Num trecho do livro “La
Baja Edad Media1”, de autoria de Cristopher Bruck, Professor de História
Medieval da Universidade de Liverpool, está descrito o seguinte fato da vida de
Santo Eduardo, a respeito do qual apresentamos algumas considerações.
A imagem medieval da
pobreza, a realeza e a vontade divina se ilustram na vida do Rei Eduardo, o
Confessor, do século XII.
Essa história narra que
Gila Michael, um irlandês, foi a Roma em busca de remédio, mas São Pedro lhe
disse que sanaria o mal se o Rei Eduardo da Inglaterra o levasse sobre os
ombros desde a Westminster Hall até a Abadia de Westminster.
São Pedro, neste contexto, quer dizer o Papa.
O virtuoso monarca consentiu. Pelo caminho, o intumescido
irlandês sentiu que se afrouxavam os seus nervos e suas pernas se distendiam.
O sangue de suas chagas corria pelos trajes reais, mas o Rei
o levou até o altar da Abadia. Ali chegando, o pobre doente ficou curado;
começou a andar e pendurou as muletas na Abadia, como sinal do milagre.
“Basta o Rei
carregar-te aos ombros”
Como lemos acima, um homem vítima de grave e dolorosa
enfermidade, a qual fazia com que seus nervos se contraíssem, produzindo, com
isso, feridas que dificultavam extremamente seus movimentos. Certo dia, esse
homem conseguiu que o levassem até o Papa para que lhe pedisse a cura. Este
respondeu ao enfermo que ele seria curado, mas para isso era necessário que o
Rei da Inglaterra o pusesse sobre os ombros e o levasse da grande sala de
Westminster até a Abadia, onde por fim encontraria a cura do mal que o
atormentava.
Voltando à Inglaterra, o pobre homem teve certamente de
percorrer longos trajetos, por estradas onde a todo momento estava em risco de
cair em mãos de salteadores. Por outro lado, quanto bom trato e hospitalidade
não terá o viajante recebido nos conventos pelos quais passava. Talvez as
pessoas generosas lhe ofertassem esmolas para assim poder prosseguir a aventura
que consistia tal viagem.
A majestade e
a repugnância se encontram
Tendo chegado, por fim, à Inglaterra, o doente dirige-se ao
palácio real. Alegando trazer uma mensagem pontifícia, ele conseguiu comparecer
à presença do soberano. Imagine-se como terá sido a cena daquele homem chegando
diante do
Rei, o qual provavelmente se encontrava em seu trono,
cingindo o diadema e as vestes reais, resplandecente de majestade, mas ao mesmo
tempo de bondade e afabilidade.
— O que quer? Interroga-lhe o Rei.
— Senhor, eu venho da parte do Papa.
— Então, diga-me do que se trata.
— Ele pede que vós me cureis.
— Mas como poderei fazer isso?
— É ordem do Papa...
Quanto contraste nesta cena! De um lado, o pobre homem,
provavelmente um mendigo, coberto de chagas sangrentas e repugnantes; do outro
lado, o Rei, saudável, presumivelmente jovem e cheio de majestade.
O recado que é transmitido consiste na manifestação do desejo
do Papa de que esse grande monarca, glorioso chefe da nação, carregue ao
pescoço aquele mendigo chagado e purulento, apresentando-se nessa postura
humilhante pelas ruas, ao longo de todo o percurso.
O santo soberano atende o pedido. E, na pequena Londres de
então, o Rei sai de seu palácio, enquanto as sentinelas se perfilam e um arauto
toca trombeta avisando que Sua Majestade vai passar. Provavelmente, nas
ruazinhas estreitas da cidade de Londres, o povo se espanta com a saída do Rei,
sobretudo porque ele não está, como de costume, montado em seu magnífico
corcel, nem tampouco numa carruagem, mas está a pé, sozinho, sem guardas nem
tropas e fazendo-se montar por aquele indivíduo.
Dos mais
belos fatos da monarquia inglesa
Naquela cidade pequena, onde todo mundo se conhece,
certamente o povo deve ter comentado: Logo Gila Michael, esse mendigo
miserável, carregado assim pelo Rei! Nosso augusto Rei, Santo Eduardo, símbolo
da Inglaterra e da virtude da Igreja Católica, ele tão majestoso, digno e
altivo como um lírio, trazendo um mendigo montado sobre si! Que coisa
extravagante!” Enquanto isso, tanto o mendigo quanto o Rei vão rezando, e
pedindo a Nossa Senhora a esperada cura. Atrás do Rei o povo atônito forma um
cortejo que caminha rumo à Abadia de Westminster, a fim de ver qual será o
desfecho daquela curiosa cena.
No caminho, porém, as vestes reais vão se enchendo de pus e
sangue que começam a verter das chagas daquele homem, o qual ao mesmo tempo
começa a sentir que algo nele está se dando.
Ao entrar na Abadia, em meio à expectativa geral, talvez devido
ao fato de o povo pressentir que uma das mais belas cenas da história daquele
recinto estava prestes a acontecer, o monarca dirige-se para junto do altar, lá
tira o precioso fardo de seus ombros e o põe no chão. Então, o homem, que
montando no Rei, vinha trazendo nas mãos suas muletas, larga-as e começa a
andar, pois suas chagas estavam inteiramente secas e ele miraculosamente curado.
Por outro lado, o Rei está com seus trajes gloriosamente
cobertos de sangue e pus. Enquanto se operou por seu intermédio um grande
milagre através do qual a majestade real resplandeceu esplendorosamente num dos
atos mais belos de toda a história da monarquia inglesa.
Belo como
fato ou como lenda
Alguém poderia levantar dúvida sobre a historicidade desse
fato. A meu ver, isto não tem grande importância, pois ainda que venha a ser um
mito ou uma lenda, o importante é ter havido numa determinada época multidões
desejosas de que as coisas tivessem se passado deste modo; caso contrário, nem
mesmo seriam capazes de inventar algo assim.
Pode tratar-se de uma lenda baseada num fato verídico, o qual
foi glosado e embelezado para atender mais plenamente a apetência das pessoas,
porém, o que importa é ter existido um povo que tivesse o estado de espírito
tendente a se entusiasmar com a possibilidade das coisas se passarem desta
forma.
Como vibram de entusiasmo por realidades diferentes as pobres
multidões hodiernas, infelizmente tão massificadas, materializadas e quase
aniquiladas!
Este episódio é indiscutivelmente belo, porém é necessário
fazermos uma análise a fim de que a beleza que nele se encontra não permaneça
apenas como convicção, mas seja fundada no raciocínio, para desta forma
podermos compreender mais profundamente o esplendor da Igreja Católica, sem a
qual tais fatos seriam impossíveis, seriam impensáveis.
A espera só
aos fortes é pedida
O primeiro aspecto encontra-se na Fé daquele homem, que não
hesita em ir candidamente pedir ao Papa um milagre. Por outro lado, também,
quanto prestígio gozava o Papado naquele tempo! Pois, o enfermo foi até ele com
certeza de que seria curado.
Como a Providência tratou a Fé desse homem? Poderia tê-lo
curado logo, mas não o fez. Pelo contrário, inspirou ao Sumo Pontífice de
enviá-lo de volta à Inglaterra para lá ser miraculado. Tal ato de confiança
Nossa Senhora pede aos fortes. Enquanto aos débeis na Fé, a maior parte das
vezes Ela atende imediatamente.
Outro aspecto de beleza é a certeza do pobre homem de que o
Rei Eduardo o iria curar. Caso fosse rabugento poderia pensar: “Por que fui até
Roma se eu tinha tão perto de mim quem me podia curar?” Mas, não possuindo esse
defeito, ele aceitou que Nossa Senhora dispusesse dele como quisesse, indo ter
com o Rei cheio de tranquilidade e uma Fé que move montanhas.
Um rei
“cavalgado” por um mendigo
Chegando à Inglaterra, o mendigo pede a cura apresentando ao
Rei a condição do Papa para alcançar o milagre. Era de que ele “cavalgasse” o
Rei.
A condição não poderia parecer mais extravagante, pois o Rei
podia curar o mendigo ali na mesma hora. Então, por que deixar-se cavalgar por
um doente como aquele? Por outro lado, tratando-se de irem até a Abadia de
Westminster, não podiam os dois para lá se dirigir sentados numa carruagem?
Aquele pedido do Papa, o qual no fundo manifestava o desejo
da Providência, parece ser a inversão de toda a ordem, pois Deus criou os reis
para governar e não para serem montados por mendigos. Isso é uma desordem?
Não, a ordem encontra-se profundamente presente nesse fato.
Por quê?
A grandeza de
se fazer pequeno
Trata-se do seguinte: É lindo o fato de o poder público
dominar, é verdadeiramente maravilhoso e nobre que os inferiores prestem aos
detentores deste poder o respeito que lhes é devido. Sobretudo quando se trata
de alguém que reconhece a origem divina de seu poder.
Mas, é também esplendoroso que, em certas ocasiões, o maior,
às vezes heroicamente, seja pai, amparo e auxílio do menor. Por isso, é bonito
que um rei, homem posto no mais alto píncaro da hierarquia social, se lembre de
que ele é homem como o outro, pois de certa forma todos são iguais. São
desiguais apenas em seus acidentes, os quais por vezes são de uma importância
muito grande, mas, em sua essência, o rei é homem como o outro.
Por causa disso, o maior deve ser capaz de servir o menor,
respeitando assim a qualidade de homem que ambos têm em comum.
Estes são os dois aspectos lindíssimos desse fato: um pobre
resignado, mas que com essa naturalidade e Fé pede ao Rei para que o leve sobre
os ombros; um Rei que reconhece a altura de sua realeza, mas é capaz de dizer:
“Meu filho, pois não. Suba e vamos juntos pedir o milagre que você necessita.”
A maravilhosa
harmonia das desigualdades
Há neste episódio uma harmonia que corresponde à lei profunda
das harmonias, a qual admite que os extremos se toquem: é belo ver a realeza
tocar na mendicância e, assim, ambas se unirem harmoniosamente.
É belo, portanto, ver ambas se aproximarem do altar junto ao
qual está Deus que se encanta ao ver o esplendor daquela obra da qual Ele
próprio é Autor. Ele criou o mendigo e também o rei. Ele quis que no mundo
houvesse realeza, mas também pobreza, sofrimento, dor, doença, mendicância. E
em tudo isso Ele pôs uma harmonia perfeita.
Plinio Correa de Oliveira - Extraído de
conferência de 28/6/1974
1) “La Baja Edad Media”, Ed. Labor, Barcelona, 1968, p. 32.
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