“O vento sopra onde
quer...” (Jo 3, 8). Em sua famosa conversa noturna com Nicodemos, usou Jesus
esta imagem para explicar àquele príncipe dos judeus como age o Espírito Santo
nas almas. Deus tem seus desígnios para cada homem e a todos outorga as graças
adequadas para alcançar a santidade, mas concede a alguns, além destas,
carismas destinados a auxiliar os demais a se aproximarem d’Ele. São as
chamadas graças gratis datæ — dadas gratuitamente —, por serem concedidas ao
homem “acima do poder de sua natureza e de seus méritos pessoais”.1
A respeito delas,
ensina o Apóstolo: “A cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito
comum. A um é dada pelo Espírito uma palavra de sabedoria; a outro, uma palavra
de ciência, por esse mesmo Espírito; a outro, a fé, pelo mesmo Espírito; a
outro, a graça de curar as doenças, no mesmo Espírito; a outro, o dom de
milagres; a outro, a profecia; a outro, o discernimento dos espíritos; a outro,
a variedade de línguas; a outro, por fim, a interpretação das línguas” (I Cor 12,
7-10).
No entanto, como o
Espírito “sopra onde quer”, há na História almas escolhidas que recebem não
apenas um, mas vários destes carismas para melhor guiar o povo de Deus em
épocas especialmente conturbadas. Um destes eleitos é o grande São Vicente Ferrer.
Sinais de uma eminente vocação
Não é raro Deus
anunciar com sinais sobrenaturais a chegada de uma alma de escol ao mundo. Tal
se passou com a família Ferrer. Faltando pouco para nosso Santo vir à luz, seu
progenitor, o notário valenciano Guillermo Ferrer, sonhou que assistia ao
sermão de um famoso dominicano, em meio ao qual este o felicitava, pois dentro
em breve seria pai de um filho notável em letras e em santidade, insigne
pregador, revestido também do hábito dominicano.
Todavia, os sonhos
não passam de sonhos... Para não dar margem a dúvidas, quis a Providência
manifestar-Se de modo mais palpável. A mãe, que já tivera outros filhos, se
sentia muito mais leve nesta gestação, porém, ouvia latidos vindos de seu
ventre. Preocupada, temendo tratar-se de um mau presságio, foi pedir conselho
ao Bispo de Valência, do qual ouviu o vaticínio de que o nascituro “seria como
um destacado mastim para guardar o rebanho do povo cristão, despertando-o, com
seus latidos, do sono dos pecados e afugentando os lobos infernais”.2
A 23 janeiro de 1350
nasceu o pequeno Vicente. Vivo e inteligente, não gostava das brincadeiras
comuns às outras crianças e as reunia em torno de si, para lhes fazer uma
“pregação” infantil. Aos 12 anos, já dominando a gramática e a lógica, iniciou
seus estudos de filosofia e teologia. Jovem modelar, frequentava muito a
igreja, era honesto, jejuava duas vezes por semana, fazia longas meditações
sobre a Paixão de Cristo, rezava o Ofício da Cruz e as Horas de Nossa Senhora,
e mostrava-se caritativo para com os pobres e os religiosos.
O “livro” que inspirava seus sermões
Vizinho do mosteiro
da Ordem Dominicana, não hesitou quando o pai o incentivou a nele ingressar.
Tomou o hábito a 5 de fevereiro de 1367 e professou no ano seguinte. Inimigo do
ócio, entregou-se aos estudos e à oração, na mais estrita observância à regra.
Ainda era diácono e já pregava tão bem que vinham pessoas de longe para
ouvi-lo. Ordenado sacerdote em 1374, alternava os estudos e a docência, entre
Barcelona, Toulouse e Lérida, por deliberação de seus superiores.
Aos 28 anos recebeu o
título de mestre em teologia. Conhecia de tal modo a Bíblia que a citava “com a
mesma facilidade como que o faria se a tivesse sempre diante dos olhos”.3
Dominava também a exegese dos Santos e as línguas latina e hebraica. De
regresso a Valência, destacava-se na Ordem como professor, escritor, pregador e
conselheiro. Entretanto, quando alguém lhe perguntou em que livro encontrava
tão belos pensamentos para seus sermões, limitou-se a apontar o Crucifixo.
“Maldito! Eu já te conheço”
O demônio fez de tudo
para dissuadi-lo da via de perfeição por ele abraçada. Em certa feita, por
exemplo, apresentou-se ele diante do Santo com a aparência de um venerável
ermitão, convidando-o a não ser tão radical na prática da virtude. “Tem por
certo”— dizia-lhe — “de que nenhum homem pode evitar cair uma ou outra vez em
algumas leviandades, cedo ou tarde. É melhor então que isto aconteça na idade
florida do que na velhice”. Frei Vicente enfrentou-lhe com o sinal da Cruz,
invocou o nome de Deus e de Nossa Senhora, e disse com grande coragem: “Vai
para onde mereces, maldito! Eu já te conheço. Não sabes que Deus está com seus
servos e os conduz pela mão para que não tropecem? A Ele consagro não apenas
minha velhice, como também minha juventude”.4 Ao ouvir isto, o demônio
desapareceu dando grandes urros.
Não obstante, dias
depois voltou à carga, revestido de uma horrível figura e prometendo armar--lhe
tantas ciladas que de nenhum modo poderia escapar do inferno. “Não te temo” —
contestou o Santo — “enquanto está comigo o meu Senhor Jesus Cristo”. O demônio
seguiu com sua carga: “Não estará Ele sempre contigo, pois não há nada mais
difícil do que perseverar na graça até a hora da morte; e quando Cristo te
deixar, então eu te farei conhecer as minhas forças”. Frei Vicente não se
intimidou: “Meu Senhor Deus que me deu a graça para começar, me dará para
perseverar em seu serviço”.5
Em outra ocasião,
pedia ele a graça de se manter na perfeita castidade até o fim da vida. De
repente, ouviu uma voz a dizer-lhe que em breve perderia a virgindade,
deixando-o muito triste e desconsolado. Mas logo se voltou para a Rainha do
Céu, pedindo que lhe mostrasse quem fora o mensageiro de tão más notícias.
“Apareceu subitamente Nossa Senhora com grande esplendor, dentro de sua cela, e
o consolou, avisando-lhe tratar-se de um dos assaltos do demônio, diante dos
quais ele não devia perder a confiança, pois Ela, que podia mais do que todas
as fúrias infernais, jamais o desampararia”.6
No Sacro Palácio de Avignon
Em 1378 eclodira o
Cisma do Ocidente. Falecido Gregório IX, em Roma, um conturbado conclave —
celebrado em meio a pressões e distúrbios nas ruas — elegeu como Papa Urbano
VI. Poucos meses depois, doze Cardeais reunidos em Agnani declararam inválida
esta eleição e escolheram para ocupar o Sólio Pontifício o Cardeal Roberto de
Genebra, que, tomando por nome Clemente VII, instalou sua corte em Avignon.
Qual era o Papa
legítimo e qual o antipapa? Hoje basta consultar qualquer bom manual de História
para sabê-lo. Na época, contudo, a situação distava muito de estar clara. Em
ambos os lados grassavam ambições e interesses políticos, embora florescessem
também a boa-fé e o fervor religioso verdadeiro. Santos, Bispos e monarcas
expunham fundadas razões que os levavam a apoiar Urbano VI ou o antipapa
Clemente. A Europa Cristã se dividia entre a obediência a Roma ou Avignon.
“É difícil avaliarmos
hoje a perturbação que tal anarquia causava nas almas”,7 comenta um
historiador. O Cisma repercutia na Cristandade inteira. “Em quantas Dioceses,
paróquias e mosteiros, não se via levantarem-se Bispo contra Bispo, pároco
contra pároco, abade contra abade! Ninguém podia estar seguro da sua Fé nem da
validade da sua obediência”.8
Morto Clemente em
1394, sucedeu-lhe no trono de Avignon o Cardeal Pedro de Luna, com o nome de
Bento XIII. Austero, piedoso e convencido de sua legitimidade, este antipapa
logo chamou Frei Vicente Ferrer para ser seu capelão e confessor, nomeando-o
também Mestre do Sacro Palácio e penitenciário da corte papal.
Frei Vicente, que
apoiava com sinceridade o direito de Bento XIII ao Sólio Pontifício, aceitou o
convite e transferiu-se para Avignon. Mas ao mesmo tempo que o problema do
Cisma se agravava, crescia também a amargura de Frei Vicente. Certas atitudes
do Papa Luna o decepcionaram profundamente. Ademais, o ver aumentar a divisão
entre aqueles que deveriam estar unidos em Cristo o levou a uma grave
enfermidade, que em três dias conduziu-o às portas da morte.
Em contínua oração,
pedia a Deus que tirasse daquela situação a Santa Igreja. Apareceu-lhe então o
Divino Redentor, acompanhado de Anjos, de São Domingos e São Francisco.
Revelou-lhe Ele que dentro de alguns anos terminaria o Cisma e que o havia
escolhido para a missão de pregar contra os vícios do tempo, conclamando o povo
à conversão: “Tem constância e não temas a ninguém, pois ainda que não te
faltarão adversários e muitos te invejarão, Eu serei sempre tua ajuda para que
possas vencer todos os obstáculos e percorrer grande parte da Europa, pregando
meu Evangelho; e, por fim, morras santamente nos confins da terra”. Tocou-lhe a
face com a mão, dizendo: “Levanta-te, meu Vicente!”,9 curando-o de imediato.
Missionário por mandato divino
Frei Vicente
levantou-se com a determinação de cumprir a missão recebida, propugnando a integridade
do Evangelho e a unidade da Igreja. Apesar da relutância de Bento XIII, partiu
de Avignon a 22 novembro de 1399 para, com o beneplácito de seus superiores,
ser missionário, em obediência ao mandato divino.
Percorria a pé
veredas e estradas. Apenas quando se enfermou de uma perna passou a utilizar-se
de um burrinho em suas andanças. Pregou em vários países: Espanha, Portugal,
França, Suíça, Alemanha, Itália e Inglaterra.
Uma profunda vida
interior alimentava suas pregações, que versavam sobre os Novíssimos, sobretudo
o Juízo Final. Invectivava a mentira, o perjúrio, a blasfêmia, a calúnia, a
usura, a simonia, o adultério, e tantos outros vícios daquela sociedade
dissoluta. Seu lema era “Temei a Deus, e dai-lhe glória, porque é chegada a
hora do seu julgamento” (Ap 14, 7), porque o temor reverencial a Deus não é
senão outro nome do amor.
Verdadeiras multidões
— doutos, incultos, nobres, plebeus, leigos ou religiosos — se comprimiam para
ouvir suas prédicas, não tardando a se fazer sentir seus frutos: ladrões
devolviam o que haviam roubado; inimigos se reconciliavam; homicidas e
salteadores se emendavam; ovelhas desgarradas retornavam à Santa Igreja, e não
poucas pessoas abandonavam o mundo e se consagravam a Deus. Levava consigo um
séquito de confessores de várias nações para atender os penitentes. Ele mesmo
costumava confessar-se antes da celebração da Missa solene, na qual pregava.
Numa época em que
muitos pregadores procuravam brilhar nos sermões com argumentações acadêmicas
ou composições retóricas vazias que não moviam os fiéis, a palavra de São
Vicente era, pelo contrário, “como um látego de fogo que abrasava e
iluminava”.10 Fogo da caridade que “sacudia as consciências meio adormecidas, e
por isso ele era, por excelência, o Santo oposto à tibieza”.11
Pregava nas praças e
em campo aberto, pois as igrejas eram pequenas para conter os milhares de
assistentes. Falava com voz possante e sonora, rica em matizes que faziam
sentir a força da presença de Deus e sua graça. Perscrutava com olhar
penetrante os ouvintes, valia-se de sua portentosa imaginação para melhor
atrair a atenção, desdobrava seus raciocínios com conceitos claros e precisos.
Tudo isso favorecido por um prodigioso conhecimento das Sagradas Escrituras,
cujos ensinamentos ele aplicava aos fatos concretos e às circunstâncias reais
de seu tempo.
Carismas especiais
Palavra de sabedoria
e de ciência, carismas de milagres, curas, profecia, discernimento dos espíritos,
glossolalia, exorcismo... Impossível enumerar todos os fatos de sua vida que
ilustram cada um destes carismas!
Numa época em que nem
se podia sonhar com os nossos modernos microfones, Frei Vicente usava sua
potente voz para se fazer ouvir de longe. Mas seus biógrafos registram, a este
propósito, casos inexplicáveis naturalmente. Destes, um dos mais eloquentes é o
de um monge do Mosteiro dos Bernardos que, estando a oito léguas — mais de 45
km — do local onde falava o Santo, ouviu e anotou um de seus sermões.
Após cada pregação
curava os enfermos, abençoando-os e pronunciando estas palavras: “Estes sinais
acompanharão os que crerem: imporão as mãos aos enfermos e eles ficarão
curados. Jesus Cristo, Filho de Maria, saúde e Senhor do mundo, assim como te
trouxe a Fé Católica, nela também te conserve e te torne bem-aventurado, e
queira livrar-te desta enfermidade”.12
Tal como os Apóstolos
no dia de Pentecostes, falava sempre em sua própria língua — o idioma
valenciano — e todos o entendiam perfeitamente, em qualquer país ou reino onde
pregasse, bem como exorcizava o demônio à sua passagem. Certo dia, lançaram-se
sobre a multidão dos fiéis três cavalos expelindo fumaça pelas narinas, movidos
por demônios furiosos, que viam aquelas almas escaparem de suas garras. Foram
eles escorraçados pela força da autoridade de São Vicente.
Previa o futuro
próximo ou remoto. Um dos episódios mais famosos é o de um valenciano que lhe
pediu para abençoar seu sobrinho, Alonso de Borja, ainda criança. Disse-lhe
Frei Vicente: “Mandai para a escola este menino, porque virá a ser Papa e me
honrará muito”. Alguns anos depois, o jovem Alonso foi cumprimentá-lo e ouviu
esta profecia: “Alegro-me, filho, por teu bem. Serás Sumo Pontífice e me
canonizarás no devido tempo”.13 De fato, anos mais tarde, ele foi ordenado
Bispo de Valência, veio a ser o Papa Calisto III e teve o privilégio de
canonizar o Santo...
“Nunc dimittis servum tuum, Domine”
Obediente ao encargo
recebido, não deixou de pregar até mesmo quando estava já idoso, cansado e com
achaques. Precisava ser ajudado a subir nos estrados, mas parecia recuperar as
energias quando começava a falar.
Por fim, a tão
almejada unidade da Igreja se deu no Concílio de Constança, no qual a
influência de São Vicente muito contribuiu para o fim do Cisma. Ali se realizou
o conclave que elegeu o Papa Martinho V, em 11 de novembro de 1417, a cuja
obediência se submeteu toda a Cristandade. Dir-se-ia que o Santo fez seu o
Cântico de Simeão — “Nunc dimittis servum tuum, Domine” (Lc 2, 29) —, pois,
decorridos apenas dois anos, morreu em Vannes, na Bretanha, a 5 de abril de
1419, tal como predissera Jesus.
Trinta e seis anos
depois, o já mencionado Calisto III o elevou à honra dos altares. Havendo
cumprido sua missão com denodo e galhardia, é uma glória para a Espanha, para a
Ordem dos Pregadores e para Igreja, pois “exceção feita dos Apóstolos,
provavelmente ninguém excedeu São Vicente Ferrer como pregador”.14
1 SÃO TOMÁS DE
AQUINO. Suma Teológica. I-II, q.111, a.1.
2 ANTIST, OP, Vicente
Justiniano. Vida y historia del apostólico predicador Sant Vicente Ferrer. In:
SÃO VICENTE FERRER. Biografía y Escritos. Madrid: BAC, 1956, p.99.
3 Idem, p.104-105.
4 Idem, p.108.
5 Idem, p.109.
6 Idem, ibidem.
7 DANIEL-ROPS, Henri.
A Igreja da Renascença e da Reforma - I. A reforma protestante. São Paulo:
Quadrante:1996, p.35.
8 Idem, ibidem.
9 ANTIST, op. cit.,
p.116.
10 MILAGRO, OP, José María. San Vicente Ferrer. In:
ECHEVERRÍA, Lamberto de; LLORCA, SJ, Bernardino; REPETTO BETES, José Luis
(Org.). Año Cristiano. Madrid: BAC, 2003, v.IV, p.96.
11 CORRÊA DE
OLIVEIRA, Plinio. Conferência. São Paulo, 4 abr. 1966.
12 ANTIST, op. cit.,
p.121.
13 Idem, p.137.
14 CORRÊA DE
OLIVEIRA, Plinio. Como um profeta do Antigo Testamento. In: Dr. Plinio. Ano
XVI. N.181 (Abr., 2013); p.2.
Revista Arautos do Evangelho - abril 2014
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