Canonizado em 3 de abril, São
José de Anchieta reúne em sua personalidade inúmeras qualidades próprias à
grande missão a que estava destinado. Aliou grandes virtudes a relevantes
talentos naturais como mestre, gramático e artista. Ensinou aos índios os
ofícios de pedreiro, carpinteiro e ferreiro, além de ajudá-los como enfermeiro.
Seu ardor apostólico lhe valeu o elogio de “zeloso salvador 1 das almas”, feito
pelo Beato Inácio de Azevedo, seu contemporâneo. No entanto, seu mais famoso
título é o de “Apóstolo do Brasil”, dado pelo Administrador Apostólico
Bartolomeu Simões Pereira, Prelado do Rio de Janeiro, em sua homilia durante as
cerimônias fúnebres do Santo.
Um dos mais conhecidos milagres
Os relatos de sua vida são
ricos em milagres, alguns dos quais bem conhecidos, como a ressurreição do
índio Diogo. Este nativo morreu na vila de Santos, na casa do nobre Domingos
Dias, e todos o tinham por católico. Algo surpreendente se passou no velório: o
corpo do Diogo se moveu, causando grande espanto entre os presentes.
Aproxima-se então Grácia Rodrigues, a senhora da casa e uma das testemunhas que
prestaram juramento a respeito da veracidade do fato, e o índio lhe pede para
chamar o padre Anchieta, a fim de ser batizado. Segundo ele, o Santo viera-lhe
ao encontro, mandando que retornasse à vida.
Todos responderam ser
impossível, pois o sacerdote se encontrava em São Vicente. Replicou Diogo
dizendo estar o santo a apenas duas léguas de distância, perto de um riacho.
Apesar de perplexos, alguns foram rapidamente ao local, encontrando Anchieta já
a caminho. Quando chegou, o missionário ordenou ao índio que dissesse em
público o motivo de sua ressurreição.
Então ele passou a narrar que
os portugueses o haviam instruído na Fé cristã, sem contudo batizá-lo. Ele pensou
não ser necessário o Batismo, sendo suficiente levar uma vida correta. Entre as
abundantes lágrimas dos presentes, o Santo batiza-o e diz ter sido bem
empregado todo o esforço de sua vida apenas para salvar esta alma.
Título singular recebido em Coimbra
Além de fatos extraordinários
como esse, há aspectos menos conhecidos desta grande personalidade, como o de
ser hábil poeta, cujas obras, feitas nas circunstâncias mais difíceis,
manifestam o inegável talento dessa alma inocente. Qualidade essa favorecida
pela formação recebida em sua juventude.
Nascido a 19 de março de 1534,
em San Cristóbal de La Laguna, na ilha de Tenerife, uma das principais do
famoso arquipélago das Canárias, José de Anchieta em sua primeira infância
recebeu a formação dos padres dominicanos na cidade natal. Com 14 anos, embarcou
para Portugal, ingressando no prestigioso e recém-formado Real Colégio das
Artes, em Coimbra, orgulho do Rei Dom João III, que não poupou meios
financeiros para dotá-lo dos melhores professores da Europa.
O jovem José aí se distinguiu
por sua habilidade na língua latina e a facilidade em compor versos. Durante
esses anos de estudos, Anchieta foi cognominado pelos amigos e professores de
“Canário de Coimbra”,2 em alusão ao melodioso canto desse pássaro e ao
arquipélago de sua proveniência. Mal sabia ele o quanto esse dom lhe seria um
útil instrumento de evangelização no longínquo Brasil...
Antes mesmo de se tornar
religioso, José consagrou sua virgindade a Nossa Senhora na Catedral de
Coimbra. Posteriormente, em 1551, entraria para a Companhia de Jesus, que havia
recebido a aprovação pontifícia em 1540.
Devido a problemas de saúde e
seu ardente desejo apostólico, os médicos consideravam o clima brasileiro
propício à sua saúde. Assim, contando apenas 19 anos de idade, chegou ele ao
Novo Continente, ao qual consagraria os 44 anos restantes de sua vida.
Todos corriam para a catequese
Ao se defrontar com a realidade
do Brasil, Anchieta soube se fazer pequeno com os pequenos, para assim
torná-los grandes na ordem espiritual. O Canário de Coimbra, que compunha
poemas latinos em estilo clássico com toda facilidade, agora se empenha em
aprender a língua nativa, o que consegue em poucos meses. Escreveria ele uma
gramática tupi, facilitando o trabalho dos demais missionários.
Diversas vezes em suas cartas,
o Santo se refere à candura dos índios e ao modo admirativo com que ouviam as
pregações. Anchieta ganhara o coração deste povo com uma catequese simples e
direta.
Empenhou-se ele em escrever
versos, que logo se transformaram em cantos populares na boca dos índios,
transmitindo a verdade da Fé de forma inocente. Mais bonitos ainda eram os
versos declamados nas peças teatrais. Anchieta não só redigia os textos, mas
montava o cenário e treinava os atores, sem negligenciar os mínimos detalhes,
para que a população assistisse com agrado à catequese. Nas representações
teatrais, todos acorriam à Igreja, deixando as aldeias vazias. Desta forma, o
Santo fazia com que os espíritos daqueles novos católicos se elevassem
contemplando as maravilhas da Fé.
Entre as mais famosas peças
encontra-se a de São Lourenço, provavelmente apresentada em Niterói, a 10 de
agosto de 1583, na qual figuram Anjos, demônios, imperadores romanos, São
Lourenço, São Sebastião — padroeiro do Rio de Janeiro —, e personagens como o
Temor de Deus e o Amor a Deus. Os assistentes ficavam na ponta dos pés de
entusiasmo, tudo sendo interpretado pelos próprios nativos.
Podemos imaginar a reação do
auditório ao ouvir as seguintes palavras pronunciadas em língua tupi pelo Anjo
da Guarda, logo após aprisionar os demônios: “Alegrai-vos, / filhos meus, por
mim. / Aqui estou para vos proteger. / Vim do Céu / para junto de vós / a
ajudar-vos sempre. / Iluminando esta aldeia / junto de vós estou. / Não me
afastarei daqui. / De custodiar a aldeia / encarregou-me Nosso Senhor”.3
O enorme esforço para a
realização de obras desse porte, com os parcos recursos disponíveis, era
recompensado pelos frutos espirituais colhidos naquelas almas sedentas de Deus.
Versos que se tornavam o encanto dos índios
Os cânticos com rimas
improvisadas eram muito do agrado dos indígenas. E ainda hoje, no imenso
Brasil, em algumas regiões se observa a herança desse costume em canções
populares.
Esta forma de cântico requer
destreza de pensamento, a qual nunca faltou ao Canário de Coimbra. Acompanhando
os gostos daquelas almas, Anchieta escrevia versos que se tornavam o encanto
dos índios.
Um bom exemplo desse tipo de
literatura encontramos na poesia composta em honra de Santa Inês, em simples
quadras rimadas, que mostram a candura de sua alma:
“Cordeirinha linda, / como
folga o povo, / porque vossa vinda / lhe dá lume novo. / Cordeirinha santa, /
de Iesu querida, / vossa santa vinda / o diabo espanta. / Por isso vos canta, /
com prazer, o povo, / porque vossa vinda / lhe dá lume novo”.4
As encenações teatrais, os
poemas, as cantigas, tudo tinha como objetivo a glória de Deus e o bem das
almas. São José de Anchieta elevava os índios de sua vida banal para os
grandiosos panoramas da fé. Em suas cartas, mais de uma vez declara que essas
pobres almas muitas vezes se adiantavam na prática da Fé Católica aos seus
colonizadores. Eram as graças dispensadas pela Divina Providência a esta nação
nascida sob o signo da Cruz de Cristo estampada nas naus de Cabral.
O eficaz apostolado realizado
por Anchieta defluía de sua santidade. Eram justamente a vida ilibada do
apóstolo e a sabedoria de suas palavras que moviam os índios à conversão, como
atesta este bonito fato narrado por Pero Rodrigues, contemporâneo do Santo:
“Ouvindo-o um dia pregar, uma mulher simples, com muita devoção, usou desta
semelhança: ‘o Espírito Santo põe na boca do padre o que há de dizer, assim
como a pomba na boca do filhote o que há de comer’”.5
Cativo na “cova dos leões”
Podemos pensar ter São José de
Anchieta escrito seu mais belo poema em um momento de reflexão e de calma. Mas
não foi assim.
Os calvinistas de origem
francesa estabelecidos no Rio de Janeiro, em 1555, haviam feito acordo com os ferozes
tamoios contra os portugueses estabelecidos ao sul. E para evitar ataques que
poderiam causar pavorosos estragos tanto entre os portugueses como entre os
índios católicos, procurou-se chegar a um armistício com os tamoios. A fim de
garantir as negociações de paz, ofereceram-se como reféns o padre Manuel da
Nóbrega acompanhado por José de Anchieta, que nessa época ainda não era
sacerdote, mas já se tornara modelo de virtude que inspirava respeito e
admiração até nos inimigos.
Para tal, a 7 de maio de 1563,
desembarcam os dois religiosos em Iperoig, atual Ubatuba. Entre as ameaças que
sofreram, conta-se uma ocorrida na véspera da Solenidade de Corpus Christi, no
dia 9 de junho. Enquanto passeavam pela praia, o padre Nóbrega e Anchieta
avistaram no horizonte uma pequena embarcação suspeita e correram para alertar
o cacique Pindobuçu, que atuava como seu protetor, mas não o encontraram.
Quando os malfeitores,
liderados pelo índio Paranapuçu, desembarcaram com intenção de matar os
religiosos, se depararam com eles rezando de joelhos diante de uma imagem
de Nossa Senhora e desistiram de seu intento. Paranapuçu confessaria mais tarde
que seu coração se transformou ao ver os missionários e perdeu completamente a
força diante deles.
Pouco depois, em 21 de junho, o
padre Nóbrega teve que retornar a São Vicente, a fim de adiantar as negociações
de paz e Anchieta permaneceu sozinho por mais três meses no cativeiro como um
Daniel na cova dos leões, amansando-lhes os corações.
Puro de corpo e livre no espírito
Enganar-nos-emos se pensarmos
que o cativeiro de São José de Anchieta e a perspectiva de uma morte violenta a
qualquer momento fossem para ele causa de temor e angústia. Pelo contrário, ele
estava sempre disposto a entregar de bom grado sua vida e regar as terras
brasileiras com seu sangue se o sacrifício servisse para obter almas cristãs
que servissem Nosso Senhor.
O próprio padre Nóbrega se
lamenta por ter deixado Anchieta sozinho, sabendo que a qualquer
desentendimento entre as partes do armistício seria o suficiente para que o
Santo perdesse a vida. Numa das cartas que o padre Nóbrega dirigiu ao Santo,
assim se expressou: “Irmão, se ainda estais vivo...”.6 E estava! Vivo para
Deus, pois a cada dia vencia uma batalha mais terrível.
Anchieta havia consagrado sua
pureza à Virgem Santíssima e queria preservá-la intacta a todo custo.
Consideremos, entretanto, a situação em que ele se encontrava durante o
cativeiro e as provocações a que se expunha a cada momento. Certa noite estava
rezando diante de um crucifixo. Aproximou-se, então, uma índia com intenções
bem definidas e encontrou Anchieta de joelhos, imóvel. Chamou-lhe pelo nome,
mas ele não respondeu. Depois de muito insistir, ela diz: “Estás vivo, ou
morto?”. E o santo respondeu com voz firme: “Estou morto...”. Estava, de fato,
morto para o pecado e vivo para Deus. A resposta foi pronunciada com tanta
seriedade que a índia fugiu, gritando pela aldeia: “O Deus deste abaré [padre
em língua tupi] me persegue e me quer matar”.7
O mais belo dos poemas do Santo
Mas o fator decisivo para
manter sua integridade encontra-se na devoção a Nossa Senhora. Foi justamente
neste cativeiro, correndo riscos físicos e espirituais, que o Canário de
Coimbra escreveu seu mais belo canto: o Poema à Virgem.
São José de Anchieta prometeu à
Mãe de Deus compor um poema em sua honra, caso sua alma saísse incólume de
todos os perigos morais. E enquanto seu corpo era cativo dos tamoios, sua alma
voava livre na contemplação da Rainha dos Céus.
Nas palavras do Prof. Plinio
Corrêa de Oliveira, “ele soube encontrar acentos próprios, para louvar a mais
elevada das criaturas, Aquela que, cantada pelos profetas já antes de seu
nascimento, viu-se chamar Bem-Aventurada por todas as gerações que Lhe sucederam”.8
Sobre a areia úmida da praia,
traçava cuidadosamente os versos de seu poema em língua latina. Contam os
índios que, enquanto ele escrevia, uma graciosa ave lhe pousava nos ombros como
a inspirar-lhe a composição. Teve de memorizar os quase 5.800 versos, compostos
ao longo de quatro meses, pois ali não havia tinta nem papel. Somente depois de
liberto, Anchieta conseguiu transcrevê-los.
O epílogo deste poema é
belíssimo e mostra a alma já vitoriosa de Anchieta: “Eis os versos que outrora,
ó Mãe Santíssima, / Te prometi em voto, / vendo-me cercado de feros inimigos, /
pobre refém, tratava as suspiradas pazes, / tua graça me acolheu / em teu
materno manto / e teu véu me velou intactos corpo e alma. / A inspiração do
Céu, / eu muitas vezes desejei penar / e cruelmente expirar desejei em duros
ferros. / Mas sofreram merecida repulsa meus desejos: / só a heróis / compete
tanta glória”.9
A devoção de São José de
Anchieta a Nossa Senhora, tão filialmente refletida naqueles versos escritos na
praia, mais do que nas areias, ficou gravada no coração do Brasil e de filhos
que se tornaram profundamente marianos. Sem dúvida, o mais belo canto do
Canário de Coimbra foi ter ensinado a devoção a Maria Santíssima ao povo
brasileiro.
1 AZEVEDO, SJ, Inácio
de, apud VICE-POSTULAÇÃO DO V. P. ANCHIETA. Vida Ilustrada do V P. . José de
Anchieta, da Companhia de Jesus. Apóstolo do Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro:
Aparecida, 1939, p.112.
2 VICE-POSTULAÇÃO DO V.
P. ANCHIETA, op. cit., p.13.
3 SÃO JOSÉ DE ANCHIETA.
São Lourenço, apud THOMAZ, Joaquim. Anchieta. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército, 1981, p.122-123.
4 SÃO JOSÉ DE ANCHIETA.
A Santa Inês, apud: MAIA, SJ, Pedro Américo. José de Anchieta, o apóstolo do
Brasil. São Paulo: FTD, 1997, p.45.
5 RODRIGUES, Pero. Vida
do Padre José de Anchieta. L.I, c.5.
6 NÓBREGA, SJ, Manuel
da. Carta, apud VIOTTI, SJ, Hélio Abranches. Anchieta: o apóstolo do Brasil.
2.ed. São Paulo: Loyola, 1980, p.101.
7 ASV. Cong. Rit.
Anchieta, n.306,296-297, apud VIOTTI, op. cit., p.100.
8 CORRÊA DE OLIVEIRA,
Plinio. Discurso na Assembleia Nacional Constituinte sobre o padre Anchieta, seção de 17 de março de 1934. In: Opera Omnia. Reedição de
escritos, pronunciamentos e obras. São Paulo: Retornarei, 2009, v.II, p.62.
9 SÃO JOSÉ DE ANCHIETA.
De Beata Virgine Dei Matre Maria, v.5.777-5786, apud VIOTTI, op. cit., p.102.
Thiago
de Oliveira Geraldo. Revista Arautos do Evangelho jun 2014
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