Quando São Tomé
inquiriu Nosso Senhor acerca do rumo que deveriam tomar seus discípulos para
seguir suas pegadas, Jesus não indicou outro caminho senão a Si mesmo: “Eu sou
o caminho, a verdade e a vida” (Jo 16, 6). Ensinava assim o Mestre que Ele
personificava a doutrina que pregava. Nesse sentido, algo análogo pode ser dito
dos fundadores das Ordens Religiosas, cuja espiritualidade própria a cada
carisma é o sendeiro por onde seus filhos devem trilhar para o cumprimento da
sua vocação.
Exemplo paradigmático
foi Santo Inácio de Loyola, que almejou a santidade com todas as veras de seu
coração e soube “formar a mentalidade de seus seguidores de acordo com o que
hauriu da Igreja, encaminhando-os à perfeição. E os jesuítas, por sua vez,
procuravam se conformar a Santo Inácio, tendo não poucos alcançado de fato a
heroicidade de virtudes”.1 Um desses foi São João Berchmans.
Concepção séria da vida desde a infância
Primogênito de cinco
irmãos, nasceu em Diest, a 13 de março de 1599, no seio de fervorosa família
católica, recebendo o Batismo logo no dia seguinte. As guerras, que ao longo do
século XVI semearam a destruição em toda a região dos Países Baixos, não
pouparam os ilustres Berchmans da pobreza. O pai, curtidor de peles, chegou até
a ter que exercer o humilde ofício de sapateiro, enquanto a mãe, acometida de
uma paralisia, via-se obrigada a guardar o leito. Nessas circunstâncias, a
educação do pequeno João e de seus irmãos foi entregue aos cuidados de umas
tias religiosas. O fato de ter conhecido de perto as dificuldades dos pais na
manutenção do lar ajudou a dar-lhe, desde bem pequeno, “uma concepção da vida,
se não severa, pelo menos muito séria”.2
Com apenas seis anos
de idade ingressou na Klyne school, transferindo-se pouco tempo depois para a
Grande École. No caminho para as aulas, seu olhar infantil contemplava um
espetáculo cotidiano de ruínas. No meio delas, perto do velho mercado,
erguia-se a imponente Igreja de Saint Sulpice, onde fora batizado. Todos os
dias o menino ali entrava para rezar. Um sacerdote convidou-o para ser coroinha
e a partir daí começou a desabrochar no pequeno João seu entusiasmo pelo
serviço do altar.
Quando completou dez
anos, estava claríssima sua propensão ao sacerdócio. A mãe, desapegada do filho,
aceitou seu afastamento e foi ele confiado ao cônego Pierre van Emmerick,
excelente educador e pároco de Notre Dame de Diest, que lhe proporcionou boa
formação intelectual e religiosa. Com o passar do tempo o jovem se revelava
cada dia mais humilde e solícito, bem como inteligente, aplicado e dócil.
Encontro com a vocação religiosa
Aos 13 anos, devido à
difícil situação econômica familiar, o pai o chamou para ajudá-lo no trabalho.
O rapaz, todavia, suplicou-lhe: “Pai, não me impeça de continuar meus estudos;
viverei de pão e água, mas deixe-me ser sacerdote”.3
A Providência
interveio em seu favor: a pedido de suas tias religiosas, o capelão da
comunidade o recebeu em sua casa, ainda que por pouco tempo, pois o cônego
Frans van Groenendonk, amigo da família, julgava que tão brilhante aluno
deveria ir para a Grande École de Malines. Os pais aquiesceram e ele para lá se
dirigiu, alojando-se como empregado doméstico na casa do cônego e grande cantor
da Catedral de Saint Rombaut, o qual arcava com as despesas de seus estudos.
Representou uma
considerável mudança de horizontes ir da interiorana Diest para Malines, naquele
tempo cidade importante e com ares de capital. De dia servia a seu mestre e à
noite estudava, à luz de uma simples vela, no sótão onde dormia. Nessa rotina
foi forjando e temperando a vontade, sem deixar macular a espontaneidade de sua
alma inocente.
Em 1615, a abertura
de um colégio jesuíta na cidade provocou uma grande evasão de alunos das outras
instituições educacionais para o novo educandário, entre eles João Berchmans,
que ali se matriculou no curso de retórica. Firme nos ensinamentos recebidos desde
a infância e ávido de uma vida disciplinada, traçou para si um programa de
conduta, tendo como pontos principais: “a cada dia a Missa, a recitação do
Rosário e do Pequeno Ofício da Santíssima Virgem; Confissão semanal e — o que
era muito para a época — a Comunhão a cada 15 dias”.4
A leitura da vida de
Luís de Gonzaga o entusiasmou; tomou a resolução de fazer-se religioso e
escreveu aos pais: “depois de muitas comunhões e de boas obras preparatórias,
decidi-me e fiz o voto de, pela graça de Deus, nosso Mestre, servi-Lo na vida
religiosa”.5
A primeira grande prova
Isso trouxe uma
tremenda decepção para o senhor Berchmans, que partiu para Malines, a fim de
impedir a realização dos propósitos do filho. Se ao menos ele se doutorasse na
Universidade de Louvain, poderia ajudar a família! Fazendo valer sua
autoridade, levou João aos padres capuchinhos, pedindo-lhes para examinarem a
autenticidade de sua vocação. Estes, porém, não puderam deixar de reconhecer o
apelo divino, e encorajaram o jovem em seu intento. Houve ainda troca de cartas
entre Malines e Diest, mas o tempo acalmou os ânimos. Estava vencida esta
grande prova inicial.
João concluiu como
primeiro aluno o curso de retórica e, aos 17 anos, bateu à porta do noviciado
da Companhia de Jesus. Seu coração palpitava de ardor missionário: queria ir
encontrar-se com os filhos de Santo Inácio nas terras longínquas da Índia, do
Japão, da China e das Américas; e com esse objetivo desejava estudar para conhecer
com profundidade a beleza dos tesouros da doutrina da Igreja, chegando a ser um
notável teólogo. Tão feliz se sentia por ter sido admitido como noviço jesuíta
que chorou de alegria.
Frère Hilarius
No noviciado, a
rigorosa disciplina espiritual vai esculpir e burilar sua personalidade,
pondo-lhe as rédeas da alma nas mãos. Sua fé intrépida e a fidelidade
inquebrantável à Regra, unidas a uma requintada delicadeza de coração, refulgem
em toda a sua pessoa.
Após um ano de
noviciado, o superior confiou-lhe o cargo de prefeito dos noviços. Quando era
necessário impor um trabalho desagradável, ele o pedia com uma palavra tão
amável e um sorriso tão franco que a resistência se tornava impossível. E se
tinha uma reprimenda a fazer, jamais abordava o companheiro sem antes haver
rezado.
Seus confrades o
chamavam de Frère Hilarius — Irmão Alegre —, pois rejeitava energicamente
qualquer sombra de tristeza ou melancolia. Sua grande mortificação consistia na
vida comum, na dupla acepção do termo: o cotidiano e a exímia fidelidade à
Regra em todos os atos da comunidade, em perfeita e contínua obediência.
Em setembro de 1618,
emitiu os votos solenes e escreveu ao pai: “Eu morrerei sobre a Cruz de Jesus,
nela pregado pelos três cravos da pobreza, da castidade e da obediência. Quão
doce é morrer na Companhia de Jesus, nos braços de Jesus. Alegrai-vos: vosso
filho viverá nesta morte e viverá feliz”.6
Defensor da Imaculada Conceição
Apesar de sua
firmeza, experimentava o medo espiritual de não perseverar na vocação, o que na
verdade era a desconfiança de si mesmo. E é junto à Virgem que ele encontra a
paz. “Se amo a Maria, estou seguro de minha salvação, de minha perseverança no
estado religioso, e obterei de Deus tudo quanto quero”.7 E ele não queria senão
a santidade.
Ainda no noviciado,
pronunciara um voto de devoção a Nossa Senhora, segundo um costume na época; e
em 1620, já no último ano de sua vida, escreveu de punho e letra um novo voto
em defesa da Imaculada Conceição, assinando-o com o próprio sangue. Até hoje
esse documento se conserva em um relicário, no Colégio São João Berchmans de
Bruxelas.
Segundo o Cardeal
João de Lugo, jesuíta e eminente teólogo contemporâneo do Santo, “não se teria
conseguido, sem a influência sobrenatural desse jovem estudante jesuíta de
Roma”,8 a promulgação do decreto de 24 de maio de 1622, no qual o Papa Gregório
XV prescreveu: “Ninguém afirme, verbalmente ou por escrito, em público ou em
privado, sob pena e censura gravíssima, nada contrário à Imaculada Conceição”.9
Foi este um importante passo para a solene proclamação do dogma, feita dois
séculos e meio mais tarde pelo Beato Pio IX.
No Colégio Romano
No mesmo ano em que
fez os votos solenes, seu superior o mandou estudar filosofia no Colégio de
Antuérpia. Entretanto, sua inteligência e aplicação determinaram o Padre
Provincial a transferi-lo para o Colégio Romano, atual Universidade Gregoriana.
Ali, uma grande
alegria lhe encheu a alma: a cela do Bem-aventurado Luís de Gonzaga lhe fora
atribuída. Coincidência... ou Providência? Sua chegada causou viva impressão
aos professores e alunos. Entre estes, comentava-se: “Chegou um pequeno
flamengo com ares de anjo”.10 Sua única obrigação agora era estudar, e a isso
se dedicou com todas as suas energias.
Ânimo e alegria na enfermidade
No começo de sua vida
religiosa ele se interrogava: “Com tantos meios que me serão oferecidos, como
não chegar à mais alta santidade?”. E, profeticamente, dizia: “Se não me
santifico em minha juventude, os anos não me trarão a santidade”.11 O Senhor
concedeu-lhe a graça de chegar ao heroísmo das virtudes com apenas 22 anos de
idade.
Julgava-se um pecador
e se submetia a austeras privações em matéria de alimento. Como se admirar de
que isto, somado a tantos esforços intelectuais e morais, lhe debilitasse a
saúde? Assim, no fim de 1620, João viu-se em face da enfermidade.
Enquanto a doença
minava seu corpo, ele travava uma grande luta interior para manter a
serenidade. Seu diário de notas íntimas revela a tremenda aridez pela qual
passava. Em meados de dezembro, Deus recompensa sua severidade para consigo,
concedendo-lhe uma grande consolação, “um rio de paz”.12 No último dia do ano
ele reconhece seu progresso no completo abandono nas mãos do Criador: “Não
creio que seja mais apegado a qualquer coisa”.13 E em abril seguinte, manifesta
sua inteira impassibilidade no tocante à saúde: “Antes morrer do que ser
obrigado, pela preocupação com minha saúde, a renunciar a qualquer coisa do
ideal de santidade ao qual Deus me chama”.14
Embora debilitado,
prestou em julho, com grande êxito, o exame público conclusivo do ano de
filosofia. E em princípios de agosto, designado pelos superiores, representou o
Colégio Romano na defesa de sua tese, no Colégio Grego. Desempenhou-se com
tanto brilho que o auditório o aclamou encantado. No dia seguinte, acometido
por uma
violenta febre, foi transportado para a enfermaria, de onde não mais saiu.
Integridade de alma até o fim
Reinava a inquietação
no Colégio Romano: professores, alunos e até os médicos mostravam-se comovidos.
No dia 10 de agosto,
agravou-se o mal do jovem Berchmans. As visitas se sucediam e o enfermo
consolava os visitantes, falando-lhes das alegrias do Céu. Na madrugada
seguinte, recebeu o Santo Viático e improvisou uma profissão de Fé. Foi-lhe
administrada a Extrema Unção e, segundo o costume da Companhia, ele se acusou
publicamente das faltas contra a Regra, calmo e imperturbável. No ouvido do
Padre Reitor, porém, confidenciou que sua grande consolação era a de nunca
haver cometido um pecado venial deliberado, durante sua vida de religioso.
Adentrava-se a
derradeira noite. O santo enfermo começou a agitar-se e exclamou de súbito, com
a fisionomia alterada: “Não! Não! Não farei! Isso jamais... Mil vezes não!
Fora, satanás!”.15 Mistério da luta final... Todos os presentes redobraram as
orações e aspergiam o leito com água benta. Empunhando seu Rosário e seu
Crucifixo, João disse: “Eis as minhas armas!”.16 Abriu, em seguida, o livro da
Regra e recitou com piedade a fórmula dos votos, omitindo as palavras “a fim de
nela passar o resto de meus dias”. Estava na plena posse de sua consciência.
Chegara o dia 13 de
agosto de 1621. Amanhecia e, como precisava sair para celebrar sua Missa, o
Padre Reitor se aproximou do catre do moribundo e rogou-lhe que não morresse
antes do seu retorno. Irmão João assentiu, em sinal de obediência. E quando ele
regressou, o Santo manifestou ainda uma vez a alegria de haver obedecido, e
pediu que os presentes recitassem a Ladainha de Nossa Senhora. Era por volta
das 8 horas da manhã e suas últimas palavras foram Jesus e Maria. Nas
invocações Sancta Virgo Virginum e Mater Castissima, inclinou a cabeça, em
sinal de veneração, e expirou com os olhos fitos no Crucifixo.
Uma multidão afluiu
ao Colégio Romano para prestar-lhe a extrema homenagem. Sua batina foi feita em
pedaços. Por duas vezes tiveram que revestir o cadáver. Todos queriam uma
relíquia do jovem santo jesuíta. Um cego recuperou a vista e as graças se
multiplicaram. O Papa Leão XIII o canonizou em 15 de janeiro de 1888.
São João Berchmans passou
com admirável serenidade por tudo quanto se pode chamar de decepções humanas:
não teve tempo de ser missionário, nem foi o grande teólogo almejado. Mas
realizou plenamente seu ideal sobrenatural: “Quero ser Santo, um grande Santo e
em pouco tempo”!17
1 CORRÊA DE
OLIVEIRA, Plinio. Santo Inácio de Loyola. Alma repleta de lógica e enlevo. In:
Dr. Plinio. São Paulo. Ano IX. N.100
(Jul., 2006); p.62.
2 HOORNAERT. Introduction. In: LIOBA, Marie. Le vrai visage de Saint Jean Berchmans. Bruges: De
la Vigne, 1962, p.18.
3 LIOBA, op. cit., p.36.
4 Idem, p.40.
5 Idem, p.42.
6 Idem, p.48.
7 Idem, p.50-51.
8 GONZÁLEZ VILLANUEVA, Joaquín. San Juan Berchmans.
In: ECHEVERRÍA, Lamberto de; LLORCA, Bernardino; REPETTO BETES, José Luis. Año Cristiano.
Madrid: BAC, 2005, v.VIII, p.418.
9 REYES PEÑA, Mercedes de los. Un pasquín
anti-inmaculista en la Sevilla del primer tercio del siglo XVII. In: REYES
CANO, Rogelio; REYES PEÑA, Mercedes de los; WAGNER, Klaus (Eds.). Sevilla y la
literatura: homenaje al Profesor Francisco López Estrada en su 80 cumpleaños. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2001, p.143.
10 LIOBA, op. cit., p.57.
11 Idem, p.73.
12 Idem, p.76.
13 Idem, p.77.
14 Idem, p.78.
15 Idem, p.90.
16 Idem,
ibidem.
17 Idem, p.47.
Irmã Juliane Vasconcelos Almeida Campos, EP –
Revista Arautos do Evangelho n.140 ago 2013
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