Num período onde o patriciado e
a nobreza romana ganharam novo brilho devido à influência monástica, São
Jerônimo mostrou-se um zeloso apóstolo e um exímio lutador pela glória virginal
de Maria. Dotado por Deus com o carisma da polêmica, ele apontou o mal que há
na heresia para depois falar a respeito da verdade.
Estranho fenômeno para o historiador sem fé: eis que em torno deste
dálmata, na hora onde a Roma dos Césares agoniza, se irradiam subitamente os
mais belos nomes da Roma antiga. Crer-se-ia que eles estavam extintos, desde o
dia onde se tornou obscura entre as mãos dos parvenus da glória a cidade rainha.
Nos tempos críticos em que, purificada pelas flamas que os bárbaros
incendiaram, a capital que eles deram ao mundo vai retomar seus destinos e
reaparece, como por seu direito de nascimento, para fundar novamente a cidade
eterna. A luta se tornou outra, mas seu lugar continua à testa do exército que
salvará o mundo. Raros são entre nós os sábios, os poderosos, os nobres, dizia
o Apóstolo, quatro séculos antes. Numerosos eles são em nosso tempo, protesta
Jerônimo, numerosos entre os monges.
O patriciado e a nobreza ganham novo brilho na
Roma Eterna
O pensamento está expresso com
uma complexidade um pouco século XIX e, portanto, creio que não muito clara
para a geração atual. Mas, em duas palavras, quer dizer o seguinte:
Roma estava decaindo. As
antigas famílias, às quais Roma devia a sua antiga glória política, não a
estavam mais dirigindo devido ao seguinte fenômeno: o pessoal adventício, que
dominara Roma, havia deixado numa certa penumbra as famílias antigas; mas essas
famílias — que no começo do Cristianismo, quando elas dirigiam a sociedade civil,
eram pouco numerosas entre os católicos —, na época de São Jerônimo, no fim do
Império Romano, eram muito numerosas entre eles.
Quer dizer, a nobreza e o
patriciado romanos tinham um papel de vanguarda na direção dessa segunda Roma,
que não era mais a Roma dos Césares, que estava morrendo, mas a Roma dos Papas,
que estava nascendo. E eles se encontravam na liderança da vida religiosa e da
expansão católica no mundo.
A falange aristocrática constituiu o melhor do exército monástico.
Ou seja, o melhor das vocações
para monges era de nobres.
Nesses tempos de sua origem no Ocidente…
Em que o monaquismo, que já
existia no Oriente, começou a nascer no Ocidente
… ela lhe deixará para sempre
seu caráter de antiga grandeza.
O caráter da antiga grandeza
nobiliárquica comunicou algo para a dignidade do monaquismo.
Mas nas suas fileiras, a título igual de seus pais e de seus irmãos, se
veem a virgem e a viúva, ao mesmo tempo o esposo e a esposa. É Marcela, que
será para ele o auxílio na tradução das Escrituras. E, como ela, Fabíola, Paula
e outras que lembram os grandes ancestrais, os Camilii, os Fabii, os Scipiones.
Camilos, Fábios e Cipiões eram
grandes famílias nobres. E, em linguagem mais simples, Dom Guéranger menciona
nobres — como viúvas, virgens, ou esposo e esposa, sendo separado o casal — que
iam viver no estado monástico, conferindo-lhe algo de sua antiga grandeza.
São Jerônimo, vingador da glória virginal de
Maria
Nesta altura, a refutação de Elvidius, que ousava pôr em dúvida a
perpétua virgindade da Mãe de Deus, revelou em Jerônimo o polemista
incomparável, do qual Joviniano, Venâncio, Pelágio e outros ainda teriam que
experimentar o vigor.
Eram hereges que São Jerônimo
fustigou vigorosamente.
Como recompensa, entretanto, de sua honra vingada, Maria conduzia a ele
todas essas almas nobres. Ele as dirigia no caminho da virtude e, pelo sal das
Escrituras, as preservava da corrupção da qual morria o Império Romano.
Então, aqui se completa esse
bonito pensamento que explica a tarefa de São Jerônimo.
Um apóstolo da alta aristocracia
Ele não era apenas o grande
herói que lutava contra os hereges, mas também salvava da podridão o que Roma
tinha de melhor, as antigas famílias aristocráticas, e as conduzia para a
conquista do mundo, para a Roma dos Papas, e não mais para a Roma dos Césares.
O santo realizava isto por meio de assistência espiritual à alta aristocracia
romana, que já não tinha poder político, mas ainda era fabulosamente rica
naqueles tempos.
Qual é a consideração que isto
nos traz ao espírito?
São Jerônimo tinha em mente a
importância das elites para a direção da sociedade. E ele soube compreender que
um movimento católico que vise levar o mundo inteiro para a Igreja, a
cristianização do mundo, deve contar com todas as classes sociais, levando cada
uma a dar o contributo que lhe é específico. Portanto, a classe aristocrática
deve prestigiar a expansão apostólica com o valor do nome, da fortuna, mas
sobretudo com o valor de certo prestígio indefinido, que se ligava merecidamente
às grandes famílias da aristocracia romana.
Quer dizer, ele compreendeu
que, acionando as classes mais influentes, havia um meio para acionar toda a
sociedade e para obter a cooperação dela para a luta pelo Reino de Cristo.
Austero, polemista e zeloso pela glória de Deus
No breviário antigo consta um
elogio a São Jerônimo, que convém comentar:
Molestou os hereges com acérrimos escritos.
Existiram santos dotados de
carismas extraordinários para a posição polêmica. Um deles foi São Jerônimo. De
fato, ele representa, por excelência, na Igreja, o espírito da polêmica. Os
seus escritos são de uma energia, para não dizer de uma violência, que
pareceria desabotoada se não fosse ele um santo. E para as menores questões ele
dava respostas de fogo tremendas, e deixava todo mundo tremendo diante dele.
Certa ocasião, Santo Agostinho
chegou a escrever-lhe uma carta muito engraçada, dizendo que, com metade da
energia empregada, já cederia diante de São Jerônimo. Li uma missiva de São
Jerônimo a uma dirigida dele, uma santa, que lhe mandou, aliás, um lindo
presente: pombinhos e cerejas; e ele respondeu perguntando se ela queria
corromper a austeridade dele, e afirmou que imediatamente deu aquilo para os
pobres, porque era um homem penitente.
Isto é o zelo da Casa de Deus,
que devora o homem, uma das formas mais características, portanto, das mais
santas, mais legítimas dessa virtude. Desde que seja feito por amor de Deus, e
não por ressentimentos pessoais — porque com ressentimentos a coisa muda de
aspecto —, isto é uma coisa santíssima, é ser um gládio vivo de Deus. Não
conheço elogio maior do que dizer de alguém que ele é a espada viva de Deus.
A polêmica visa sobretudo influenciar os
indecisos
Em matéria de polêmica, é
preciso sempre prestar atenção no seguinte: os espíritos modernistas consideram
a existência de duas figuras, uma que diz “A” e outra que diz “B”; eles não
tomam em consideração um terceiro elemento, que é talvez o mais importante no
caso: o público que assiste à discussão.
Toda polêmica, ainda que seja
feita a portas fechadas, vai repercutir fora e atuar sobre pessoas que estão na
dúvida, e que se trata de convencer.
Quando se discute, por exemplo,
com um pastor protestante, o mais importante não é convertê-lo, mas evitar que
os católicos fiquem protestantes. Em segundo lugar, converter os protestantes
menos empedernidos que ali estão. E por fim converter o pastor.
Ao homem em risco fala-se usando a linguagem do
medo
Imaginemos que um amigo nosso
esteja se debruçando perigosamente sobre um parapeito pequeno que dá para um abismo.
Nós não lhe diremos: “Fulano, venha para cá, porque o chão é de mármore!” Mas
falaremos: “Cuidado! Caindo nesse abismo você arrebenta a cabeça!” Porque o
modo de afastar um indivíduo imediatamente do perigo e da imprudência é
mostrar-lhe o mal que lhe sucederá e não o bem.
Quem de nós haveria de dizer
para uma pessoa que, por exemplo, está brincando com um revólver
imprudentemente: “Fulano, você quer ir jogar xadrez?”, para ver se ele tira o
dedo do gatilho e depois lhe tiramos o revólver. Seria de nossa parte uma
atitude idiota. Poderíamos falar-lhe: “Fulano! Olhe esse revólver! Você pode se
ferir gravemente ou me ferir!”
Quer dizer, normalmente, ao
homem em risco, tentado, deve-se falar usando a linguagem do medo. Isto é,
sobretudo, verdadeiro no que diz respeito à Doutrina Católica, porque os
homens, pela sua maldade, são mais fáceis de se mover pelo medo do Inferno, do
que pela apetência do Céu; pelo temor das más consequências, do que pelo bem
que pode acontecer. E é preciso, portanto, como remédio de urgência, apontar o
mal, a falsidade, que há no erro para depois falar a respeito da verdade.
Assim se compreende a posição
polêmica de São Jerônimo.
Plinio Correa de Oliveira - Extraído de conferências de
30/9/1964 e 29/9/1966
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