O santo rei vitorioso
Jamais derrotado em batalha,
amado pelos seus súditos e até pelos adversários, São Fernando considerava o
exercício da realeza como uma privilegiada oportunidade de glorificar a Deus, a
Quem haveria de prestar severas contas no dia do Juízo.
Entretanto, o advento de Nosso
Senhor Jesus Cristo e a subsequente consolidação da Cristandade trouxeram
também novas dinastias, com seus respectivos soberanos, nobres e fidalgos. Tal
como os governantes dos antigos tempos, muitos deles prevaricaram. Contudo,
outros foram tão íntegros na fé e no exercício do direito, que não se mostram
menos grandiosos se comparados com aqueles de outrora. É justo mencionarmos,
junto aos nomes dos reis de Israel, os que subiram ao trono sob as bênçãos da
Santa Igreja, e em cuja vida não encontramos nódoas, infidelidades ou ambições,
mas sim o brilho fulgurante de uma acrisolada santidade.
São Fernando III, rei de
Castela e Leão, conta-se entre os que hoje veneramos nos altares e admiramos na
História com um deslumbramento semelhante ao despertado pelos antepassados do
Messias. Ao conhecermos os feitos por ele empreendidos, sentimo-nos inclinados
a exclamar como a rainha de Sabá: “Tua sabedoria e tua opulência são muito
maiores do que a fama que havia chegado até mim” (I Rs 10, 7).
Infância marcada pela figura da mãe
Acompanhando o luminoso
despontar do século XIII, que se abria carregado de promessas para o povo
cristão, Fernando veio a este mundo numa data que os pergaminhos da época não
lograram registrar. As hipóteses dos estudiosos oscilam entre os anos de 1198 a
1202, sem que por meio delas tenham chegado a uma conclusão absoluta. Já uma
sólida tradição situa o local do nascimento como tendo sido junto a um cerro no
trajeto entre Zamora e Salamanca, em meio a uma viagem empreendida por seus
pais, razão pela qual o pequeno príncipe foi chamado carinhosamente de “o
Montanhês”.
O que sabemos com toda certeza
é haver sido marcado pelo selo do infortúnio o casamento real do qual nasceu
São Fernando, pois seus pais, Afonso IX, de Leão, e Berenguela, de Castela,
tiveram as núpcias anuladas pelo Papa Inocêncio III, por serem parentes
próximos em grau proibido, segundo a legislação eclesiástica da época.
Assim, no ano de 1203,
separaram-se os consortes e voltaram cada qual para seus domínios, tendo Dona
Berenguela levado consigo Fernando, o filho herdeiro, e os outros três infantes
— Constança, Afonso e Berenguela, pois a pequena Leonor falecera no ano
anterior —, a fim de educá-los na corte de seu pai, Afonso VIII de Castela.
Certamente pressentia a rainha mãe, dama de grandes dotes naturais e não
menores virtudes, a decisiva responsabilidade depositada pela Providência em
suas mãos naquela triste circunstância: seria ela a formadora de um varão
predestinado, o qual não teria sido quem foi sem o seu magnífico exemplo de
vida.
Fernando crescia sedento das
coisas de Deus, o Rei dos reis e Senhor dos senhores, que do mais alto dos Céus
governa todo o orbe, e a respeito de Quem sua mãe contava belíssimas histórias,
incitando-o a amar com ternura e a temer com humildade o Soberano da criação.
Este Senhor, por amor ao gênero humano e desejo de redimi-lo, aceitara ser
condenado à morte, coroado de espinhos e recebera como cetro uma cana, e era
apresentado por Berenguela a Fernando como o arquétipo dos reis, divino modelo
de justiça para um bom governante.
Suas admoestações não foram
vãs, pois “as boas disposições do santo menino foram como a terra fértil do
Evangelho, em que caiu a boa semente dos ensinamentos, exortações e exemplos da
egrégia Dona Berenguela, destinada, assim como sua irmã Dona Branca na França,
a dar à Espanha um santo rei”.1
Soberano de Castela e Leão
A vida de corte em Castela
transcorreu serena durante a infância de Fernando, que progredia na piedade,
nas ciências e nas armas com uma desenvoltura propriamente régia, denotando
pela perfeição dos atos exteriores a grandeza de seu coração. Sonhava em poder
um dia construir belas igrejas à sua “Virgem Santa Maria” — realizando o sonho,
de fato — e dispensava generosas esmolas aos pobres.
Passou cerca de um ano com seu
pai em Leão, tendo regressado a Castela com a alma fortalecida pelo duro
combate que a integridade na prática da virtude exigiu dele nesse período. De
regresso ao território materno, Dona Berenguela preparou-lhe uma surpresa: ela
tencionava proclamá-lo rei, abdicando à coroa que lhe cabia por herança após o
falecimento do pai.
Procedeu-se, pois, à coroação
do santo no ano de 1217, numa memorável cerimônia em Valladolid, acompanhada
pela entusiástica adesão do clero, nobreza e povo do reino, os quais se sentiam
encorajados à prática do bem pela figura encantadora do jovem monarca, cuja
simples presença parecia atrair as bênçãos do céu e a paz para o reino. Bons
presságios trazia aquele regente, no frescor da juventude e, ao mesmo tempo, na
maturidade do espírito.
A missão da realeza — sempre
considerada por ele como uma dádiva recebida de Deus e uma privilegiada
oportunidade para glorificá-Lo, da qual prestaria severas contas no dia do
Juízo — iniciou-se com dificuldades próprias a desanimar os espíritos pouco
resolutos. Decidido a enfrentá-las até as últimas consequências, entregou-se à
sua vocação com tanto ardor como o mais fervoroso dos frades num convento, e
começou a desmelindrar os espinhosos assuntos de Estado, conforme ditava o
dever.
Eis como uma das suas biógrafas
descreve o prêmio dado por Deus aos seus esforços: “O rei Fernando, em seu
incessante percurso pelo reino administrando justiça, cada vez ouvia menos
querelas e mais bênçãos. Via sua Castela estancada do sangue das feridas feitas
por tantas guerras, conflitos e alvoroços, forte e valente, desejando lançar-se
de novo no rumo que Deus, árbitro supremo da História, havia lhe traçado”.2
Falecido seu pai em 1230,
obteve também a coroa de Leão, através de tortuoso caminho, envolvendo a
renúncia ao trono por parte das infantas Sancha e Dulce, filhas do primeiro
casamento de Afonso IX. Resolvida a questão da sucessão, graças ao auxílio
divino e ao tino diplomático de Dona Berenguela, foi coroado rei leonês
passados 13 anos da primeira aclamação, unindo de maneira definitiva ambos os
Estados.
“Dominus adjutor meus”
Ao escolher o lema de seu escudo
real, a preferência de Fernando recaiu sobre um trecho do Salmo 28: “Dominus adjutor meus” — “O Senhor é a
minha força”, frase por meio da qual traduziu seu ideal de vida. Um profundo
senso do divino animava o soberano, o qual deu-lhe, desde cedo, a convicção de
que, sem a ajuda do Altíssimo, a sua mão não empunharia o cetro com a devida
firmeza, nem conduziria o povo em conformidade com a sua vontade.
Impulsionado por uma cega — no
entanto, paradoxalmente, quão lúcida! — confiança em Nosso Senhor, e por um
amor incondicional a Ele, era considerado por todos como o melhor cristão do
reino, tanto por sua fidelidade no cumprimento dos preceitos, como pela
largueza de horizontes com que compreendia e praticava o Evangelho.
Reservava para a oração longas
horas do dia. E quando elas não bastavam a seus anseios, avançava recolhido
madrugada adentro, descansando apenas em colóquios com o seu “Conselheiro”,
como chamava à relíquia do Santo Rosto de Cristo, hoje venerada na catedral de
Jaén. Os membros da corte insistiram com ele, certa vez, para descansar mais,
porém o santo teria respondido: “Se eu não velasse, como poderíeis vós dormir
tranquilos?”.
Uma discreta suspeita,
acompanhada de um burburinho que corria de boca a ouvido no reino, difundia o
comentário de que o Senhor do véu falava com São Fernando, revelando-lhe
mistérios do tempo e da eternidade. Ninguém se aventurava a perguntar detalhes
a tal respeito. Não obstante, os fatos pareciam comprovar a pia desconfiança,
pois os planos do rei, audaciosos, inusitados e até humanamente temerários,
cumpriam-se com invariável êxito, parecendo sobrepujar os mais sagazes cálculos
e se identificar com a vontade divina.
Jamais perdeu uma batalha
São Fernando viveu em plena
Reconquista espanhola, numa época em que guiar os exércitos para a guerra era
uma das principais obrigações dos reis, para a qual eram preparados desde a
infância.
Tal situação fez dele um homem
de armas. Suas campanhas militares iniciaram-se em 1224 e, a partir de 1231,
continuaram sem interrupções até o momento da sua morte. Foram mais de 20 anos
de esforço bélico durante o qual as hostes castelhanas recuperaram, entre
outras, as cidades de Córdoba, Jaén, Sevilha e Múrcia.
As corajosas conquistas do Rei
Santo ainda hoje infundem respeito nos maiores estrategistas, pois ele jamais
perdeu uma batalha, por maiores que fossem as desproporções numéricas e de
forças, fato que levou Inocêncio IV a chamá-lo de “campeão invicto de Jesus
Cristo”.
Usando do seu poder a serviço do bem
Vendo seu poderio político e
militar avantajar-se a cada dia, São Fernando teve virtude para não
envaidecer-se por isso, tão certo estava de tudo lhe vir de Deus e a Ele
pertencer. Dedicou-se a administrar sabiamente seus bens, dando a cada um o que
era seu, e a Deus mais do que a todos.
Nesse intuito, beneficiou com
largueza as obras espirituais e materiais da Igreja, lançando os fundamentos
das catedrais de Toledo e Burgos, contadas entre as maiores joias góticas
erigidas em solo espanhol. Ambas estão dedicadas a Nossa Senhora, a quem
consagrava indescritível afeto.
O povo, vendo-se amparado em
suas necessidades de maneira tão extraordinária pelo rei, tinha por ele um
entusiasmado e filial devotamento. Narra o historiador Weiss que “ele próprio
visitava seus estados, ouvia os pleitos e os sentenciava […]. Em seu longo
reinado favoreceu sempre ao pobre, contra as injustas pretensões dos ricos, e
este ponto estava tão marcado em sua consciência, que chegou a ter em seu
palácio de Sevilha uma pequena grade nas salas de audiência para ver bem se os
juízes atuavam com retidão”.3
Mesmo seus inimigos aprenderam
a admirá-lo, até o ponto de príncipes e reis abraçarem pelo seu exemplo a
verdadeira Fé. Foi o caso do rei valenciano Abu Zayd, que recebeu o Batismo
alguns anos depois do encontro com São Fernando. “Começou amando o cristão e
terminou amando a Cristo”,4 comenta espirituosamente uma das autoras
consultadas.
O povo encheu-se de respeito por ele
Na hora de sua morte, ocorrida
em Sevilha no dia 30 de maio de 1252, ele fechou sereno os olhos para este
mundo, pronto para encontrar-se com seu Senhor, após ter feito render os
talentos d’Ele recebidos. De fato, afirma um célebre historiador ibérico,
“nenhum príncipe espanhol, desde o oitavo até o décimo terceiro século, tinha
recolhido tão rica herança como a legada por São Fernando a seu filho primogénito
Afonso”.5
Na catedral sevilhana, sob o
maternal olhar da padroeira da cidade, a Virgem dos Reis, está conservado seu
corpo, com uma placa onde se lê em espanhol antigo o seguinte epitáfio: “Aqui
jaz o muito honrado Rei Dom Fernando, senhor de Castela e de Toledo, de Leão,
de Galícia, de Sevilha, de Córdoba, de Múrcia e de Jaén, o que conquistou toda
a Espanha, o mais leal, o mais verdadeiro, o mais franco, o mais esforçado, o
mais garboso, o mais ilustre, o mais sofrido, o mais humilde, o que mais temeu
a Deus, o que mais Lhe prestava serviço, o que abateu e destruiu todos os seus
inimigos, o que elevou e honrou todos os seus amigos, e conquistou a cidade de
Sevilha, capital de toda a Espanha”.
A nobreza de sua alma tornou-o
merecedor de tais elogios, porque São Fernando é “um desses modelos humanos que
conjugam em alto grau a piedade, a prudência e o heroísmo; um dos enxertos mais
felizes, por assim dizer, dos dons e virtudes sobrenaturais nos dons e virtudes
humanos”.6
Embora seus súditos tenham-no
celebrado em vida com justa veneração, o transcurso do tempo foi delineando sua
estatura como exemplo de virtudes, razão pela qual o povo cristão de todas as
épocas “encheu-se de respeito por ele, pois via-se que o inspirava a sabedoria
divina para fazer justiça” (I Rs 3, 28).
1GARZÓN,
F. San Fernando – Rey de España. 4.ed. Madrid: Apostolado de la Prensa, 1954,
p.8-9. De fato, alguns anos mais tarde, em
1214, nasceria em Poissy seu primo irmão São Luis IX.
2FERNÁNDEZ
DE CASTRO, Carmen. Nuestra Señora en el arzón. Vida del muy noble y santo rey,
Don Fernando III, de Castilla y de León. Cádiz:
Escelicer, 1948, p.85.
3WEISS, Juan Bautista. Historia
universal. Barcelona: La Educación, 1927, v.VI, p.597.
4FERNÁNDEZ
DE CASTRO, op.cit., p.97.
5LAFUENTE,
Modesto. Historia general de España. 2.ed. Madrid: Dionisio Chaulie, 1869,
t.VI, p.6.
6SÁNCHEZ
DE MUNIÁIN GIL, José María, apud ANZÓN, Francisco. Fernando III – Rey de
Castilla y León. Madrid: Palabra, 1998,
p.202.
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