Filha de uma família
romana nobilíssima e fabulosamente rica, Santa Melânia vendeu judiciosamente
todos os seus bens, fez doações às igrejas, aos pobres, resgatou cativos e
construiu mosteiros. Tornou-se religiosa e praticou as virtudes de forma vigorosa,
autêntica, genuína, coerente, levando até as últimas consequências os
princípios que adotara.
Santa Melânia nasceu
em 383, filha de nobilíssima família senatorial romana. Aos 14 anos quis se
consagrar a Deus, mas seus pais fizeram-na casar com Valério Piniano, somente
três anos mais veIho que ela.
Possuidora de grande fortuna...
Com esse casamento,
reuniam-se dois ramos de uma das maiores famílias do Império, conservando-se
também o patrimônio mais rico existente na aristocracia romana.
Depois de ter dois filhos,
que morreram em tenra idade, os dois esposos decidiram adotar vida de castidade.
Resolveu, então, Melânia, desfazer-se de seus bens e se dedicar inteiramente à
ora cão e ao estudo dos livros santos.
Mas foram necessários
anos para que a Santa conseguisse doar sua fortuna, definida por um autor como
“mundial”. De fato, além de joias, pratarias e preciosidades artísticas,
Melânia possuía latifúndios na Itália, Sicília, Gália, Espanha, iffrica
Proconsulai Numídia, Mauritânia, Mesopotâmia, Síria, Palestina e Egito. Essa
fortuna era tão grande que um palácio em Roma ficou sem compradoi por não se
achar quem tivesse dinheiro para adquiri-lo. O próprio senado romano levantou
objeções ao que ele considerou esbanjamento. Mas a Santa persistiu em seu
intento, tendo-o levado a cabo após anos e anos de luta.
À medida que ia
vendendo seus bens, erguia mosteiros, protegia os pobres, fazia doações às
igrejas e resgatava prisioneiros. Ao mesmo tempo, esses negócios obrigavam a
Santa a viajar muito, sendo interessante notar que ela procurava fixar residência
em lugares onde o bispo era homem de vida santa e conhecedor das Escrituras.
Assim, teve contato com grandes santos de sua época, como Santo Agostinho.
Depois de ter
conseguido completar a “obra de Marta “, como chamava a preocupação com seus
bens terrenos, dedicou-se “à de Maria “, como sempre desejava. Retirou-se para
um mosteiro em Jerusalém. Vestiu-se com um saco de penitência, entregando-se à
oração, ao jejum e aos estudos das Escrituras. Escreveu muito, e tão bem, que
realizou notável trabalho de copista, dado seu grande conhecimento de latim e
grego. Incentivou a reza do Ofício Divino durante a noite e foi orientadora
espiritual de muitos mosteiros femininos.
Santa Melânia, que morreu
em 31 de dezembro de 439, teve sua vida minuciosamente relatada por seu filho
adotivo e discípulo espiritual. Considerada uma das grandes figuras de sua
época, mereceu grande elogio de São Jerônimo que a citava como exemplo para
suas dirigidas.1
... quis doá-la para praticar a pobreza
Essa resenha
biográfica sobre Santa Melânia só pode ser devidamente compreendida tomando-se
em consideração o modo pelo qual as riquezas estavam distribuídas, tanto no Império
Romano do Ocidente como no do Oriente.
De um modo geral, em tudo
quanto se publica a respeito dos povos pagãos, a historiografia oficial é cheia
de elogios aos romanos, aos gregos, à civilização egípcia, à Índia, à China, ao
Japão. Entretanto, não encontramos referências elogiosas, por exemplo, à classe
média indiana. Nem sobre o bem-estar dos trabalhadores manuais entre os
romanos. A maior parte dos habitantes da cidade de Roma, e do Império Romano,
era constituída de escravos. A lei, o senso jurídico dos romanos era fabuloso.
Contudo, a maior parte da população estava colocada à margem da lei...
No mundo pagão, vemos
se acumularem riquezas fabulosas sem qualquer proporção com a capacidade de
fruir — ou mesmo de se ornamentar — do homem. O luxo ordenado não é censurável.
Portanto, é compreensível que um potentado tenha grandes palácios. Mas que ele
possua tantos palácios que não tenha tempo para conhecê-los nem para deles usar,
tantas terras que não disponha de tempo para geri-las, evidentemente há uma desproporção
entre ele e esses bens. E existe, portanto, um fenômeno de má distribuição.
Entre os antigos romanos
encontramos homens tidos como possuidores de uma riqueza média, por exemplo, Cícero,
cujo inventário de bens era considerado como de uma fortuna mediana.
Entretanto, era um nababo. Ele mesmo reconhece, em cartas e outros documentos,
não saber no que consistia a maior parte de seu patrimônio. Santa Melânia era
herdeira de uma dessas famílias fabulosamente ricas, que tinham patrimônio por
todo o Império Romano do Ocidente. E ela, então, realiza uma dessas verdadeiras
belezas de sabedoria da Igreja, que é a seguinte: uma nobre que quer não só
reduzir a sua fortuna a proporções humanas, mas doá-la inteiramente para praticar
a pobreza.
Sabedoria para gerir os bens terrenos
E ela não está nas
condições de São Francisco de Assis, que simplesmente tirou a túnica, jogou-a
para o pai dele, Pietro di Bernardone, e disse: “Agora eu posso dizer: meu Pai que
estais no Céu...”; entregou-se ao bispo que lhe impôs um hábito, e estava liquidada
a questão. Deserdado pelo pai, ele só tinha uma túnica para dar, de maneira que
era um ato rápido de executar-se.
Santa Melânia, não;
ela possuía um patrimônio fabuloso, como vimos: preciosidades artísticas,
palácios, riquezas de toda ordem, terras, latifúndios etc. E não podia
dilapidar essa fortuna de um modo estúpido. Porque, por mais que quisesse ser
religiosa e, portanto, pobre, ela era responsável perante Deus por essa
fortuna. E, portanto, deveria vendê-la e aplicá-la ordenadamente. Só depois de
tudo vendido e bem aplicado, ela, em consciência, podia entrar para o convento.
Vemos, então, este fato
que nas histórias dos povos pagãos absolutamente não se encontra: uma grande dama,
de uma grande família, trabalhando para ser pobre. Mas, ao mesmo tempo, esse
ímpeto radical de uma pobreza completa se conjuga com a sabedoria de uma boa gestão
dos bens desta Terra, e a noção de que essa aplicação deve ser criteriosa.
De outro lado, vê-se
a perseverança do propósito dela. Um propósito mais débil, ao longo desses anos
e anos de despojamento, em certo momento teria se rompido: “Ah, não! Essa
pérola eu deixo para dar no fim, aquela outra joia vai ser a última coisa que
venderei; essa tal coisinha eu guardo para mim...”
Essa Santa não agiu
assim. Invencível e heroica, perseverou durante todos os anos, vendendo,
aplicando, vendendo, aplicando. E enfrentando — a ficha deixa entrever isto —
alguma dificuldade, porque a venda dos seus bens produziu um certo regurgitamento
no mercado, a tal ponto que um palácio dela valia tanto que não houve
comprador. Pois bem, ela acaba liquidando tudo e vai para o mosteiro.
Conversou com Santo Agostinho, foi elogiada por São Jerônimo
Então se manifesta outro
aspecto de sua alma. Depois desse despojamento, ela é constituída em dignidade
e se torna uma excelente superiora do mosteiro; passa a dirigir almas. E após
ter dirigido a destruição de seu patrimônio, ela constrói o patrimônio
espiritual de outras almas. Ela aconselha numerosos conventos, orienta toda uma
vasta família de almas, em vários lugares. E depois de anos e anos da prática
efetiva de uma pobreza completa, ela entrega sua alma a Deus.
Durante esse tempo,
dispersando tesouros que todos recolhem e recolhendo tesouros que muitos
dispersam. Ela não tem sede de posição social, de dinheiro, de conforto, mas
tem sede de almas. Quer ser pobre, sacrificar-se pelas almas dos outros para
dá-las a Nosso Senhor Jesus Cristo, por meio de Nossa Senhora.
Ademais, procurava o convívio
das pessoas virtuosas, indo morar — antes de ser religiosa — em dioceses onde havia
homens santos com quem eia pudesse se aconselhar. Teve, assim, a graça e o
privilégio extraordinários de conhecer Santo Agostinho e conversar com ele.
Uma virtude assim severa,
vigorosa, autêntica, genuína, coerente, igual a si mesma até os últimos
desdobramentos das últimas consequências dos princípios que aceitou, mereceria
bem o panegírico que teve. Ser louvada por um Santo é uma grande coisa, mas por
São Jerônimo é uma coisa grandíssima! Porque São Jerônimo tinha o gênio, o fogo
da descompostura. Para arrasar alguém com palavras candentes e merecidas, para
dizer-lhe verdades ao pé da letra, não havia como São Jerônimo. Até a Santo
Agostinho ele escreveu uma carta dizendo coisas duras, a tal ponto que Santo
Agostinho escreveu-lhe depois uma carta, gracejando, brincando, afirmando que
afinal não precisava tanto furor, que ele se convenceria com menos zanga, etc.
Não era uma intemperança de São Jerônimo, era o feitio do seu espírito, a apreciabilíssima
forma de santidade dele.
Coube-lhe ter como comentador
da vida dela São Jerônimo, o homem implacável, arguto, que via os defeitos até o
fim e que a julgou como um ouro perfeito, no qual não havia nenhuma liga e
nenhuma impureza. E ela morreu tendo esta glorificação suprema: foi a dama
elogiada por São Jerônimo! O Santo da apóstrofe vigorosa e inflexível, o Santo
da severidade completa, analisou-a e achou-a boa. Ela estava inteiramente
pronta para ser entregue a Deus.
Grandeza e verdadeira imortalidade dos Santos
O que devemos dizer,
em nossa época, a respeito da biografia de uma Santa como esta? Sem dúvida,
edifica muito, mas pede, de outro lado, um comentário.
Não podemos julgar
que ser uma grande dama, senhora de muitos bens, é contrário à santidade, e que
Santa Melânia deixou seu estado anterior por ser incompatível com a santidade.
Isto é falso.
Uma grande dama dotada
de grandes bens deve, isto sim, fazer grandes esmolas. Ela pode manter
largamente sua posição social e a dignidade de sua categoria gozando de todos
esses bens, mas doando, na medida do necessário, uma parte do supérfluo. Agindo
assim ela pode ser uma grande dama e santificar-se. Não devemos, portanto, nos
iludir com o alcance do gesto de Santa Melânia.
Esse gesto foi belo porque
constituiu a renúncia de uma situação terrena boa, agradável, na qual ela poderia
se santificar. Para se santificar, ela deveria ter o desapego necessário das
coisas da Terra, mas isto ela poderia conseguir mesmo no gozo de uma grande
fortuna.
Por causa disso houve
na História numerosas rainhas santas, numerosos reis santos, pessoas que, do
ponto de vista social, eram muito mais do que Santa Melânia e dispunham também
de grande quantidade de dinheiro.
Ela, entretanto, foi
chamada pela graça para outra forma de vida, e soube obedecer a esse chamado,
seguiu-o e santificou-se. E nisto ela andou perfeitamente bem, porque se deve
fazer a vontade de Deus. E para com ela a vontade de Deus foi muito generosa,
porque a chamou para o estado religioso, que é mais perfeito. Ela, então, se
santificou nesse estado com edificação para todos nós e até para a posteridade.
Esta é a glória de um Santo.
Certa vez, tendo Vitor
Hugo sido eleito para a Academia Francesa de Letras, alguém comentava que ele
se tinha tornado imortal, mas não era necessária a glorificação da Academia de
Letras, porque o nome dele já era imortal para todos os séculos. Vitor Hugo,
que conhecia Dom Bosco, disse: “Imortal é Dom Bosco, porque ele vai ser
canonizado. E muito tempo depois de que ninguém mais leia meus romances, e só
alguns eruditos conheçam meu nome, ainda a Igreja vai ter no mundo inteiro festas
litúrgicas em louvor de Dom Bosco. Não há senão uma verdadeira forma de imortalidade:
é a dos Santos da Igreja Católica.” Perfeitamente bem apanhado!
Há uns dez anos, li a
notícia de que os livros de Vitor Hugo, que restaram nos estoques das livrarias
por falta de leitores, eram vendidos em carrocinhas a peso, nas ruas de Paris.
Santa Melânia viveu
há quantos séculos! O que eram as nossas respectivas pátrias no tempo em que
Santa Melânia floresceu? Nunca se tinha ouvido falar dessas terras da América!
Ela morreu, seu corpo se desfez, não resta nem o pó, mas num lugar onde naquele
tempo talvez houvesse uma taba de índios, há gente de várias nações glorificando
o nome dela. Isto acontecerá assim indefinidamente. Tal é a grandeza e a
imortalidade dos Santos da Igreja Católica.
Plinio Correa de Oliveira – Extraído de
conferência de 15/2/19 72
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