Aquele foi um dia
memorável nos anais da Catedral de Barcelona. Uma multidão de fiéis aguardava
ansiosa, aglomerada nas naves, o início do ato litúrgico, pois a notícia de sua
realização correra como um estopim por toda a região. Ao bimbalhar festivo dos
sinos, o Bispo Dom Berengário de Palou deu início à celebração, na presença do
soberano Dom Jaime I e numerosos notáveis do reino. O povo cristão também viera
em peso presenciar o acontecimento que, dizia-se, tinha origem numa inspiração
celestial.
O sermão foi feito
pelo ilustre Raimundo de Peñafort, na época ainda pertencente ao clero secular.
Anunciou ele à assembleia ser vontade da Mãe de Deus a instituição de uma nova
Ordem em honra de suas misericórdias, conforme revelação feita por Ela mesma a
um filho seu muito dileto, chamado Pedro Nolasco. Então, na hora das oferendas,
o rei e o sacerdote apresentaram o novo Fundador ao Prelado, que o revestiu com
um branco hábito, idêntico ao que ostentava Nossa Senhora ao lhe aparecer.
Portando já a veste
religiosa, o santo Fundador a impôs, por sua vez, a 13 outros nobres e fidalgos
— seis sacerdotes e sete cavaleiros —, seus primeiros filhos espirituais. Estes
se dispuseram a professar os votos de pobreza, castidade e obediência, e ainda
um quarto voto...
Transcorrida com
unção e gravidade junto ao histórico altar de Santa Eulália, a cerimônia
estabeleceu no seio da Santa Igreja a Ordem Real, Militar e Religiosa de Nossa
Senhora das Mercês, para a redenção dos cativos. Era o dia 10 de agosto do ano
da graça de 1218.
Generosidade desde a infância
Este acontecimento
coroou os esforços com os quais o Santo vinha se dedicando por longos anos à
heroica empresa de resgatar os cristãos cativos de guerra. Era uma tarefa
árdua, audaciosa e crivada de dificuldades quase intransponíveis, mas abençoada
pela Santíssima Virgem, que ornou a alma de Pedro com todas as virtudes
necessárias para o cumprimento desta missão.
De nobre linhagem,
nascera ele entre os anos 1180 e 1182 na antiga região francesa do Languedoc,1
onde passou a infância na mansão senhorial de seus pais; ou, segundo outros
estudos recentes, nas imediações de Barcelona, no antigo povoado de San Martín
de Provensals, hoje incorporado à cidade.
Conta-se que o
pequenino Pedro amava a oração, o silêncio e o recolhimento, ocupando-se
satisfeito nestas práticas por horas seguidas, que para ele equivaliam ao mais
entretido dos passatempos. Havendo recebido esmerada educação e por ser de
índole generosa, era propenso a distribuir esmolas e sorrisos aos necessitados
que batiam à porta ou encontrava em seus passeios. Se nada tinha para dar,
irrompia em pranto até receber de algum adulto moedinhas para repartir.
Acontecia muitas
vezes de sair de casa bem agasalhado e voltar tiritando de frio, pois ao
encontrar meninos humildes de sua idade despojava-se das próprias vestes para
cobri-los. Eram indícios de sua vocação, pois “os Santos destinados por Deus
para serem exemplares em alguma grande virtude costumam demonstrá-la já na
infância, do mesmo modo como nas árvores a raiz promete a abundância das flores
e a doçura dos frutos”.2
Início da redenção dos cativos
Conforme crescia em
idade, Pedro avançava a passos largos na vida espiritual, sempre convicto de
ter sido chamado a viver só para Deus. Quando a mãe veio propor-lhe um
auspicioso casamento ele recusou de imediato, por ter já decidido consagrar sua
perfeita castidade a Maria Santíssima.
Com o falecimento dos
pais, Pedro Nolasco, ainda na juventude, herdou uma considerável fortuna, na
administração da qual mostrou-se bastante hábil, multiplicando os tesouros que
logo passariam a alimentar suas ousadas obras de caridade.
Entre as mil
atividades de assistência espiritual e material por ele empreendidas, uma o
atraía mais que todas: fazer tratativas para obter a liberdade dos presos
cristãos, à época em número elevado, nos reinos árabes da Península e do norte
da África. As palavras do Divino Mestre — “estava no cárcere, e fostes
visitar-Me” (Mt 25, 36) e “o Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Me
ungiu; e enviou-Me [...] para anunciar aos cativos a redenção” (Lc 4, 18-19) —
encontraram especial ressonância na alma de Pedro, que as considerava como
dirigidas a si.
Entre os cristãos
cativos contavam-se não apenas homens, mas também mulheres, crianças e idosos.
Viviam em regime de trabalhos forçados, privados dos Sacramentos, sujeitos a
constantes carências materiais e humilhantes padecimentos morais. Muitos
perdiam a fé e se rendiam ao desespero ou à corrupção dos costumes; outros,
todavia, tais como os antigos hebreus “que gemiam sob o peso da servidão,
clamaram, e, do fundo de sua escravidão, subiu o seu clamor até Deus” (Ex 2,
23).
Não terá sido a
vocação de São Pedro Nolasco uma resposta a estas súplicas? Com sobrenatural
coragem ele ouviu a voz da graça unida ao pranto dos infelizes e assumiu a
arriscada empresa de libertá-los, contando com a benevolência do Céu. Lançou
mão de seus bens, instrução, amizades na corte e ascendência sobre o rei para
canalizar forças e recursos em benefício dos presos.
Com surpreendente
habilidade começou a estabelecer tratativas junto aos potentados do reino de
Valência e levou a cabo, contando pouco mais de 20 anos de idade, aquela que
viria a ser sua primeira missão de exea — nome dado aos enviados a terras
estrangeiras para libertar cativos —, na qual libertou 300
cristãos mediante trabalhosas negociações e vultosos pagamentos.
Soube-se logo da
notícia em Barcelona, onde os resgatados foram recebidos com especiais
manifestações de regozijo. Os campos encheram-se de gente, a nobreza acompanhou
São Pedro Nolasco à frente do cortejo triunfal que, em meio a cânticos de ação
de graças, louvava a Deus que Se inclinara “para escutar os gemidos dos
cativos, para livrar da morte os condenados” (Sl 101, 21).
Vocação consolidada pela visão da oliveira
Embora tenha sido
alvissareira, esta primeira missão não passava de um tênue raio de luz em meio
às densas trevas da escravidão na qual jaziam
milhares de católicos, ou, segundo expressão de um biógrafo, “era tirar do mar
uma gota”.3
Reforçado em sua
disposição de seguir adiante, nosso Santo continuou a reunir esmolas em
Barcelona e partiu repetidas vezes para Valência, Múrcia, Maiorca, Argel e
Tunísia, com a finalidade de entabular negociações, o que supunha correr um não
pequeno risco de vida. Entretanto, Pedro Nolasco acabou por ganhar a simpatia
de muitos dos soberanos muçulmanos destes reinos. Ao cabo de algum tempo este
sentimento de tal modo se consolidou que, no juízo de muitos deles, Pedro
passou a ser uma figura digna de veneração.
Numa noite do ano de
1203, o Santo foi favorecido com uma visão profética que marcou para sempre a
sua vida. Encontrava-se ele absorto em oração, quando lhe foi mostrada uma
frondosa e verdejante oliveira, carregada de frutos maduros. Encantado com sua
beleza, permaneceu alguns instantes a contemplá-la,
enquanto descansava sob a ramagem.
De repente, viu
aproximarem-se alguns varões que lhe fizeram uma comunicação: Deus o incumbia
de cuidar daquela árvore, de guardá-la de todos os ataques. Retirando-se estes,
acercou-se um grupo de homens violentos e logo se precipitaram sobre ela com
fúria, no intuito de destruí-la. Pedro se interpôs e a defendeu valentemente,
impedindo-os de lhe fazerem qualquer dano. Seu ardor foi maior que a sanha dos inimigos,
os quais, por fim, se retiraram vencidos.
Após esta cena
mística, Pedro sentiu-se confirmado na missão de salvar os cativos, tendo por
certo que o impulso interior que o movia a empreender o resgate dos cristãos cativos
correspondia, de fato, à vontade de Deus. Pouco depois estabeleceu uma
confraria de modestas proporções, com a finalidade de angariar auxílio, e
prosseguiu resoluto em seus piedosos intentos, visando novas conquistas.
A visita da Senhora das Mercês
As iniciativas de
Deus, como a lâmpada do Evangelho, não são suscitadas para serem postas debaixo
do alqueire (cf. Mt 5, 15). Outras confrarias semelhantes tinham sido fundadas
pelos soberanos cristãos da Península, mas com resultados efêmeros, pois elas
logo feneciam após a morte dos doadores ou patronos.
No caso de São Pedro
Nolasco, havia ele articulado valorosos cavaleiros, membros da alta nobreza,
sacerdotes piedosos, doadores de todos os quadrantes; tudo isso, porém, corria
risco de se desagregar se ele viesse a falecer. Haveria um desígnio mais alto
sobre aquela obra redentora, premiada pela Providência com um chefe sem
precedentes? A resposta veio do Céu, pelos lábios de Maria.
Era a madrugada de 2
de agosto de 1218. Celebrara-se no dia anterior, de acordo com o calendário litúrgico
medieval, a festa da libertação do Príncipe dos Apóstolos do cárcere (cf. At 5,
17-19), chamada São Pedro das Cadeias. Nesta evocativa comemoração, a
Santíssima Virgem apareceu a São Pedro Nolasco, manifestando-Se com indizível bondade.
Vinha Ela pedir a
fundação de uma nova Ordem religiosa em honra de suas misericórdias — portanto,
de suas mercês —, que tivesse por principal objetivo a libertação dos escravos cristãos
e o louvor de sua imaculada pureza, simbolizada no branco hábito dos membros desta
Ordem. Ela própria o portava, em sinal de inteira união com aqueles que fossem
segui-La nas novas fileiras.
Tal revelação deu
ocasião, no dia 10 daquele mês, à solene cerimônia relatada no início destas
linhas. Por inspiração da própria Santíssima Virgem Maria, como se lê nos mais
antigos registros mercedários, o quarto voto que seus membros
deveriam professar era: “todos os frades desta Ordem, como filhos da verdadeira
obediência, estejam sempre alegremente dispostos a dar suas vidas, como Jesus
Cristo a deu por nós”.4 Deveriam, assim, se oferecer e ficar no lugar de algum
cativo, caso não obtivessem o dinheiro para o seu resgate.
“Ninguém tem maior
amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos” (Jo 15, 13). Magnífico
exemplo da compaixão cristã levada a um auge! É este um dos mais belos e
radicais atos de heroísmo que um homem pode fazer. Com efeito, “não se pode
imaginar caridade que vá mais longe em abnegação”. 5
O cativeiro do século XXI
A vida exemplar dos
religiosos e os bons resultados de sua ação missionária tornaram famosa a nova
Ordem. As naus de Colombo trouxeram, em sua segunda viagem, os padres
mercedários para o Novo Mundo, e com eles a devoção à Virgem das Mercês. Vários
países latino-americanos veneraram pela primeira vez a Mãe de Deus sob esta
invocação, cuja presença perdura até hoje em nossas igrejas e santuários.
São Pedro Nolasco
prosseguiu com bravura o cumprimento de sua missão, sem tréguas nem esmorecimentos,
até ser colhido pela morte no dia 6 de maio de 1256. Séculos mais tarde, o
célebre Bossuet, ao dirigir-se aos religiosos mercedários, reconhecia com estas
palavras a eficácia da caridade benfazeja do seu Fundador: “Se fosse visto
reluzir na Igreja esta caridade desinteressada, toda a Terra se converteria.
Pois o que
haveria de mais eficaz para levar a adorar um Deus que Se entregou por todos,
do que imitar seu exemplo?”.6
Passaram-se mais de
sete séculos desde a morte de São Pedro Nolasco e o cativeiro de guerra, tal
como ele o conheceu, não existe mais. Não obstante, permanece no século XXI — e
sempre existirá entre nós! — um cativeiro não menos grave e doloroso: o do
pecador que se torna escravo do pecado (cf. Jo 8, 34). E tanto no longínquo
século XIII quanto em nossos dias, ergue-se a soberana figura de Nossa Senhora
das Mercês para resgatar-nos, com seu maternal auxílio, das mãos desta mais
cruel das tiranias. Com maior amor ainda que os mercedários se propunham a dar
a vida pelos cativos, Ela, em sua liberalidade, está “disposta, a todo momento,
a nos dar coisas boas, a nos dar coisas excelentes, e a nos convidar a pedir estas
coisas e a amá-La, por Ela ser tão boa assim”.7
Que esta invocação,
tão cara a São Pedro Nolasco, abra nossa alma a um teor de relação muito filial
e muito confiante com Maria Santíssima, para que Ela nos livre dos liames do
pecado e da morte, obtendo-nos a graça para a prática da virtude, que é a
suprema liberdade dos verdadeiros filhos de Deus.
1 A cronologia
de São Pedro Nolasco é bastante controvertida. Seguimos neste artigo a de
Zuriaga Senent, que afirma: “As crônicas indicam que seu nascimento ocorreu no
último quarto do século XII. É comumente aceita a data de 1203 como o início do
trabalho de resgatador ou exea. Estas datas dão a Nolasco uma idade aproximada
de 40 anos no momento da fundação, em 1218; de 60 anos na conquista de
Valência, em 1238; de 70 na conquista de Sevilha, em 1248; e por volta de 80 no
momento de sua morte, que, segundo a tradição do século XVII, ocorreu em 1256”
(ZURIAGA SENENT, Vicente Francesc. La
imagen devocional en la Orden de Nuestra Señora de la Merced: tradición,
formación, continuidad y variantes. Valencia: Universitat de Valencia; Servei de Publicacions, 2005, p.287).
2 COLOMBO, O de M, Phelipe. Vida del glorioso
patriarca San Pedro Nolasco, fundador del Orden Real y Militar de María
Santísima de la Merced, ó misericordia, redempción de cautivos. Madrid: Antonio
Marín, 1769, p.22.
3 Idem, p.74.
4 ZURIAGA SENENT, op. cit., p.59.
5 DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja das Catedrais e das
Cruzadas. São Paulo: Quadrante, 1993, p.289.
6 BOSSUET,
Jacques-Bénigne. Panégyrique de Saint Pierre de Nolasque. In: Œuvres Complètes.
Paris: Louis Vivès, 1862, v.XII, p.103-104.
7 CORRÊA DE
OLIVEIRA, Plinio. Conferência. São Paulo, 24 set. 1965.
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