Dia 21 de abril
comemora-se a festa de Santo Anselmo de Cantuária, bispo, confessor e Doutor da
Igreja, cuja biografia apresenta os seguintes traços 1:
Mansidão do cordeiro e vigor do leão
Anselmo nasceu em Aosta,
no Piemonte, de familia nobre. Como o pai o afastasse da vida religiosa,
entregou-se aos prazeres durante alguns anos. Mas aos 26 anos entrou na abadia
de Bec, na Normandia, onde se entregou à pratica das virtudes religiosas e ao
estudo das Escrituras. Aos 30 anos, tomou-se prior e em seguida abade.
Governou sua abadia
com uma bondade incansável que lhe permitiu triunfar de todas as dificuldades.
Os Papas Gregório VII e Urbano II manifestaram-lhe grande estima. “O bom odor
de vossas virtudes chegou até nós”, escrevia-lhe Gregório, e Urbano II diz: “Vinde
cá o mais depressa possível a fim de podermos gozar juntos da afeição que nos
une.”
Chamado à Inglaterra em
1092, não pôde voltar à França, pois foi nomeado Arcebispo de Cantuária. Nesse
cargo muito sofreu do Rei Guilherme o Ruivo pela defesa dos direitos e
liberdade da Igreja. Exilado, foi a Roma, onde o Papa o cumulou de honras e lhe
deu ocasião, no Concilio de Bari, de convencer do seu erro os gregos que
negavam que o Espírito Santo procedesse do Filho como do Pai.
Voltando à Inglaterra
após a morte de Guilherme, Santo Anselmo morreu a 21 de abril de 1109. Clemente
XI, em 1720, o declarou Doutor da Igreja.
Monge, bispo, Doutor
Anselmo reuniu em sua pessoa os grandes apanágios do cristão privilegiado. E se
a auréola do martírio não veio completar tanta glória, pode-se dizer que a
palma faltou a Anselmo, mas que ele não faltou à sua palma. Sua vida foi toda
entregue às lutas pela liberdade da Igreja. Nele o cordeiro revestiu-se do
vigor do leão.
“Cristo, dizia, não
quer uma escrava para esposa. Nada Ele ama tanto no mundo quanto a liberdade de
sua Igreja.” O nome de Anselmo lembra a mansidão do homem do claustro unida à
firmeza episcopal, a ciência junto com a piedade. Nenhuma memória foi mais
suave e, ao mesmo tempo, mais brilhante do que a sua.
Notem as lutas que esse
santo precisou enfrentar em plena Idade Média. Ele parece não ter tido — ao menos
segundo esses traços biográficos — especiais lutas em seu convento. Mas ele
teve dois grandes inimigos a vencer: um rei prepotente que queria sujeitar a
Igreja à sua autoridade; e os cismáticos gregos que, reunidos no Concílio de
Bari com os católicos, ele conseguiu persuadir, mas de maneira efêmera, de que
a doutrina católica era verdadeira.
Ele ao mesmo tempo
foi um homem que viajou muito. Era italiano, depois foi para a Normandia,
Inglaterra, Bari, Roma. E numa época em que essas viagens representavam
empreender um enorme esforço. Eram feitas em estradas péssimas, com riscos de
toda ordem, muita dificuldade, lentidão, etc.
Um homem favorecido
por Nosso Senhor por especiais graças, e que levou a bom termo tudo aquilo de
que foi incumbido: como abade foi muitíssimo estimado; Arcebispo de Cantuária,
ele empreendeu uma luta rigo rosa contra o rei e acabou sendo
reintegrado na sua sede episcopal; lutando contra os cismáticos, conseguiu
persuadi-los de seus erros. Depois, extinguiu-se na alegria e no amor de todos
pela vida que tinha levado, porque a morte dos santos é muito mais uma alegria
do que uma fonte de tristeza.
Vemos, entretanto,
qual a natureza da verdadeira grandeza da Idade Média: esse homem marca o século
XI pela sua ciência, sua piedade, pelas suas lutas, e leva a Causa Católica à
vitória.
Então, considerando a
vida dele, tem-se a impressão de uma fortaleza formidável, de um homem que
encheu o seu tempo, venceu, e cuja glória perdura por todos os séculos por
causa das vitórias que ele obteve em favor da Fé. Quando se olha isso, fica-se
com a sensação da solidez, da força, da grandeza de toda a Idade Média, que
contrasta com a pequenez, o efêmero, a índole de “matéria plástica” de todas as
coisas de nossos dias. E essa impressão não é falsa; é verdadeira porque nos
mostra a solidez da estatura dos grandes homens que marcaram a Idade Média.
Precisamos lutar sempre, com os olhos postos em Nossa Senhora
Mas de fato ele teve
muitas lutas. E se não tivesse havido campeões como ele, a Igreja teria
perecido. Na Idade Média havia uma batalha contínua; a solidez não consistia em
não haver luta, mas em que a boa reação vencia sempre e era, portanto, nesse
sentido, sólida. Entretanto, por um pouco que os homens fraquejassem, a coisa
poderia cair.
Podemos vislumbrar, de
antemão, qual vai ser a solidez e a precariedade do Reino de Maria. A solidez
será enorme enquanto houver homens de uma grande firmeza, dispostos a lutar em todos
os sentidos. Então, o Reino de Maria poderá durar séculos e séculos.
Se encontrar homens
fracos, ele soçobrará imediatamente, porque o reino do demônio se tornará
forte, pois estamos numa humanidade marcada pelo pecado original e num mundo
imerso na presença dos tais demônios dos ares de que falava São Paulo2.
Portanto, é preciso
estar lutando sempre, com uma energia inquebrantável, uma atividade contínua,
um desprendimento de si inteiro, tendo os olhos postos completamente em Nossa
Senhora, para que a luta seja levada a bom termo. Mas
encontrando autênticos lutadores, verdadeiramente dependentes da Santíssima Virgem,
a causa é solidíssima, ela vence mesmo. A questão é haver quem lute por Ela.
Peçamos a Nossa Senhora
que nos dê forças e nos compenetre da verdade, para entendermos bem o seguinte:
agora, como durante o Reino de Maria, a nossa vida deve ser de luta constante,
e no dia em que não tivermos lutado precisamos nos compenetrar de que não
carregamos a Cruz de Cristo, e que esse foi um dia frustrado em nossa
existência.
Não lutar é não
sofrer; não sofrer é não carregar a Cruz de Cristo. Para um católico, um dia
passado longe da Cruz de Cristo, longe de Maria Santíssima, é um dia cancelado,
um dia em branco.
Ordenado arcebispo, apesar de seus protestos
Temos agora uma nota sobre
a sagração de Santo Anselmo, extraída da “Vida dos Santos”, do Padre
Rohrbacher3.
Decidiram os bispos
ingleses sagrar Santo Anselmo Arcebispo de Cantuária, mas ele recusou
terminantemente porque sabia da intromissão real neste cargo.
Mostraram-lhe os prelados
as consequências de sua negativa para a Inglaterra. Replicou o Santo que
conhecia tais problemas, mas que era velho, mal conseguindo carregar a si
próprio; como poderia levar o fardo de toda uma Igreja? Por outro lado, não era
de sua índole cuidar de negócios temporais.
“Conduzi-vos somente
nos caminhos de Deus, nós nos encarregamos dos negócios temporais”, replicaram
os prelados.
Alegou Anselmo suas múltiplas
obrigações e a impossibilidade de abandoná-las. Resistindo ainda, levaram-no ao
soberano que se encontrava gravemente enfermo.
O rei aflito
disse-lhe: “Anselmo, que fazes? Por que me envias ao Inferno? Lembra-te da
amizade que meus pais tinham por ti e não me deixes perecer porque sei que
estou condenado a morrer conservando este Arcebispado.” Todos os assistentes,
comovidos, insistiam com Santo Anselmo acusando-o de matar o rei.
O Santo voltou-se para
os dois monges que o acompanhavam e disse: “Meus irmãos, por que não me socorreis?”
Um deles respondeu:
“Se esta é a vontade de Deus.quem somos nós para resistir-Lhe?”
“Ai! — disse Anselmo
— Vós vos rendestes mui prontamente.”
Vendo-o assim obstinado,
acusaram-no de covardia. Buscaram uma cruz, tomaram-lhe o braço direito e o
aproximaram do leito. O rei lhe apresentou a cruz, mas ele fechou a mão. Os
bispos empenharam-se em abri-la até fazê-lo gritar. Por fim seguram-lhe a mão
com a cruz dizendo: “Viva o bispo!”; e entoaram o “Te Deum”. Levaram-no à igreja
vizinha e, sob seus protestos, sagraram-no.
Fato estranho e
magnífico ao mesmo tempo!
Maus reis queriam eliminar a liberdade da Igreja
Para compreender um
pouquinho o conjunto dos acontecimentos, é preciso tomar em consideração o
seguinte: Cantuária é a mais antiga diocese, portanto a sede primacial, da
Inglaterra. E naquele tempo, mais do que hoje, os arcebispos e os primazes
tinham certa jurisdição, certa influência sobre os bispos de seu país.
Estava-se num período
de comunicações com Roma, devido à distância, muito difíceis, e não havia um
corpo de núncios apostólicos inteiramente organizado. De maneira que se fazia
sentir, mais do que hoje em dia, a necessidade dos bispos de um determinado
país se apoiarem sobre um que fosse a pedra de ângulo de todos, e este era o
Arcebispo de Cantuária.
Esse arcebispo tinha
muita importância; por outro lado, estava-se num período em que a Revolução —
em sua forma absolutamente ancestral e original; nem se pode ainda falar de
Revolução —, ou melhor, os germes dos quais futuramente a Revolução nasceria,
se exprimiam sob a forma de um desejo do poder temporal. Quer dizer, dos chefes
de Estado, em concreto dos reis, de se apoderarem da liberdade, dos atributos
da Igreja, transformando-a num instrumento de dominação material.
Os soberanos não
queriam, por exemplo, que os bispos os censurassem, porque havia naquele tempo
muitos bispos que repreendiam os reis e os poderosos. Eles queriam se
assenhorear dos bens com que a Igreja socorria inúmeros pobres e mantinha o
esplendor do culto divino.
O medo do Inferno leva muitas pessoas para o Céu
Por outro lado, os
bispos eram muitas vezes senhores feudais e constituíam um elemento de
imparcialidade dentro do jogo da vida feudal. Certos reis, movidos por mau
espírito, queriam se assenhorear dos feudos eclesiásticos para, por esta forma,
combater os outros senhores feudais.
E isto tudo fazia com
que os reis tivessem uma preocupação constante de nomear, para os cargos
importantes, bispos que fossem seus instrumentos.
Então, Santo Anselmo,
monge já idoso, com inúmeros serviços prestados š Igreja, era desejado
ardentemente pelo rei e pelos bispos para ser Arcebispo de Cantuária.
Pelos bispos porque
era um líder natural para defendê-los contra orei. Pelo rei, porque este já
tinha tido dificuldades com a Igreja, mas estava doente e temia morrer. E ele achava
que ia para o Inferno se, antes de falecer, não evitasse para a Igreja a
catástrofe de uma má nomeação; por isso ele queria nomear um bom arcebispo para
Cantuária.
Quer dizer, o rei estava
com a espada da ameaça do Inferno colocada no peito, e nós sabemos que o medo do
Inferno tem levado muita gente para o Céu. Para a grande maioria dos homens,
poucas coisas fecham tanto a porta, do Inferno quanto o medo de ir para lá.
Então todos queriam
que Santo Anselmo ficasse Arcebispo de Cantuária.
Uma violência tipicamente medievaI
Aí se dá a cena muito
curiosa. Os bispos pedem, ele recusa dando um argumento que está à altura de um
Santo. Não é um argumento baseado em falsa modéstia, mas é uma coisa verdadeira.
Sendo um homem velho, que mal se carrega a si próprio, exausto por anteriores serviços
à Igreja, é natural que ele tenha receio de não conseguir desempenhar
satjsfatorjamente um cargo tão pesado; e, portanto, procure tirar o corpo.
Tanto mais que ele devia
conhecer bem o rei e sua entourage, e o Santo poderia conjecturar que o rei,
tendo já criado encrenca com a Igreja, criaria outra, caso ficasse curado como
diz o ditado: cesteiro que faz um cesto, faz um cento.
Os sucessores do monarca,
que faziam parte daquela entourage do palácio, tinham a mesma mentalidade. Santo
Anselmo teria que travar uma luta, portanto, contra o poder temporal, coisa muito
mais difícil do que qualquer outra batalha. E ele naturalmente temia por sua
própria fraqueza; achava que um homem moço estaria mais em condições de
conduzir essa luta.
Mas tal era a força
da virtude dele, a confiança que tinham no auxílio que a graça lhe prestaria,
que todos queriam que ele ficasse arcebispo.
Então se dá esta cena:
Os bispos, não conseguindo nada, levam Santo Anselmo ao quarto onde o rei
estava doente. Depois de muita insistência, acaba havendo uma espécie de
violência bem medieval.
Pegam uma cruz e dizem
ao rei: “Põe na mão dele!” O Santo declara: “Não, não quero!”
Com força, abrem a mão
dele, a ponto de doer; ele segura a cruz e levam-no, então, para ser sagrado.
Por meio dessa
violência material, que talvez tivesse tido um caráter afetuoso e feita no meio
de sorrisos a crônica é muda a respeito deste particular —, o que houve foi
isto. Mas o fato é tão estranho que não é de se repelir como absurda a hipótese
deste ter sido feito no meio de sorrisos.
Houve um momento em
que Santo Anselmo, pelo extremo desejo dos outros, que chegou até à violência,
resolveu ceder. Ceder não mais coagido fisicamente, mas moralmente persuadido
de que ele não deveria resistir a um anseio tão unânime.
E, então, ele mesmo
aceitou a sagração, a qual não aceitaria se estivesse convencido de que outra
era a vontade de Deus. Ele teria certamente — sendo um Santo — morrido mártir,
mas não se deixaria sagrar, se tal fosse a vontade do Altíssimo. Seria o
primeiro caso de martírio de um padre que se faz matar para não ser bispo.
Uma vez que Santo Anselmo
está no Céu, devemos estar persuadidos de que ele de fato quis, em determinado momento
e por esta forma, ele foi Arcebispo de Cantuária.
Devemos ser insistentes em nossas orações
Podíamos nos
perguntar se essa violência feita na pessoa dele é censurável. Às vezes a
graça, na sua sabedoria e imensa liberdade de movimentos, se serve de meios muito
estranhos. Meios imorais ou ilegítimos jamais. Meios surpreendentes e
desconcertantes, bem possivelmente.
Quem sabe se a graça quis
que a insistência chegasse até esse ponto para mostrar o desapego deste homem,
e depois lhe dar mais liberdade de lutar contra o rei, mostrando que ele tinha
sido forçado a aceitar o cargo?
De qualquer forma,
lembramo-nos das palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo no Evangelho: “O Reino
dos Céus padece violência”4. É preciso fazer violência para se entrar no Céu.
As vezes é necessário
fazer até uma santa violência com Deus, O próprio Redentor contou aquela
parábola admirável de um homem que está deitado na cama junto com seus filhos,
e um indivíduo cacete bate do lado de fora pedindo pão.
O dono da casa
explica que já está deitado e não pode atender. Afinal, o outro é tão cacete
que o primeiro se levanta, abre a porta e lhe dá os pães.
E Nosso Senhor afirma
que o dono da casa atendeu por causa da importunidade do outro; e acrescenta
que isto é o modelo daquele que reza.
Quer dizer, quando
não temos méritos, devemos ser muito insistentes. Porque à força de
insistência, como que caceteamos a Deus Nosso Senhor e obtemos aquilo que nós
queremos.
No caso ocorrido com
Santo Anselmo, houve qualquer coisa de parecido com isso, e vemos as vias
superiores de Deus, insondáveis, nem sempre inteiramente explicáveis e que
formam uma das belezas da História da Igreja.
Mistérios de Deus e da vida da Igreja
Se na História da Igreja
tudo fosse explicavelzinho, clarinho, limpinho, não seria a História da Igreja
de Deus. Faltaria a ela uma das notas daquilo que é verdadeiramente divino.
Naquilo que é autenticamente
divino precisaria haver mistério. E vou dizer mais, quanto mais claro que determinada
coisa é divina, tanto mais convém que nela haja mistérios. Porque a presença do
mistério é uma marca de superioridade divina, que impõe respeito aos homens.
Aqui também, são os
mistérios da vida da Igreja, os fatos misteriosos por onde Deus mostra a sua
divina grandeza. Depois as coisas se explicam.
Com certeza, para
alguns contemporâneos de Nosso Senhor, a Paixão há de ter parecido um mistério
inexplicável, e foi preciso a Ressurreição para que se compreendesse esse
mistério.
Atualmente, nós estamos
em presença do maior mistério dentro de vinte séculos de vida da Igreja.
Creiamos na divindade dela e amemos a Santa Igreja Católica mais do que
nunca... eu jamais diria apesar do mistério, mas sim por causa deste mistério.
Só uma Igreja santa e
divina pode ter uma fortaleza, uma grandeza tal que nela caiba um mistério tão
profundo, tão tenebroso. É preciso ser uma Igreja divina para não morrer deste
mistério, para atravessar a era de mistério e, do outro lado, se mostrar
gloriosa e resplandecente como se tivesse ressuscitado.
Nós, desse pequeno fato
misterioso da vida de Santo Anselmo, devemos voar para regiões muito mais altas
dos grandes mistérios da Igreja Católica. E então façamos hoje à noite, a Nossa
Senhora, um ato de amor pelo mistério tremendo diante do qual nós vivemos,
certos de que os grandes mistérios têm depois as suas grandes explicações.
Nunca um homem se
defrontou com um mistério tão terrível quanto São José, mas depois, que
explicação, que esclarecimento! E a explicação das explicações.
(Extraído de
conferências de 20/4/1966 e 20/4/1967)
1) Não dispomos dos
dados bibliográficos da obra citada por Dr. Plinio.
2) Cf. Ef 6, 12.
3) Cf. ROHRBACHER,
René François. Vies des
Saints pour tous les jours de l’année. Volume
II. Paris: Gaume frères, libraires-éditeurs,
1853. p. 401-410.
4) Mt 11, 12.
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