Fundador de Obras de Caridade, Diretor de uma Ordem
Religiosa; por outro lado, insigne lutador contra o jansenismo e inspirador de
uma cruzada contra Túnis. Homem ao mesmo tempo capaz de tratar com a rainha e
com galerianos; de cuidar de doentes e de armar um exército contra os inimigos
da Fé. Dotado de tal amplitude de espírito, São Vicente de Paulo representou a
própria harmonia do espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Pediram-me que comentasse uma ficha biográfica de São
Vicente de Paulo, extraída do Breviário Romano.
Vicente nasceu de pais
pobres em Pay, na Landae, França, no dia 24 de abril de 1581.
Desde criança guardou
os rebanhos de seu pai. Mas sua viva inteligência fez com que sua família o
mandasse estudar entre os cordelliers de Dax.
Foi depois para
Toulouse a fim de conseguir grau de Doutor e, em 1600, ordenou-se sacerdote.
Após ter sido cativo em Tunis, em 1616 foi incluído no corpo de capelães da
Rainha Margarida de Valois. Durante algum tempo, foi cura de Clichy e de
Chatillon-les-Dombes.
Nomeado grão-capelão
das galeras da França pelo rei, com um zelo maravilhoso, trabalhou pela
salvação dos oficiais e dos remadores.
Indicado por São
Francisco de Sales para o governo das religiosas da Visitação, cumpriu essa
missão durante 40 anos com tal prudência que justificou plenamente o julgamento
do santo prelado, o qual declarou não conhecer padre mais digno do que Vicente.
Mas sua carreira
fez-se quase que inteira ao serviço da poderosa família dos Gondi. Ele
evangelizou as nove mil almas que viviam em suas terras, e diminuiu a extensão
das ruínas e das misérias produzidas pelas guerras civis ou com estrangeiros.
Até uma idade bem
avançada, Vicente dedicou-se a evangelizar os pobres e sobretudo os camponeses.
Para isto fez um especial voto, aprovado pela Santa Sé. Preocupou-se em
estabelecer a disciplina eclesiástica, dirigindo seminários para o Clero, e
tendo o cuidado de multiplicar as conferências espirituais entre os padres.
Enviou evangelizadores
não só através das províncias da França, mas também para Itália, Polônia,
Escócia, Irlanda e Índia.
Protegido pelos reis
da França, assistiu Luís XIII nos seus últimos momentos e foi chamado por Ana
d’Áustria, mãe de Luís XIV, para fazer parte do Conselho de Consciência.
Lançou os fundamentos
de uma nova Congregação, a dos Lazaristas, e com Santa Luísa de Marillac criou a
Instituição das Filhas da Caridade, ou Irmãs de São Vicente de Paulo.
Acabado de fadiga, o
chamado Apóstolo da Caridade veio a falecer em 1660. Afirma-se não ter havido
miséria que ele não houvesse socorrido. Cristãos aprisionados pelos turcos,
crianças abandonadas, jovens indisciplinados, moças em risco de cair no pecado,
religiosas displicentes, pecadoras públicas, condenados às galés, estrangeiros
enfermos, artesãos sem trabalho, os loucos e os mendigos, todos foram lembrados
pelo grande Monsieur Vincent, como era conhecido naquela época.
Membro da Mesa de Consciência e Ordens
Quero chamar a atenção para dois aspectos de sua vida.
O primeiro é a quase incrível fecundidade dessa existência,
tomando em consideração as várias situações pelas quais ele transitou.
Nascido de uma família pobre de camponeses, provavelmente
analfabetos ou semianalfabetos, ele teve uma ascensão: dada a sua excepcional
inteligência, foi estudar e ordenou-se sacerdote. Depois, caiu como cativo dos
berberes, piratas que percorriam o Mediterrâneo e às vezes até faziam incursões
pelos territórios da Europa, levando católicos como escravos, os quais eram
vendidos nos países do Oriente.
Maravilhosamente resgatado da condição de simples escravo,
ele é logo contratado para ser capelão de uma rainha e entra numa corte. Deste
alto cargo ele passa a ser vigário de duas aldeias; entra sob serviço de uma
casa nobre poderosa, a dos Gondi, e parece cifrar o seu trabalho às nove mil
almas que constituíam a população dos feudos ou das terras em que a família
Gondi tinha restos de poderes feudais.
Mas, depois disto, ele novamente se aproxima da corte e é
elevado a um dos mais altos cargos: membro da Mesa de Consciência.
A Mesa de Consciência e Ordens era uma instituição que
existia em quase todas as monarquias católicas daquele tempo, e tinha uma função
muito delicada. Naquela época o Estado era sempre unido à Igreja nos países
católicos, e os Bispos tinham muitas vezes poderes temporais. A diocese era
senhora feudal com poderes mais amplos, ou menos, destas ou daquelas terras;
dessa forma o provimento das dioceses que se vagassem cabia ao Papa por
princípio, porque só o Sumo Pontífice pode nomear e demitir livremente Bispos,
mas mediante indicação do rei. Este propunha em geral três nomes, dos quais o
Papa escolhia um.
Naturalmente, quando um nome não era adequado, o Sumo
Pontífice exigia outro nome. Ele não ficava manietado, circunscrito àqueles
três, mas era o rei que os indicava.
A Mesa de Consciência não era uma mesa no sentido material
da palavra. Tinha esse título porque seus membros se reuniam em torno de uma
mesa, e era um Conselho das pessoas de maior confiança e virtude do reino, mais
perspicazes e inteligentes, para estudar quais os padres que, por sua vida e
doutrina ortodoxa, cultura e atividade, saúde e influência pessoal, eram
capazes de serem Bispos.
Como é sabido, toda a vida de uma diocese gira em torno do
Bispo, e uma das coisas mais importantes para a vida interna da Igreja é a
designação de bons Bispos. Podemos assim compreender quanto um país deve ter
empenho em que seja escolhido o creme dos sacerdotes para ser Bispo.
Ele foi escolhido por Ana d’Áustria, a Rainha-Mãe, regente
da minoridade de Luís XIV, para esta Mesa de Consciência e Ordens e ali exerceu
grande influência para a designação dos Bispos. Esse homem que subiu a tão alto
cargo, tratando com cortesãos no palácio real da França, entretanto foi
capelão-geral das galés, tendo que fazer apostolado junto a criminosos, os
quais eram atarraxados nos navios e passavam a vida remando. Entre um príncipe
e um guerreiro há uma distância enorme; porém tal distância é menor do que a
existente entre o sacerdote e o escravo. Tudo isso constituiu os vaivéns de sua
existência.
Multiplicidade de atividades
Outro aspecto é a multiplicidade das atividades que ele
exerceu: Obras de Caridade, Diretor de uma Ordem Religiosa que então estava apenas
saindo das mãos de seu grande fundador, São Francisco de Sales; por outro lado,
lutador insigne contra o jansenismo. Ele foi um dos homens que mais trabalhou
contra o jansenismo na França, impedindo que essa forma péssima de
protestantismo larvado penetrasse nos meios católicos. Além disso, São Vicente
levantou uma cruzada contra a Tunísia; foi, portanto, chefe de cruzados.
Vemos assim a diferença de aspectos dessa personalidade. Um
homem capaz de tratar com a rainha, mas também com galerianos. De atrair a
confiança da soberana e de encontrar palavras que pusessem à vontade o
indivíduo que estava remando nas galés. Um homem capaz de tratar de um doente e
de armar um exército; de dirigir uma Congregação Religiosa de freiras reclusas,
que passavam a sua vida em oração, mas ao mesmo tempo capaz de orientar almas
de uma corte, passando todo o tempo sujeito às tentações do mundanismo.
Tinha ele um espírito amplíssimo, uma personalidade
vastíssima, rica dos maiores aspectos, com a possibilidade de impressionar a
fundo os homens mais variados. Ou seja, com uma faculdade de adaptação aos
vários meios que de si dariam origem a um verdadeiro romance.
Há pessoas que leem com entusiasmo a vida de Laurence of
Arabia, porque sendo inglês esteve na Arábia e se adaptou às condições de vida
lá existentes. O que é isto em comparação com todas as pluralidades de papéis
que São Vicente de Paulo desempenhou de um modo tão profundamente brilhante?
Se houvesse um grande biógrafo que soubesse apresentar a
vida de São Vicente de Paulo com ardor, sem se distanciar em nada da realidade
histórica, mas realçando os aspectos que verdadeiramente dão a chama de sua
existência, tenho certeza que esta seria uma das biografias mais famosas.
Uma das figuras mais deformadas pela “heresia branca”
Parece-me que até a consumação dos séculos uma tentação para
os que escrevem vida de santos vai ser de redigi-la de modo “heresia branca”1.
E a figura de São Vicente de Paulo é exatamente a que tem sido mais deformada
pela “heresia branca”.
Em que sentido? A “heresia branca” gosta de apresentar este
santo sempre sorrindo e com uma criancinha ao seu lado. Que ele seja
apresentado sorrindo, ótimo! E com uma criancinha ao lado — se não quiserem
economizar bronze, podem até pôr cinquenta criancinhas, não tenho nada a
objetar contra isto —, está esplêndido. Quem pode objetar contra o apostolado
junto às crianças de quem Nosso Senhor disse: “Deixai vir a Mim os pequeninos”?
Mas que se queira ver neste homem só isto! Este é o lado
verdadeiramente absurdo. Por que não se faz, numa igreja ereta em louvor de São
Vicente de Paulo, um quadro deste varão de Deus, na presença de Luís XIII,
obtendo deste a assinatura de um edito que ordenava uma cruzada contra Túnis?
Não devemos procurar corrigir uma unilateralidade com a
outra, escondendo São Vicente de Paulo caridoso, para manifestar apenas São
Vicente de Paulo guerreiro, porque a beleza consiste exatamente na coexistência
dos dois aspectos. Aí está a perfeição, a harmonia do espírito de Nosso Senhor
Jesus Cristo.
Plinio Correa de Oliveira -Extraído de conferência de
19/7/1971
1) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar
a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte,
etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à
fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.
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