé e de nobreza que acabava de presenciar,
a assistência retirou-se pesarosa e frustrada, procurando fugir daquele trágico
espetáculo que lhe incomodava a consciência.
Estêvão, o derrotado,
havia vencido! Seu testemunho de fé seria alento para os cristãos até o fim dos
tempos. E seu generoso holocausto não tardaria em frutificar na alma daquele
infame jovem que aprovara a sua morte: de Saulo surgiria Paulo, o incansável Apóstolo
dos gentios, graças ao sacrifício e às orações do primeiro mártir a quem
outrora Jesus havia olhado!
Ir. Clara María Morazzani, EP Revista Arautos do Evangelho n.48 dez 2005
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