Por volta do ano 61 da Era Cristã, encontrava-se preso em Roma o
Apóstolo das Gentes. Tinha o corpo agrilhoado, mas a alma livre, e não cessava
de evangelizar. Neste período de cárcere, ele escreveu pelo menos quatro de
suas epístolas: Efésios, Filipenses, Colossenses e Filêmon.
Essas duas últimas foram levadas por Tíquico à cidade de
Colossos, situada a cerca de 20 km de Laodiceia, na Ásia Menor (atual Turquia).
Além da carta endereçada para toda a comunidade, seguia uma curta mensagem para
um cristão particularmente amado pelo Apóstolo: Filêmon.
Ao se dirigir a Colossos, Tíquico não estava só. Como
escreveu o Apóstolo: “Ele vai juntamente com Onésimo, nosso caríssimo e fiel
irmão, conterrâneo vosso. Ambos vos informarão de tudo o que aqui se passa”
(Col 4, 9).
Filho espiritual do Apóstolo
Escravo fugitivo da casa
de Filêmon, Onésimo havia buscado refúgio junto a São Paulo, em Roma. Ao invés
de ter procurado asilo religioso em algum templo pagão, como acontecia à época,
ele preferiu fugir na direção correta e encontrou amparo no coração do
Apóstolo.
Tendo sido batizado por São Paulo na prisão, tornou-se
filho espiritual dele ao mesmo tempo que era elevado à dignidade de filho de
Deus. Antes escravo do mundo e de Filêmon, agora Onésimo servia o Apóstolo
como se estivesse servindo ao próprio Cristo.
Lembrando a situação de muitos escravos dessa época pagã,
São João Crisóstomo escreve: “Quantos senhores jazem embriagados no leito,
enquanto os escravos se apresentam com sobriedade! A quem chamarei escravo? Ao
sóbrio ou ao ébrio? Ao escravo do homem ou ao escravizado pelos vícios?”.1 Sem
dúvida, a escravidão às paixões e ao pecado é a pior que há.
No entanto, Filêmon não era um ébrio e muito menos um
pagão. Pelo contrário, o próprio São Paulo o qualificou de “nosso muito amado
colaborador” (Fm 1, 1). Em grego, o nome Filêmon significa amado; neste caso,
amado por Deus e pelo Apóstolo, o qual lhe faz outro elogio na mencionada
carta: “Tua caridade me trouxe grande alegria e conforto, porque os corações
dos santos encontraram alívio por teu intermédio, irmão” (Fm 1, 7).
À vista desses elogios, pode-se concluir que Filêmon não
era um mau amo. Acrescente-se em favor dele que a Santa Igreja o inscreveu no
catálogo dos Santos. O Martirológio Romano o inclui no dia 22 de novembro,
juntamente com sua esposa Santa Ápia, e no dia 20 de março encontramos o filho
deles: Santo Arquipo. Mãe e filho também são mencionados na carta do Apóstolo:
“a Ápia, nossa irmã, a Arquipo, nosso companheiro de armas, e à igreja que se
reúne em tua casa” (Fm 1, 2).
Talvez Onésimo tenha sido, então, pouco diligente no seu
trabalho.
Súplica enquanto ancião e prisioneiro
“Eu, Paulo, idoso como estou, e agora preso por Jesus
Cristo, venho suplicar-te em favor deste filho meu, que gerei na prisão,
Onésimo” (Fm 1, 9-10). Um belo aspecto desta carta, a menor das escritas por
São Paulo, são as duas razões por ele alegadas junto a Filêmon para obter o que
lhe solicitava: ser ancião e prisioneiro.
Se nessa ocasião intercede por um escravo, é porque ele
pró- prio já se tinha feito voluntariamente escravo muito tempo antes, no
momento de sua conversão. A entrega total a Cristo era o motivo da perseguição
promovida pelo mundo contra Paulo.
Mas até a condição de servo se tornou motivo de glória
para o Apóstolo, conforme cantou Santo Ambrósio: “Quantos senhores tem aquele
que fugiu do único Senhor! Nós, porém, não fujamos d’Ele. Quem fugirá desse
Senhor ao qual seguem atados com correntes, mas correntes voluntárias que
libertam, não atam, correntes dos prisioneiros que se gloriam dizendo: ‘Paulo,
prisioneiro de Cristo Jesus, e Timóteo’? É mais glorioso estar atado por Ele,
que ser libertados e soltos por outros”.2
“Torno a enviá-lo para junto de ti”
Onésimo passou a servir a São Paulo na prisão, pois foi
por suas mãos que ele alcançou a verdadeira liberdade. Aquele mesmo que
recusara servir a seu dono segundo o direito da época, dedica-se agora com
total diligência a auxiliar Paulo. É o que o Apóstolo dirá em sua carta,
jogando com o significado grego do nome Onésimo (útil, proveitoso): “Ele poderá
ter sido de pouca serventia para ti, mas agora será muito útil tanto a ti como
a mim” (Fm 1, 11).
Em seguida, São Paulo mostra como ele próprio trata quem
voluntariamente se fez escravo de Deus por suas mãos: “Torno a enviá-lo para
junto de ti, e é como se fora o meu próprio coração” (Fm 1, 12). A palavra grega
utilizada pelo Apóstolo (σπλάγχνα – entranhas) indica o que há de mais interno
no ser humano; é, portanto, mais comovente que “coração”, e ressalta o grande
valor que Onésimo alcançou com este novo tipo de escravidão.
Em seguida o Apóstolo manifesta em sua epístola o desejo
de conservar Onésimo consigo, para que este o servisse em nome de Filêmon, o
qual também era seu devedor na ordem espiritual. Mas o devolvia a seu amo sem
constrangimentos.
Consequências dessa paternidade espiritual
Esta carta, que bem poderia ser qualificada como a da
teologia da escravidão, mostra o profundo vínculo estabelecido entre o
discípulo e seu pai espiritual e ainda menciona uma comovente consequência
deste relacionamento.
Ao devolver Onésimo a Filêmon, o santo Apóstolo se tornou fiador
da dívida desse novo escravo de Deus: “Se me tens por amigo, recebe-o como a
mim. Se ele te causou qualquer prejuízo ou está devendo alguma coisa, lança
isso em minha conta. Eu, Paulo, escrevo de próprio punho: Eu pagarei” (Fm 1,
17-19a).
Essa mesma paternidade espiritual concede também ao
Apóstolo direitos sobre Filêmon: “Para não te dizer que tu mesmo te deves
inteiramente a mim!” (Fm 1, 19b). Paulo, porém, não recorre à sua autoridade
para dar-lhe uma ordem (cf. Fm 1, 8), preferindo fazer um apelo à caridade do
discípulo: “recebe-o como a mim”.
Como se não bastasse obter o perdão para um escravo
fugitivo, sujeito a severos castigos segundo as leis romanas, o Santo assumiu
suas dívidas, escrevendo de próprio punho: lance na minha conta, eu pagarei.
Por certo, o valor de uma missiva do Apóstolo das Gentes supera de muito o de
qualquer dívida ou dano material porventura causado pela ausência de Onésimo.
Caminho seguro para alcançar a santidade
Na Carta a Filêmon, o Apóstolo nos propõe escolher entre
duas escravidões: a escravidão aos vícios e pecados ou a escravidão voluntária
a Deus, que nos liberta das amarras do demônio. Nesta matéria, não há terceira
opção.
A quem quiser viver segundo os preceitos do mundo
parecerá absurda a proposta do Apóstolo. Mas a livre escravidão espiritual
assumida por São Paulo é o caminho mais seguro para alcançar a santidade. Por
ela, a pessoa visa esvaziar-se de todos os interesses particulares para melhor
servir ao Criador, Supremo Juiz a quem deverão todos prestar contas de cada ato
e de cada pensamento!
Onésimo fez a melhor escolha, imitando Aquela que foi
eleita para ser a Mãe do Redentor: “Eis aqui a escrava do Senhor. Faça-se em
Mim segundo a tua palavra” (Lc 1, 38).
Uma bela e antiga tradição
A carta de Santo Inácio de Antioquia aos efésios, datada
do ano 107 d.C., dá origem a uma bela tradição segundo a qual Onésimo teria
sido Bispo de Éfeso: “Em nome de Deus, recebi a vossa comunidade na pessoa de
Onésimo, homem de indizível amor, vosso Bispo segundo a carne. Eu vos peço que
o ameis em Jesus Cristo, e que vos torneis semelhantes a ele. Seja bendito
Aquele que vos concedeu a graça e vos considerou dignos de merecer tal Bispo”.3
De acordo com essas palavras, deparamo-nos com um fato
inteiramente incomum para os costumes da época. Algumas dezenas de anos depois
do episódio narrado, aquele que se fez voluntariamente escravo de Deus pelas
mãos de São Paulo teria recebido a alta dignidade episcopal, cujo prestígio
muitos procuram fazendo-se escravos do mundo…
Alguns estudiosos ainda atribuem a Santo Onésimo o mérito
de reunir em Éfeso as cartas de São Paulo, facilitando assim a formação do
cânon paulino das Sagradas Escrituras.
A escravidão espiritual ensinada a Onésimo pelo Apóstolo
mudou sua vida para sempre. E o mesmo pode ocorrer com todos os que lerem essas
magníficas linhas escritas de próprio punho por São Paulo, sob inspiração do
Espírito Santo. Hoje, tal tarefa se encontra muito facilitada. Pois, tendo a
teologia católica explicitado ao longo dos séculos o papel único de Maria
Santíssima na santificação das almas, podemos não apenas recorrer ao seu
auxílio infalível como filhos, mas nos tornar seus escravos de amor, segundo
nos ensinou o grande doutor mariano, São Luís Maria Grignion de Montfort.
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