Se, como diz a máxima, a justiça é cega, mais ainda o deve ser a nossa confiança em Deus. Quando nos exercitamos nessa virtude, praticando-a de modo humilde e irrestrito, acumulamos um inimaginável tesouro de misericórdia e recompensas celestiais. É a lição que se extrai da admirável vida de São Mayeul, abade de Cluny, o mosteiro-pilastra da Cristandade medieval.
Célebre na Idade Média e nos séculos sucessivos, pela impregnação do espírito católico que ela promoveu na cultura e civilização européias, a Abadia de Cluny foi igualmente um celeiro de Santos. Entre eles, São Mayeul, abade cuja biografia podemos ler no Pe. Rohrbacher.
Humildade, obediência e dom dos milagres
São Mayeul de Cluny, nasceu na Provença, pelo ano de 906. Foucher, seu pai, era da primeira nobreza, e tão rico que doou àquele mosteiro vinte terras com as igrejas a que pertenciam. São Mayeul era ainda jovem quando perdeu pai e mãe, e suas propriedades haviam sido devastadas por invasores bárbaros, obrigando-o a abandonar a região e se retirar para Mâcon. Ali foi recebido por um parente seu, e colocado entre os cônegos da diocese. Pouco depois se dirigiu a Lyon, onde estudou as artes liberais e a filosofia. De regresso, foi promovido a arcediácono, dignidade na qual se destacou por sua caridade para com os pobres e na instrução de outros clérigos.
Sua reputação tornou-se tal que, tendo vagado o arcebispado de Besançon, foi eleito, com consentimento do clero e do povo. Porém, recusou-se a assumir o cargo, e concebeu mesmo a idéia de deixar o mundo. Como o mosteiro de Cluny estivesse nas vizinhanças de Mâcon, Mayeul abraçou a vida monástica nessa comunidade, em 943.
Não se distinguiu senão pelas virtudes, sobretudo a obediência e a humildade. Seis anos após a entrada de Mayeul no mosteiro, o santo Abade Aymard, sentindo-se velho e cego, e temendo que as enfermidades fossem causa de relaxamento na observância da regra, declarou-o abade, com o consentimento de toda a comunidade. Após a morte do venerável Aymard, em 965, Mayeul governou sozinho a abadia durante perto de 30 anos. Aliava à doutrina grande facilidade de falar, e escutavam-no com prazer quando proferia um discurso de moral. Muitos ricos e poderosos, tocados pelas suas exortações, abraçaram a vida monástica e aumentaram consideravelmente a comunidade de Cluny. Mayeul procurava sempre o recolhimento, mesmo nas viagens, e orava com tal compunção que, não raro, encontravam a terra regada de lágrimas.
Também tinha o dom dos milagres. Indo, por devoção, visitar a Igreja de Nossa Senhora de Puy-en-Velay, entre os muitos pobres que lhe pediam esmolas, um cego disse ter tido a revelação de São Pedro que recuperaria a vista, se lavasse os olhos com a água onde São Mayeul houvesse lavado as mãos. O abade despediu-o com forte reprimenda, e, sabendo que ele pedira tal água aos domésticos, proibiu-lhes terminantemente de fazê-lo. O cego não se desencorajou. Após ser despedido várias vezes, esperou o abade à beira do caminho, tomou o cavalo pela brida, e jurou não largá- lo antes de obter o que pedia.
Para que não fosse possível uma escusa, trazia água num vaso pendente do pescoço. O santo compadeceu-se, desceu do cavalo, benzeu a água segundo o costume da Igreja, fez o sinal da Cruz sobre os olhos do cego, depois, com os assistentes, se pôs de joelhos e orou à Santíssima Virgem. Antes de se levantar, o cego recuperara a vista...
Admirado pelos bárbaros
Em 973, São Mayeul regressava de Roma, acompanhado de grande número de homens de vários países, que se criam seguros na companhia de um santo. Mas, na passagem dos Alpes, foram atacados pelos sarracenos de Freysinet, que colocaram todos a ferros. O santo abade, cheio de aflição, pediu a Deus que ninguém morresse e foi atendido. Como alguns mouros zombassem da religião cristã, São Mayeul começou a mostrar-lhes com fortes razões a segurança da nossa religião e a falsidade da deles. Isto os irritou a tal ponto, que lhe algemaram os pés e o encerraram numa horrível gruta. Neste local, tendo o santo encontrado ao seu lado a obra atribuída a São Jerônimo, o “Tratado da Assunção da Virgem Santa”, pediu à Mãe de Deus que lhe fosse ainda concedido celebrar esta festa com os cristãos. Estavam a 23 de julho. Milagrosamente viu-se livre das algemas e os infiéis, estupefatos, passaram a tratá-lo com respeito. Permitiram que escrevesse a Cluny para obter seu resgate e de seus companheiros, e restituíram os víveres que haviam guardado como despojos de guerra.
Enquanto a quantia exigida não chegava, aumentou a devoção dos bárbaros pelo abade. Como este não estivesse habituado aos seus alimentos, preparavam um pão especialmente para ele. Certa vez, querendo polir um bastão, um sarraceno colocou o pé sobre a Bíblia que Mayeul trazia sempre consigo. O santo deixou escapar um gemido e o soldado foi pronta e severamente repreendido pelos companheiros. No mesmo dia este sarraceno, entrando numa briga, teve cortado o pé com que pisara a Sagrada Escritura.
Vindo enfim o resgate, São Mayeul foi libertado e celebrou a festa da Assunção entre os seus, como pedira. Os sarracenos de Freysinet não tardaram a ser completamente batidos por tropas cristãs, o que foi considerado como uma punição divina pelo aprisionamento do santo abade.
Em 994, quarenta e um anos depois de sua fecunda existência como superior de Cluny, consagrada à virtude e ao zelo pela disciplina monástica, São Mayeul passou ao repouso do Senhor, cheio de anos e méritos. Sua sepultura, em Souvigni, ficou célebre por tão grande números de milagres, que Pedro, o venerável, não receou dizer que, depois de Nossa Senhora, não há outro santo na Europa que mais milagres operou.
A Providência orienta as diversas formas de santidade
Por esses interessantes traços biográficos, percebemos como Deus via cada alma de acordo com uma orientação própria, correspondente aos desígnios d’Ele de dispô-las no universo de maneira ordenada e sábia, segundo formas diversas de santidade.
Então, para determinado tipo de alma está destinado um tipo de graça, e há uma conduta especial da Providência ajustada a ela, orientando os acontecimentos terrenos, produzindo-os, permitindo outros, de maneira que tais almas sejam fiéis a essas graças e realizem a forma de santidade à qual foram chamadas.
Isso se aplica de modo esplêndido no que diz respeito a São Mayeul.
Antes de tudo, é interessante observar como as pessoas daquele tempo procuravam viajar junto com os homens tidos por santos, certos de se verem mais protegidas do que se andassem sozinhas. É uma atitude que revela o espírito de fé do qual estavam animadas.
Porém, viajaram com este santo e na aparência Deus os iludiu, pois todos caíram presos nas mãos dos sarracenos. Portanto, a confiança depositada no santo parecia objeto de uma severa e amarga desilusão.
Ora, o que aconteceu?
São Mayeul, cheio de aflição, pediu a Deus que ninguém morresse, e foi atendido. Um outro santo qualquer poderia desejar o contrário, e rogar a Deus que, naquele momento, concedesse a todos a palma do martírio, ou pelo menos não pedir a vida para todos. Ficaria quieto, entregando nas mãos de Deus o destino deles, como aprouvesse à sua infinita sabedoria. Seriam modos diversos pelos quais as almas santas, sob influxos diversos da graça, respondem de maneiras distintas em semelhantes situações.
Confiança absoluta no auxílio divino
No caso de São Mayeul deu-se como o narrado, e ele foi atendido. Ninguém morreu, e a confiança que tinham depositado em Deus na pessoa dele foi, portanto, justificada. E o foi por uma espécie de superabundância, porque não só não morreram, como presenciaram uma série de maravilhas as quais terão feito imenso bem para as almas deles.
Em primeiro lugar, tiveram a graça de privar com um santo. Deus, na aparência de lhes tirar algo, de fato lhes concedeu mais do que imaginavam, ao contrário do que faz o demônio: quando este nos promete algo, é exatamente o de que nos irá privar. Nosso Senhor age de modo inverso, e não nos nega aquilo que nos prometera. De sorte que cabe a nós nutrirmos uma inteira confiança na misericórdia divina, pois acabará nos proporcionando o que parecia nos ter subtraído.
Assim, também aparentemente, Ele punha aqueles homens em risco de vida. De fato, Ele lhes deu a vida e muito mais do que esta, oferecendo-lhes preciosíssimos dons espirituais.
Analisemos um pouco estes dons.
Eles viram o santo entrar em discussão com os hereges e presenciaram a glória da religião manifestar-se pelo fato de os sarracenos não serem capazes de discutir e se irritarem. Constataram, por esta forma, a força dos argumentos da religião verdadeira.
Mais ainda. Viram o santo sofrer uma prisão injusta, ser algemado e duramente tratado por causa da defesa que fez da doutrina católica. Mas, testemunharam também esse outro lado da glória divina, que é o fato de o santo, depois de ler o “Tratado da Assunção da Virgem Santa”, ter feito um pedido e ser atendido milagrosamente. Quer dizer, foi libertado, as algemas se quebraram e os muçulmanos ficaram estarrecidos diante do ocorrido. Portanto, trata-se de uma insigne graça concedida por Deus a esses homens...
Ademais, puderam perceber como seus captores se tomaram de respeito para com o santo no qual não acreditavam, tributando-lhe toda espécie de atenções. E mediram a envergadura da intervenção de Deus, ao ser cortado o pé de um homem que tinha desprezado a Bíblia. E auferiram a maldade humana quando, apesar disto, os sarracenos não se converteram. Enfim, contemplaram o que consideraram um castigo divino pela prisão do santo, ou seja, a derrota das tropas de seus perseguidores.
De maneira que, tendo posto a sua confiança em São Mayeul, foram atendidos com uma verdadeira superabundância, e esse fato ficou registrado na História. Quase mil anos depois de ocorrido, pessoas de um país e de uma cidade que eles não sabiam poder existir, recordam com devoção e enlevo esse episódio.
Percebemos, portanto, quanto de bom e edificante resultou dessas peripécias de São Mayeul, na aparência ruins, fadadas ao insucesso e próprias a induzir as almas a não confiarem na Providência Divina.
Porém, a verdadeira lição a se tirar é o oposto: cumpre confiar sempre no socorro do Céu. E com um requinte.Diz-se que a justiça é cega; pois muito mais o deve ser a confiança. A Providência espera que confiemos contra todas as evidências, contra todas as aparências, conservando-nos fiéis apesar de todas as circunstâncias em contrário. Quando a pessoa passa longo tempo se exercitando nessa confiança irrestrita, acumula para si um inimaginável tesouro de misericórdia e recompensa.
O êxito através de aparentes abandonos
Peçamos, pois, a Nosso Senhor Jesus Cristo, pelos rogos de sua Mãe Santíssima e de São Mayeul, essa confiança cega que resiste a todas as evidências no sentido contrário, para a solução dos nossos problemas interiores, para obtermos misericórdia quanto aos nossos pecados e defeitos, e para alcançarmos a graça de progredirmos na santidade, em meio aos torvelinhos mais estranhos e às vezes mais lamentáveis da vida espiritual.
Confiar, confiar, confiar sempre, lembrando o que dizia São Francisco Xavier: o pior do pecado não é a falta cometida, e sim que a alma perca a confiança depois do pecado e continue a cair. Se o pecador não perder a confiança depois do pecado e confiar, mais dia menos dia ser-lhe-á dada a misericórdia.
Igual confiança devemos manter nas vicissitudes da nossa vida quotidiana, nas nossas dificuldades de apostolado, etc. E a esse propósito, convém considerarmos o seguinte. Segundo uma falsa filosofia do sucesso, tudo aquilo que fazemos tem de dar resultados visíveis e palpáveis, e todo insucesso nos deixa perplexos, não deveria existir e indica que Deus nos abandonou. Então, se tentamos, por exemplo, fundar uma escola e esta se fecha, significa que não a devíamos ter aberto. Deus nos abandonou. E assim por diante.
Ora, compreendamos que Deus nunca opera deste modo. Ele nos reserva o êxito através de muitos aparentes abandonos, ou através de muitas catástrofes reais, que resultarão depois na vitória. E é essa aceitação das catástrofes intermediárias que nos proporciona o resultado pleno que devemos desejar. Às vezes empreendemos algo e logo sobrevêm os reveses, não aquilo que esperávamos. Depois percebemos que Nossa Senhora nos obteve coisa incomparavelmente melhor do que a almejada por nós. Dessa maneira, nunca acontece de uma confiança não ser atendida nem coroada de êxito, embora por vezes de um modo que supera as próprias exigências e pedidos da mais afetuosa e humilde confiança. Portanto, esperar contra toda esperança, eis a fidelidade perfeita nessa virtude, a qual notamos naqueles homens que acompanharam São Mayeul.
Peçamos então ao santo abade de Cluny, alcance-nos a graça de aplicarmos essa lição nos episódios de nossa vida, discernindo a mão de Deus a nos guiar através dos túneis e precipícios mais desconcertantes, e a providência de Nossa Senhora pairando sobre nós, para nos dar sempre incomparavelmente mais do que desejamos. Amém.
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