Homem capaz de mover multidões
à conversão e de se enternecer com o canto de um passarinho, deixou um exemplo
de vida que atravessa os séculos, como promessa de um grandioso porvir para a
América.
Em meio à inóspita floresta
sul-americana, um frade franciscano de fins do século XVI contempla alguns
sonoros passarinhos cujas plumagens coloridas pontilham o verde da vegetação.
Além dos graciosos gorjeios, ouve-se apenas o murmúrio da borbulhante fonte
próxima. Essa agradável consonância logo faz aflorar seu aguçado pendor
musical. Levando ao ombro o violino que traz consigo, começa a acompanhar com o
arco e as cordas a harmonia da natureza.
O súbito sibilar de uma flecha
que passa rente ao violinista faz cessar a melodia. Ele recolhe o instrumento,
olha serenamente ao redor e percebe a pouca distância, dissimulado entre as
ramagens, um indígena de grandes e escuros olhos. O disparo havia sido o aviso
do iminente ataque dos nativos da região, incomodados pela incursão daquele
estranho em seu território.
Entretanto, a fisionomia do
franciscano logo se ilumina, denotando a satisfação própria de alguém que
encontra quem há muito procurava. Depõe o violino sobre uma pedra, caminha
resoluto em direção ao índio e o abraça com grande afeto. Desconcertado ante
tão inusitada atitude, este permanece imóvel. Em sua alma, porém, sente um
misto de paz, alegria e desejo de conhecer algo que se lhe afigura como sublime
e inefável. E se comove.
Esse providencial encontro
marcava o início da conversão de mais uma tribo da província de Tucumán, na
Argentina.
O mesmo franciscano já atraíra
à verdadeira Religião milhares de nativos que o consideravam como pai, “tinham
nele grande fé, o respeitavam e veneravam, reconhecendo-o como santo”.1 Sua
compleição esquálida, indicadora do rigor das mortificações impostas a si
mesmo, contrastava com um cativante sorriso, sinal exterior da íntima união com
Aquele que faz o justo transbordar de alegria (cf. Sl 67, 4).
A aura da santidade desse homem
extraordinário marcou os primórdios da evangelização da América, deixando na
história do continente os traços indeléveis de sua caridade. Chamava-se
Francisco e, na Ordem, era conhecido como o padre Solano, nome de família. O
povo sul-americano carinhosamente o cognominou “o Frade do Violino”.
Um menino contemplativo
Francisco Sánchez Solano
Ximénez nasceu na católica Espanha das grandes expedições ultramarinas e foi
batizado em 10 de março de 1549, na Igreja Paroquial de Montilla. Seus pais,
Mateo Sánchez Solano e Ana Ximénez, eram muito respeitados, não apenas pela
nobreza do sangue, mas, sobretudo, por suas virtudes. Serena foi a infância do
menino, num ambiente familiar nimbado de religiosidade. Dotado de temperamento
recolhido e contemplativo, entretinha-se observando longamente a natureza,
encantado por sua beleza. Devido a uma rara sensibilidade musical, tinha como
passatempo predileto alimentar com migalhas as melodiosas avezinhas encontradas
nos jardins da casa e cantar com elas. Começava assim a “exercitar-se uma voz
que havia de cantar as grandezas de Deus às bárbaras nações indígenas”.2
Todavia, tal serenidade de
espírito não significava indolência de caráter. Quando presenciava algum
desentendimento entre as crianças, ou mesmo entre adultos, admoestava com
seriedade os contendores e sempre lograva a reconciliação. Exercia, além disso,
singular influência sobre as pessoas com as quais convivia: bastava sua
presença para aquietarem-se as más inclinações, os vícios perderem o dinamismo
e as almas se sentirem propensas à virtude.
Caindo em terreno fértil, suas
lições de Catecismo logo frutificaram. Dedicado à oração, devoto da Santa Missa
e assíduo frequentador do Sacramento da Penitência, o jovenzinho hauriu nessa
intensa vida de piedade as energias para triunfar nas lutas da adolescência,
mantendo ilibada pureza e retidão de conduta. No Colégio Jesuíta de Montilla,
Francisco era considerado modelo de integridade e muito estimado pelos colegas,
inclusive pelos jovens de costumes levianos, a ponto de bastar ele se aproximar
de qualquer roda para findarem-se as más conversas e criar-se entre os rapazes
um sadio ambiente de alegria.
Sacerdote franciscano
Quando sentiu em sua alma a
vocação religiosa, logo a identificou com o carisma franciscano, que vira
espelhado nos frades do Convento de São Lourenço, em sua cidade. Atraía-o
sobremaneira a ideia de se tornar discípulo do Poverello de Assis, por quem
nutria veemente entusiasmo. Fez nesse convento a profissão religiosa em 25 de
abril de 1570.
Para aprofundar os estudos, foi
enviado ao Convento de Santa Maria de Loreto. Não obstante, quanto mais se
aplicava às doutrinas, mais se fortalecia em seu coração o anseio de realizar
um sonho há tempos acalentado, tão característico das almas apaixonadas por
Cristo: o martírio! Ser missionário no Marrocos lhe parecia o melhor meio de
concretizar tal aspiração, pois não era raro receberem a palma do martírio os
religiosos que se aventuravam a evangelizar essa região. Pediu aos superiores
para lá o enviarem, mas não foi atendido. Era nos claustros espanhóis que o
Altíssimo queria temperar a alma do futuro apóstolo, e pedia-lhe naquele
momento um sacrifício não menos excelente: a imolação da vontade própria,
sujeitando-a à obediência. E ele a ofereceu por inteiro.
Ordenado sacerdote em 1576, na
festa de São Francisco de Assis, teve de voltar a Montilla três anos depois,
devido ao falecimento de seu pai. Durante a estadia na terra natal, operou a
cura milagrosa de alguns doentes. A notícia desses prodígios logo se espalhou
pela cidade, levando o povo a aclamá-lo como santo. Começou então uma das suas
maiores batalhas, a qual travou até o último suspiro: a de não permitir que
atribuíssem à sua pessoa os louvores devidos a Deus. Sem embargo, quanto mais
se esquivava dos elogios, mais era exaltado. Por isso, não se cansava de
repetir: “Deus seja glorificado! Deus seja louvado!”.3
Dom de comunicar alegria
Exerceu em vários conventos
cargos de autoridade, como prior e mestre de noviços, e era para os outros
religiosos um contínuo convite à santidade. Fidelíssimo à “dama pobreza” e
admirador enlevado dos reflexos das perfeições divinas encontrados nas
criaturas, agia em todas as circunstâncias como um filho perfeito de São
Francisco de Assis. Da mesma forma como era intransigente consigo mesmo nas
penitências corporais, não tolerava que nenhum de seus subalternos manifestasse
tristeza por estar servindo a Deus. Tinha o precioso dom de comunicar-lhes “o
gosto, a alegria pelas coisas santas” e fazia o apostolado “da alegria na luta,
da alegria na seriedade, da alegria no sofrimento, do entusiasmo”.4
Ora, o povo percebia a
excelência de tais virtudes, de modo que, quando o santo frade saía à rua para
pedir esmolas, os transeuntes o cercavam, disputando o privilégio de
oscular-lhe o hábito ou receber sua bênção.
No intuito de desvencilhar-se
dessas manifestações, pediu para ir evangelizar as “Índias”. Teve grande
contentamento ao ser designado para uma missão na província de Tucumán, no Novo
Mundo, para onde embarcou em 13 de março de 1589. No entanto, devido a um
naufrágio e a outros contratempos, acabou aportando alguns meses depois em
Paita, no Peru, e somente chegou a Santiago do Estero, capital da província a
que se destinava, em 15 de novembro de 1590, depois de um longo e penoso
percurso, iniciando aos 41 anos de idade sua vida de missionário.
Apóstolo no Novo Mundo
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Aspectos do Convento dos Descalços, Lima |
Como sói acontecer na história
das missões, abundante era a messe e pouquíssimos os operários naquela região.
Portanto, cada religioso era uma peça-chave na obra de evangelização. Bem
compenetrado disso, nosso santo não hesitou em lançar-se com heroica dedicação
no labor de salvar as almas a ele confiadas. Nos povoados de Socotonio e
Magdalena, para onde foi enviado como pregador, aprendeu em menos de quinze
dias o complicado dialeto tonocoté. Falava-o com impressionante fluidez,
chegando a expressar-se com mais perfeição do que muitos nativos. Além dessa
facilidade, deu-lhe a Providência o mesmo dom concedido aos Apóstolos no dia de
Pentecostes: em algumas de suas pregações, falando a espanhóis e índios de
diferentes dialetos, todos o entendiam, cada qual no respectivo idioma.
Nada o detinha na conquista das
almas para Cristo. Expunha-se a grandes riscos, indo à busca dos indígenas que
viviam nas matas e, quer para alimentar-lhes a fé, quer para auxiliá-los nas
necessidades materiais, prodigalizava milagres por onde passava. Entre inúmeros
outros prodígios, fez brotar nascentes em lugares desérticos, amansou animais
ferozes, curou doentes, proveu de alimentos em tempos de escassez.
Contudo, sem sombra de dúvida,
seus maiores milagres eram os que se operavam no interior das almas: “O padre
Solano amava os índios, falava-lhes em sua língua, e eles lhe respondiam,
convertendo-se aos milhares”.5 Seu singular instrumento de piedade e
apostolado, o violino, era complemento indissociável de um original e eficaz
método de evangelização, o qual consistia em entremear as pregações com
animadas melodias, ora executadas com o arco e as cordas, ora cantadas com sua
bela voz. Maravilhados, os indígenas abriam-se à ação da graça e logo surgia o
corolário esperado pelo apóstolo: o desejo de receber o Batismo. A mesma voz
que os atraíra pela arte da música e lhes ensinara as verdades da Fé, cumpria a
mais alta de suas finalidades, ao ministrar-lhes os Sacramentos. Assim, os
preciosos talentos confiados ao servo bom e fiel rendiam a cem por um, e
paulatinamente a luz da Igreja se alastrava pela região, vencendo as trevas do
paganismo.
Expressando sua grande fé,
respeito e veneração, os nativos “punham-se de joelhos para beijar-lhe o hábito
e as mãos em qualquer parte onde o encontrassem; e o padre era tão piedoso com
eles que, ao vê-los, apeava do cavalo, os abraçava e agradava, e lhes dava do
que trazia consigo”.6
Após anos de fecundo
apostolado, recebeu em 1595 a ordem de dirigir-se a Lima, para ali fundar um
novo convento franciscano. Sempre dócil aos superiores, obedeceu prontamente.
“Vou tocar para uma Donzela belíssima”
A capital do Peru passava por
grande florescimento religioso e aqueles anos contemplavam o desabrochar de
almas que, mais tarde, seriam veneradas no mundo inteiro: São Turíbio de
Mogrovejo, Santa Rosa, São Martinho de Porres e São João Macías.
Os recém-edificados claustros
da nova fundação franciscana, batizada com o nome de Nossa Senhora dos Anjos e
hoje conhecida como Convento dos Descalços, tornaram-se escrínio deste eleito.
Ali o padre Francisco Solano estreitaria sua união com Deus. Sem negligenciar
suas obrigações e as obras apostólicas, o santo levou nesse abençoado lugar uma
vida de recolhimento e oração; aí se intensificaram e tornaram-se cada vez mais
frequentes seus êxtases e arroubamentos de amor a Jesus e à Santíssima Virgem.
Frequentemente, a altas horas
da noite, ressoavam na igreja deserta as músicas por ele executadas ao violino.
Certa vez, a um religioso com o qual cruzou no corredor, quando para lá se
dirigia, disse: “Vou tocar para uma Donzela belíssima, que está me
aguardando”.7 O frade, intrigado, escondeu-se na noite seguinte atrás da porta
da sacristia e pôde contemplar esta cena: após rezar longo tempo diante do
altar-mor, o irmão violinista ofereceu a Jesus Eucarístico um breve e animado
concerto; foi depois até o altar de Nossa Senhora e ali não só tocou outras
músicas, mas, enquanto cantava um entusiasmado hino às glórias da Virgem Mãe,
pôs-se a saltar e dançar com muita graça e elegância.
De fato, era aos pés da “Causa
de nossa alegria” que o santo franciscano encontrava conforto nos sofrimentos e
forças para praticar a virtude, como ele próprio confidenciou: “Nesta casa
tenho meus entretenimentos e todo o meu consolo, porque comunico a uma Senhora
que é o alívio de minhas penas, o gozo e a glória de minha alma”.8
Sermão histórico em Lima
A população de Lima, onde
passou os últimos anos de sua vida, foi objeto de seu zelo apostólico, o qual
se manifestava, sobretudo, nas pregações. Estas, tão eficazes na conversão de
milhares de índios, não produziram efeito menos significativo no povo limenho.
A história daquele país registra o sermão por ele proferido em 21 de dezembro
de 1604, o qual conferiu à cidade um traço de analogia com a bíblica Nínive,
movida à penitência pelas palavras do profeta Jonas. À multidão aglomerada na
Praça das Armas, exortou o santo frade ao arrependimento e à conversão,
censurando os maus costumes e lembrando a justiça de Deus, a qual muitas vezes
castiga os homens com catástrofes, para corrigi-los e salvá-los.
O sermão calou a fundo nas
almas. As igrejas tiveram de permanecer abertas durante toda a noite, devido à
enorme afluência de fiéis à procura da reconciliação com Deus. Na catedral,
“tal era o concurso de pessoas desejosas de confessar-se que três ou quatro
penitentes se ajoelhavam, ao mesmo tempo, aos pés dos confessores, sem se
importar de que uns ouvissem as culpas dos outros”.9 Grande número dos
habitantes abandonou para sempre os maus costumes, comprovando o quanto o
efeito daquela prédica não fora um efêmero surto de fervor.
Promessa de um grandioso porvir
À notícia de sua morte, em 14
de julho de 1610, o povo acorreu em massa ao convento, e foi necessário trocar
quatro vezes o hábito que o revestia, pois as pessoas, não se contentando em
oscular-lhe as mãos e os pés, cortavam-lhe pedaços da roupa para conservar como
relíquia. Justas manifestações de veneração, devidas ao humilde “Frade do
Violino”, cuja admirável riqueza de personalidade foi assim descrita por um
cronista contemporâneo: “Na penitência e na pregação, foi um João Batista; no
zelo pela fé, um Elias; na paz interior e na caridade, um Moisés; na esperança
do eterno, um São Francisco de Assis”.10
Homem capaz de mover multidões
à conversão e de se enternecer com o canto de um passarinho, dotado de espírito
altamente contemplativo e ao mesmo tempo propulsionador de ousadas ações
missionárias, São Francisco Solano deixou um exemplo de vida que atravessa os
séculos, como promessa de um grandioso porvir para a América.
Se para lançar as primeiras
sementes do Evangelho nestas terras, quis a Providência enviar-nos um apóstolo
de tal magnificência, quantas outras almas de igual ou maior porte não
suscitaria Ela no seio do Novo Mundo, nos séculos vindouros, para dar
continuidade à obra tão brilhantemente iniciada? ²
1PLANDOLIT,
Luís Julián. El apóstol de América: San Francisco Solano. Madrid: Cisneros,
1963, p.173. 2SÁNCHEZ FERIA, Bartholomé. Compendio de la vida, virtudes y
milagros del Apóstol del Perú, San Francisco Solano. Madrid: Miguel Escrivano,
1762, p.13. 3PEÑA O. A. R.,
ÁNGEL. San Francisco Solano, Apóstol de América. Lima: [s.n.], [s.d.], p.57. 4CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio.
Conferência. São Paulo, 16 ago. 1974. 5PEÑA, O. A. R., op. cit., p.22. 6ARQUIVO
SECRETO DO VATICANO – Congregação para as causas dos santos, nº 1328, fol.
1078, apud PEÑA O. A. R., op. cit., p.22.7SÁNCHEZ FERIA, op. cit., p.61. 8Idem,
ibidem. 9ARQUIVO SECRETO DO VATICANO – Congregação para as causas dos santos,
Nº 1328, fol. 262, apud PEÑA, O. A. R., op. cit., p.31. 10BUENAVENTURA SALINAS,
apud PONCE, OFM, Emilio Carpio. Vida de San Francisco Solano. Lima: Provincia
Franciscana de los XII Apóstoles del Perú, 2011, p.52.
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