Patriarca de uma nova
era
A 16 de março do ano
455, o imperador Valentiniano III sucumbia sob os golpes de dois soldados da
Guarda Imperial, no Campo de Marte. Com sua morte, extinguia-se a dinastia dos
Teodósios, última estirpe a reinar sobre Roma, e apressava-se o fim de um
Império já em declínio.
A partir daquele dia,
o trono dos césares seria disputado durante mais de vinte anos por governantes
efêmeros, joguetes das manobras políticas ou das paixões humanas desenfreadas.
Velho e desgastado, o Estado Romano se desagregava antes de cair
definitivamente, minado em seu interior, corroído em suas bases pela decadência
dos costumes, bem como pela desorganização política, militar e financeira.
“Entre os romanos já não havia educação, mas corrupção moral e intrigas, a vida
de família estava destruída”.1
De outro lado, as
sucessivas invasões dos bárbaros do norte haviam enfraquecido o poderio e a
coesão da Roma de outrora. No entanto, “não foram os bárbaros que destruíram o
Império, ele mesmo se aniquilou; os estrangeiros foram meros executores da
sentença de morte pronunciada pela Ordem moral contra o mundo antigo”.2
Naquela crucial
quadra histórica, a Divina Providência suscitou varões como São Severino, Santo
Isício, Santo Avito de Vienne — e, mais tarde, Santo Agostinho de Cantuária,
São Bonifácio ou São Columbano —, que haveriam de ser germens de uma nova era
nascida dos escombros do Império Romano do Ocidente.
A figura desses
homens de Deus, aureolada pela fama de suas virtudes — e quantas vezes por
numerosos milagres! — exercia poderosa influência entre os bárbaros. Guerreiros
de aspecto aterrador, eram eles homens ávidos por conhecer as verdades
sobrenaturais e, ao tomar contato com os prelados e os religiosos, despertavam
para a luz matinal da Religião Cristã, a qual lhes aparecia com o esplendor da
aurora.
Bispo de Reims aos 22 anos
Remígio nascera em
Laon, no ano 437, de nobre família galo-romana. Desde muito cedo, sua
inteligência e uma especial facilidade para a oratória despertaram a admiração
de seus mestres e condiscípulos. A fama de sua eloquência espalhou-se a tal
ponto que, em 459, quando o Bispo de Reims faleceu, foi ele escolhido para
substituí-lo.
A atuação desse jovem
de apenas 22 anos à frente de tão importante sé episcopal revelou, em pouco
tempo, o acertado da escolha. “São Remígio era um Bispo de uma ciência notável
e primeiro tinha se impregnado do estudo da retórica, mas de tal maneira se
distinguia também pela santidade, que se igualava a Silvestre nos milagres”3 —
descreve São Gregório de Tours em sua célebre Historia Francorum.
A caridade e doçura
do jovem Prelado logo conquistaram os corações dos fiéis, pelos quais se
desdobrava, aliviando a todos os que solicitavam seu auxílio, quer com esmolas
materiais, quer com o consolo e a instrução do espírito. Todavia, sem abandonar
o cuidado daqueles, pelo Batismo, já pertencentes ao redil de Cristo, São
Remígio ardia no desejo de conquistar novas almas.
A tribo dos francos sálios
Ao norte de Reims, no
atual território da Bélgica, havia se estabelecido a tribo dos francos sálios.
Em sua origem, talvez, a mais modesta dentre as germânicas, no decorrer dos
anos ela alcançou preponderância em todos os campos, sobretudo na arte militar.
Suas qualidades não passaram despercebidas ao olhar atento do Bispo de Reims, o
qual via pairar sobre esse povo um especial desígnio de Deus. Impelido pelo seu
coração de apóstolo, desejava ele atraí-lo para o seio da Igreja.
Remígio fixara sua
atenção, sobretudo, no rei Childerico, quem, em 464, retornara junto aos seus
após ter passado oito anos exilado na Turíngia. Durante dezesseis anos de
paciente apostolado, esforçou-se por atrair a alma do chefe franco para abraçar
a Fé Católica. Este, contudo, resistia. Se, por um lado, mantinha bom
relacionamento com os eclesiásticos e lhes dava seu apoio, por outro,
continuava ferrenhamente apegado a seus deuses.
Certo dia,
entretanto, chegou à sé episcopal de Reims a notícia de que Childerico acabava
de falecer, na força da idade, sem haver manifestado nenhum desejo de receber o
Batismo. Todos os esforços de Remígio caíam de súbito por terra! Tantas
esperanças acumuladas ao longo de quase duas décadas desfaziam-se como uma
miragem... Ter-se-ia enganado? O sonho, tanto tempo acariciado, não teria sido
apenas uma quimera, fruto de sua imaginação?
Clóvis sucede a seu pai, Childerico
Muitos outros
missionários teriam desanimado ante esse aparente fracasso. Não, porém, o Bispo
de Reims. Sua alma, exercitada na virtude, possuía a têmpera do herói e a
confiança do profeta. Longe de desalentar o enérgico Prelado, a morte do rei
dera-lhe ainda mais audácia.
Childerico deixara
como sucessor o filho Clóvis, um adolescente de 15 anos, que os francos se
apressaram em proclamar rei. Tornava-se indispensável, logo de início,
ganhar-lhe a amizade, bem como inculcar-lhe um santo respeito pela Igreja e por
seus representantes.
Remígio dirigiu-lhe,
então, uma missiva na qual se harmonizavam o afeto do pai e a autoridade do
mestre: “Primeiramente, deveis cuidar que o juízo do Senhor não vos abandone, e
que vosso mérito se mantenha na altura aonde o levou vossa humildade; porque,
segundo o provérbio, as ações do homem se julgam pelo seu fim. Deveis
rodear-vos de conselheiros dos quais possais vos ufanar. Praticai o bem, sede
casto e honesto. Mostrai-vos cheio de deferência para com vossos Bispos, e
recorrei sempre a seus conselhos. [...] Diverti-vos com os jovens, mas
deliberai com os anciãos, e, se quereis reinar, mostrai-vos digno”.4
Essa sua carta era o
primeiro passo de uma longa caminhada que levaria o jovem rei às fontes
batismais da Catedral de Reims.
Um coração fechado para a graça
Durante dez anos, Clóvis
contou com a amizade e o apoio de São Remígio para governar o seu reino. E
apesar do coração do chefe franco não dar sinais de abrir-se para a graça,
nesse período, a influência do Bispo sobre ele aumentava e se robustecia. “O
rei pagão aprendia a inclinar-se diante da superioridade moral do sacerdote de
Cristo. [...] O homem a quem a voz popular atribuía a ressurreição de um morto
ia tornar-se instrumento da ressurreição de um povo”.5
Em 491, Clóvis ficara
viúvo. Remígio mediu o risco que corriam os interesses da Igreja se ele
resolvesse casar-se com uma princesa pagã ou, pior, afeita à heresia ariana.
Sabia o quanto a superstição de Basina, esposa de Childerico, havia constituído
um obstáculo para a conversão deste. Por isso, em combinação com Avito, Bispo
de Vienne, Remígio propôs ao rei franco casar-se com Clotilde, filha do rei dos
burgúndios, que era cristã e fora, desde a infância, educada pelo próprio
Avito.
Clóvis aceitou. No
ano seguinte, celebraram-se as núpcias na cidade de Soissons, sob os auspícios
e as bênçãos do Bispo de Reims. Agora este tinha uma poderosa aliada dentro da
própria residência real. Com efeito, cheia de fervor, Clotilde compreendera
conferir-lhe sua união com Clóvis a missão de convertê-lo e, por isso, “não
cessava de recomendar-lhe que conhecesse o verdadeiro Deus e abandonasse os
ídolos”.6
A almejada conversão
O tão anelado dia
chegou na primavera de 496, quinze anos após a ascensão de Clóvis à realeza.
Segundo nos conta São Gregório de Tours, a rainha fez então vir em segredo São
Remígio para “incutir no rei a palavra da salvação”.7
Começando por
mostrar-lhe a inutilidade dos ídolos, o santo Prelado de Reims instruiu o rei
nas verdades da Fé. Falou-lhe de Nosso Senhor Jesus Cristo, de seus milagres e
de seus divinos ensinamentos enquanto Clóvis escutava-o embevecido. Quando,
porém, ouviu relatar a dolorosa Paixão de Jesus, com espontânea energia e
rusticidade o monarca teria se tomado de cólera e exclamado: “Ah! Por que não
estava eu lá com os meus francos?”.8
Seus francos, com
efeito, arrebatados de sobrenatural entusiasmo, perceberam os avanços de seu
soberano rumo à conversão, e haviam decidido seguir seu exemplo. Quando, pois,
este os convocou, a fim de comunicar-lhes sua resolução, bradaram a uma só voz:
“Nós rejeitamos os deuses mortais, piedoso rei, e estamos prontos a seguir o
Deus imortal que Remígio anuncia”.9
“Remígio, não temas!”
Tudo estava pronto para
a cerimônia do Batismo realizar-se no dia seguinte, solenidade do Natal do
Senhor. Entretanto, naquela noite Remígio tremia... Uma dessas provações
características das vias proféticas abatia-se sobre ele, fazendo surgir em seu
interior uma angustiante pergunta: em seu grande empenho pela conversão do rei
franco, trabalhara de fato exclusivamente para a glória de Deus? Ou teria se
esforçado movido por meras preocupações terrenas?
De repente, um raio
de luz iluminou o local onde o homem de Deus rezava em completa escuridão, e
uma voz forte fez-se ouvir: “Remígio, não temas!”.10 Nesse momento, ele pôde
contemplar, numa visão, as gloriosas consequências desse Batismo, para a Gália
e para a Igreja. Sim, o santo Bispo não se enganara, esse acontecimento ia dar
origem a uma nação eleita, que viria a ser durante séculos sustentáculo do
Papado e contribuiria primordialmente para o florescimento da Religião
Católica.
Ante o olhar
maravilhado do venerável eclesiástico passou um desfile de guerreiros
magníficos, alguns dos quais santos, que punham sua espada a serviço da Fé.
Todavia, a esta cena gloriosa sucederam-se outras de desolação: o triste
espetáculo das infidelidades desse povo predestinado, afundando no pecado e no
esquecimento de Deus. E, enquanto imerso nessas cogitações oscilava entre o
júbilo e o horror, outra voz, cheia de suavidade e doçura, sussurrou a seus ouvidos:
“Não tenhas medo, porque Eu estou aqui, e vigio”.11
Remígio recobrou a
calma. Agora podia caminhar sereno, certo de contar com o mais precioso
auxílio.
A Virgem Santíssima,
como Mãe bondosa, velaria pela jovem nação dos francos.
“É este o Reino dos Céus?”
Foi ainda sob o
impacto dessa visão grandiosa que, na tarde do dia seguinte, Remígio avançou em
cortejo pelas ruas de Reims, conduzindo pela mão o rei Clóvis, rumo à catedral.
O prédio, muito menor e mais simples, comparado ao atual, fora ornado de
cortinas brancas e iluminado por milhares de círios aromáticos, como símbolo da
beleza espiritual da Mãe Igreja que nesse dia acolhia os francos como filhos.
“Todo o templo do batistério
estava impregnado de um odor divino e Deus cumulou os assistentes de tal graça
que eles se sentiam transportados em meio aos perfumes do Paraíso”.12 O próprio
Clóvis, deslumbrado ante o esplendor da decoração e dos cânticos, detevese na
soleira do recinto sagrado e perguntou a Remígio: “É este o Reino dos Céus que
tu me prometes? — Não, mas é o começo do caminho que a ele conduz”13, respondeu
o Bispo.
A cerimônia
transcorreu com a maior solenidade possível. Nela, três mil francos, sem contar
as mulheres e as crianças, receberam o Batismo junto com o Rei. Entre eles
estavam sua irmã, a princesa Albofleda, e o pequeno Thierry, nascido do
primeiro matrimônio de Clóvis.
Como Simeão, Remígio
por fim podia cantar: “Agora, Senhor, deixai o vosso servo ir em paz...” (Lc 2,
29).
Nasce uma nova nação
A vontade de Deus
era, porém, de que ele continuasse ainda por muitos anos seu labor apostólico
na Gália. Contando agora com a proteção do rei, Remígio podia dedicar-se a
erradicar a idolatria, anunciando por toda parte o Evangelho de Cristo. Todos
quantos dele se aproximavam saíam beneficiados: os pagãos se convertiam, os
cristãos recebiam o pão da doutrina, os hereges abjuravam seus erros, os Bispos
sentiam-se animados a seguir seu exemplo.
Nos últimos anos de
sua vida, quis o Senhor adornar com a coroa do sofrimento aquela fronte
venerável, já nimbada de glória: numerosas doenças enfraqueceram seu corpo, sem
lograr, contudo, abater-lhe o ânimo ou amortecer sua caridade. Finalmente
Remígio rendeu sua alma a Deus em 530, aos 93 anos de idade e 70 de ministério
episcopal.
No decorrer dos
séculos, sua figura, longe de se evanescer nas brumas do passado, pareceu tomar
maior realce e revelar a verdadeira envergadura de seu espírito. Por sua
fidelidade ao chamado de Deus, São Remígio tornou-se profeta de uma nova era e
patriarca de uma nação católica à qual permanece vinculado para sempre, como
mediador das graças que do Céu baixam sobre ela.
1WEISS, Juan Bautista. Historia Universal. Barcelona: La Educación, 1928, v.IV, p.354. Sobre o quadro
de decadência do império romano na época, ver também BORDONOVE, Georges. Clovis et les Mérovingiens. Paris: Pygmalion, 1988,
p.30.
2 WEISS, op.cit., p.352.
3 SÃO GREGÓRIO DE TOURS. Histoire des francs. Paris: Les Belles Lettres, 1963, v.I, p.121.
4 MGH.
Epistolæ Merovingici et Karoloni aevi, I, 113, apud KURTH, Godefroid. Clovis.
Paris: Jules Taillandier, 1978, p.212-213.
5 KURTH, op.
cit., p.276.
6 SÃO GREGÓRIO DE TOURS, op. cit., p.119.
7 Idem, p.120.
8 FREDEGAIRE,
III, 21, apud KURTH, op. cit., p.297.
9 SÃO GREGÓRIO DE TOURS, op. cit., p.120.
10 BERNET, Anne. Clotilde, épouse de Clóvis.
Paris: Pygmalion, 2006, p.148.
11 Idem, p.150.
12 SÃO GREGÓRIO DE TOURS, op. cit., p.120.
13 HINCMAR, Victa sancti Remigii, apud KURTH, op.
cit., p.310.
Irmã Clara Isabel Morazzani Arráiz, EP
Nenhum comentário:
Postar um comentário