O Arcbispo mártir de Canterbury
"Non licet tibi" —
“Não te é lícito” (Mc 6, 18). As graves palavras do Precursor ressoavam nos
ouvidos de Herodes Antipas, lembrando-lhe quanto desagradava ao Céu sua
incestuosa união com Herodíades, a esposa de seu irmão Filipe.
E quando, a instâncias
de Salomé, os lábios de São João Batista foram para sempre calados pela espada
do verdugo, dir-se-ia que essas recriminações haveriam de cessar
definitivamente. Entretanto, não foi assim: o rei criminoso viveria até o fim
de seus dias atormentado pela lembrança do profeta que continuava a
interpelá-lo: “Non licet tibi”!
Há nesta passagem
evangélica um exemplo paradigmático da luta entre o bem e o mal na face da
Terra. De um lado está o rei adúltero, orgulhoso, sensual e egoísta, lutando
por satisfazer seus vícios e interesses; de outro, uma alma de inquebrantável
retidão, disposta a defender a Lei do Altíssimo, com o preço de seu sangue se
preciso fosse. Na aparência, a vitória foi do primeiro; mas, na realidade, nem
o cárcere nem o patíbulo conseguiram silenciar a força da verdade proclamada
com destemor por quem era justo.
Mais de um milênio
após esse episódio, tendo a Igreja civilizado as nações e estabelecido sua
influência espiritual sobre elas, uma voz serena e firme como a do Precursor
fez-se ouvir na Inglaterra, recordando a um rei tirano os limites do poder
real: a de São Thomas Becket.
O início de uma contenda
Era o dia 1º de
outubro de 1163. Começava na abadia de Westminster o sínodo convocado pelo rei
Henrique II para debater questões concernentes ao governo da Igreja na
Inglaterra. O monarca não concordava com o privilegium fori do clero e,
ademais, não admitia que súditos seus fossem excomungados sem o consentimento
real. Queria, ademais, que fossem restauradas outras prerrogativas desfrutadas
por seus antecessores normandos.
Todos os Bispos eram
unânimes quanto à impossibilidade de ceder a tais pretensões do soberano. Mas quem
se levantaria para enfrentá-lo? Cabia ao Arcebispo de Canterbury, Primaz da
Inglaterra, a difícil tarefa.
Thomas Becket, que
ainda havia pouco era Chanceler Real e grande amigo de Henrique II, assumiu o
grave encargo. No momento oportuno, levantou-se e explicou ao rei a
independência do poder espiritual em relação ao temporal, discorreu sobre o
caráter sagrado do sacerdócio e, afinal, alegou os antigos direitos que
possuíam os Bispos de julgar e punir os membros do clero.
O monarca
encolerizou-se. Interrompendo as palavras do prelado, exigiu que todos
aceitassem sem condições as propostas por ele feitas. São Thomas Becket
respondeu que obedeceriam salvo ordine suo, isto é, na medida em que as regras
por ele ditadas fossem lícitas para um clérigo. Ao ouvir isto, o rei se retirou
irado, sem dizer sequer uma palavra de despedida.
Harmonia entre os dois poderes
A contenda entre os
Bispos ingleses e seu monarca não resultava excessivamente incomum naqueles conturbados
séculos. Os limites da separação dos
poderes temporal e espiritual, estabelecida pelo próprio Cristo — “Dai a César
o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21) —, não estavam bem
definidos ainda, trazendo, como consequência, frequentes e acirrados conflitos.
Por ser a Igreja uma
sociedade visível, constituída por homens, muitos soberanos da época arrogavam-se
o direito de nomear Bispos, legislar sobre a organização interna da Esposa de
Cristo, dispor de suas rendas ou governar livremente sobre os membros do clero,
obviando a circunstância de serem pessoas sagradas.
Ora, é justamente a
independência do poder civil que permite à Igreja desempenhar seu labor em
favor da sociedade, criando condições que tornam a Terra aprazível e habitável,
bem como iluminando o poder temporal — rigorosamente soberano, na sua esfera — com
uma luz celeste que o eleva, consolida e nobilita.
A Igreja necessita da
ação do Estado sobre a sociedade, mas este jamais conseguirá alcançar com
plenitude seu objetivo se não estiver em perfeito acordo com aquela. Da
harmonia entre os poderes espiritual e temporal resulta que Deus jamais é tão
bem servido como quando César se porta como seu filho; e César jamais é tão
grande como quando é filho de Deus.
Essa era a grande
verdade que respaldava a atitude do Arcebispo de Canterbury, e que o orgulhoso
rei Henrique não queria admitir.
Nove cláusulas inaceitáveis
Tomando conhecimento
do acontecido em Westminster, o Papa Alexandre III enviou
mensageiros a São Thomas Becket, recomendando-lhe que, pela paz da Igreja, procurasse
entrar em entendimento com o rei. Mas o monarca, ferido em seu amor-próprio,
exigia uma retratação pública perante todos os Bispos e barões do reino.
O Palácio de
Clarendon, nas proximidades da atual Salisbury, foi o lugar escolhido para tal
encontro, que se realizou no dia 13 de janeiro de 1164, em um ambiente de
demonstrações de fúria do rei e ameaças dos barões. Desejando o soberano deixar
ali bem assentadas as bases de seu domínio sobre a Igreja, mandou redigir uma
lista completa das normas cuja imposição ele tinha em mira. Eram as tristemente
conhecidas Constituições de Clarendon, compostas por dezesseis cláusulas.
Grande choque teve o
Arcebispo quando leu o texto. Algumas dessas cláusulas atribuíam ao poder real decisões
até então de competência da autoridade eclesiástica, outras
atentavam contra a liberdade da Igreja. Assim, por exemplo, os Bispos passavam
a depender da aprovação do soberano para sair do reino. Precisavam também de
uma autorização de Henrique II para excomungar qualquer alto funcionário ou
oficial do rei. Não podiam, nas causas eclesiásticas, apelar ao Papa como
última instância. Quando ficava vacante uma sé episcopal ou uma abadia, esta
caía em poder do soberano. Ele auferia todos os seus rendimentos e benefícios até
tomar posse o novo titular, cuja eleição seria feita na capela real e com o
consentimento do rei, ao qual o novo Bispo ou abade devia jurar lealdade como
vassalo.
O Primaz da
Inglaterra não podia de forma alguma aceitar essas constituições que de tal
modo subjugavam o poder espiritual ao temporal. Apenas cinco das dezesseis
cláusulas, concernentes de fato ao governo civil, eram, de fato aceitáveis, e
foram posteriormente admitidas pelo Papa.
O julgamento de Northampton
O rei, porém, não
pensava do mesmo modo. Estava decidido a submeter a Igreja a suas pretensões e,
para isso, decretou a ruína de quem com tanta força se opunha a elas. Acusando-
o de falsos delitos jurídicos e financeiros, ademais de perjuro por não aceitar
as Constituições de Clarendon — que havia prometido aceitar sem conhecer seu
conteúdo —, o eclesiástico foi intimado a comparecer diante da corte reunida em
Northampton, no mês de outubro de 1164.
Ante as inusitadas
denúncias, o Arcebispo pediu a Henrique um tempo para aconselhar-se com seus
irmãos no episcopado e preparar sua defesa. “Atua sem temor”, disse-lhe seu
confessor Robert de Merton, “escolheste servir a Deus no lugar do rei. Continua
assim e Deus não te decepcionará”.1
Thomas compreendera a
fundo a luta na qual se engajara, e estava disposto a levá-la até o fim.
Entretanto, a maioria dos Bispos, temendo perder as boas graças do soberano,
insistiam com o Primaz para que cedesse perante o rei e renunciasse a seu
cargo.
O Arcebispo de
Canterbury, entretanto, fazendo valer sua primazia, proibiu os Bispos de
tomarem parte no julgamento, caso este chegasse a se realizar, e ordenou que
excomungassem qualquer um que usasse de violência com ele.
Dirigiu-se então ao
castelo real de Northampton, onde, após o Primaz apresentar sua defesa, o rei reuniu
o Conselho para decidir sua sorte. Sentado em outro aposento, Thomas Becket
aguardava com calma e segurança a sentença.
Segundo um conceituado
biógrafo, o Arcebispo foi condenado provavelmente à prisão perpétua. “Porém a
sentença nunca foi declarada, porque quando uma comissão se apresentou para
dar-lhe conhecimento, cada um foi passando para outro a incumbência, ninguém a
aceitou”.2
Seis anos de exílio e tratativas
Vendo que havia sido
decretada sua ruína, São Thomas Becket decidiu fugir do país. Numa noite
chuvosa, depois de várias peripécias, cruzou o Canal da Mancha e foi
refugiar-se na França, onde o rei Luís VII o acolheu solicitamente.
Logo depois se
dirigiu para Sens, onde se encontrava temporariamente o Papa Alexandre III.
Este o recebeu com total benevolência, aprovou sua conduta e reafirmou a
condenação das Constituições de Clarendon. Também lhe concedeu o hábito da
Ordem de Cister, que muito almejava, passando o santo Arcebispo a residir na
abadia de Pontigny, onde compartilhou a frugal vida dos monges cistercienses e
retomou o estudo de teologia, principalmente das Sagradas Escrituras.
Enquanto isso,
transcorreram quase seis anos de intrincadas atividades diplomáticas e de
tentativas de reconciliação, ora promovidas pelo Pontífice, ora pelo rei da
França. Chegar a um acordo não era fácil, pois, como escrevia São Thomas ao
Papa, se prevalecessem as exigências do monarca inglês, “a autoridade da Sé
Apostólica na Inglaterra desapareceria completamente ou seria reduzida a quase
nada”.3
Henrique II, por seu
lado, reconhecia que, caso continuasse com sua política de oposição à Igreja,
teria de sofrer penas canônicas. “Sei que lançarão um interdito sobre meu
reino, mas não posso eu, que sou capaz de tomar uma fortaleza por dia,
aprisionar um clérigo que ponha em interdito minha terra?”4, inquiriu a um
legado papal.
O temor a Deus não
havia ainda se extinguido por inteiro na alma de Henrique e, finalmente, após
inúmeras ameaças da parte do Sumo Pontífice, resolveu fazer um acordo com o
Arcebispo. Autorizou-o a voltar para sua Diocese, sem consentir, porém, em
dar-lhe o beijo de paz.
De volta à Pátria
Triunfal foi a
acolhida do povo de Canterbury, no dia 2 de dezembro de 1170, a seu saudoso
pastor. Ele, entretanto, estava convencido de que a paz não seria duradoura.
Como ensina Santo Agostinho, “a paz é a tranquilidade da ordem”.5 Se não
prevalecesse a ordem posta pelas leis de Deus e da Igreja, não existiria
verdadeira paz.
No dia seguinte, três
mensageiros chegaram a Canterbury da parte dos Arcebispos Roger, de York,
Gilbert, de Londres, e Jocelin, de Salisbury, os quais mandavam pedir a
revogação da excomunhão lançada sobre eles, por terem procedido à cerimônia de
coroação do filho do rei, contrariando proibição expressa do Arcebispo Primaz e
do próprio Vigário de Cristo. Thomas mandou responder-lhes que uma pena imposta
pelo Papa só por ele poderia ser abolida.
A resposta fez reacender
a cólera de Henrique II, já incomodado com a comovida recepção brindada pelo
povo a seu legítimo Prelado. A cada dia, acentuava-se na corte o clima de
inimizade contra o Arcebispo. Um biógrafo de Thomas Becket afirma que o rei,
arrebatado de fúria, excitava seus cortesãos com frases como esta: “Que coleção
de ociosos covardes tenho em meu reino, os quais permitem que um clérigo de
baixa extração zombe vergonhosamente de mim!”.6 Alguns deles, decidiram
ouvi-lo...
Na tarde de 29 de
dezembro, quatro cavaleiros se apresentaram em Canterbury como vindos “da parte
do rei” e foram recebidos pelo Arcebispo num salão contíguo à catedral. Um
deles interpelou o eclesiástico em termos agressivos, pela sua recusa em
absolver os clérigos e monges excomungados.
— A sentença não foi
minha, mas do Papa. Que os interessados se dirijam a ele para pedir o perdão —
respondeu Thomas.
— Digo-te o que o rei
disse: foste suficientemente louco para excomungar seus oficiais.
A estas palavras,
relativas aos anátemas lançados por São Thomas contra os barões que haviam se
apropriado das terras da Diocese, o Arcebispo levantou-se, replicando:
— Castigarei qualquer
um que viole os direitos da Sé Romana ou da Igreja de Cristo.
A vitória da verdade
Os cavaleiros,
furiosos, retiraram-se para pegar as armas, enquanto alguns monges e servidores
do destemido Prelado, vendo o grande perigo que ele corria, conseguiram a custo
levá-lo para a catedral.
Era a hora do cântico
das Vésperas e o templo estava cheio. Após o cortejo dos monges e do santo
Arcebispo, penetraram furiosos ali os cavaleiros armados e, com as espadas
desembainhadas, precipitaram-se sobre este último.
— Absolve os Bispos!
— gritou um deles.
Investiram então, de
espada em punho, contra o indefeso ministro de Deus. O primeiro golpe atingiu
os ombros de Thomas, e os seguintes feriram-lhe a cabeça. Seu cruciferário,
tentando desviar com o braço um dos golpes, recebeu uma forte lesão que lhe
rompeu até os ossos. “Estou disposto a morrer por meu Senhor. Que meu sangue
salve a liberdade da Igreja e a paz”7, exclamou o mártir, de joelhos. Um novo
golpe o prostrou morto por terra, com os braços estendidos, como se estivesse
rezando.
Estava tudo acabado?
Pelo contrário! A
força da verdade, que levara João Batista a triunfar sobre Herodes Antipas, uma
vez mais seria vitoriosa. O túmulo de Thomas Becket tornou-se centro de
peregrinação, e entre os inumeráveis devotos que acorreram à sua sepultura
encontrava-se o próprio Henrique II que, depois de ter pedido perdão ao Papa e
renunciado às Constituições de Clarendon, se dirigira a Canterbury para pedir
clemência ao santo mártir.
Invencível é o poder
da verdade. O erro e o mal encontram seu dinamismo na natureza humana decaída
pelo pecado, aliada ao demônio. A força da verdade, porém, está em algo
infinitamente superior: o próprio Deus. Ele jamais nega sua graça àqueles que
lutam por seu nome. Assim, por mais que a verdade sofra aparentes derrotas, no
fim é sempre vencedora, porque sua fonte é o Deus eterno e imortal.
1 KNOWLES,
David. Thomas Becket. Madrid: Rialp, 1980, p.148
2 Idem, p.151.
3 Idem, p.180.
4 Idem, p.184.
5 SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus. L.XIX, c.13.
6 KNOWLES,
op.cit., p.205.
7 AUBE,
Pierre. Thomas Becket. Madrid: Palabra, 1994, p.334.
Irmã Maria Teresa Ribeiro Matos, EP Revista Arautos do Evangelho
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