“Bem-aventurados os puros de coração, porque
verão a Deus” (Mt 5, 8). Talvez seja esta uma das mais belas frases do
Evangelho, e uma das mais conhecidas. Entretanto, nem sempre atinamos com o
significado mais profundo visado pelo Divino Mestre ao pronunciá-la. Decerto
não se referia Ele só à pureza dos Santos no Céu, nem àquela pela qual o
coração, já aqui na Terra, está continuamente à procura de Deus, mas também à
visão que o inocente possui de todas as criaturas, discernindo nelas um reflexo
do Criador.
Ora,
segundo Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e outros Doutores, é possível ao
homem começar a gozar, ainda nesta vida, dos prêmios prometidos no Sermão da
Montanha. Acerca da recompensa dos puros, escreve o Doutor Angélico: “Com a
visão purificada pelo dom da inteligência, Deus pode, de certo modo, ser
visto”.1
Se
todos os Santos alcançam esta singular virgindade de espírito, em alguns ela
parece brilhar com maior esplendor, servindo de modelo a ser imitado. Tal se dá
com São Geraldo Majela, que em sua curta existência de apenas 29 anos legou à
Igreja um exemplo vivo desta bem-aventurança. “Ó meu Deus, de todas as virtudes
que Vos são agradáveis, a minha preferida é a pureza de coração”2 — escreveu
ele.
Ao
percorrermos sua história, analisando suas virtudes, seus milagres e,
sobretudo, os terríveis sofrimentos que teve de enfrentar, temos a impressão de
contemplar um cristal puríssimo atravessado por intensos raios do Sol: sua alma
deixou passar a luz divina sem opor-lhe resistências. Por isso, pôde ele, ainda
neste vale de lágrimas, “ver a Deus”!
Um menino predestinado
Último
filho de uma piedosa família, Geraldo nasceu na pequena cidade de Muro Lucano,
próxima de Nápoles, em abril de 1726. Desde muito jovem deu manifestações de
ser uma alma predileta da Providência: nunca pedia alimento e, em alguns dias
da semana, chegava a rejeitá-lo, prenunciando os jejuns que haveria de praticar
mais tarde e sua célebre máxima: “O amor a Deus não entra na alma se o estômago
está cheio”.3
Seu
principal passatempo consistia em erigir pequenos altares, adornando-os com
velas e flores; mas seu local preferido era a capela de Capodigiano, dedicada à
Santíssima Virgem, distante de Muro cerca de 2 km. Dali voltou, certa vez,
trazendo um pequeno pão branco. Indagado pela mãe acerca de quem lhe havia dado
o alimento, respondeu: “O filho de uma bela senhora com o qual brinquei”.4
Como o
fato se repetisse diariamente durante vários meses, uma de suas irmãs o seguiu
um dia, sem ele perceber, e pôde testemunhar o seguinte espetáculo: apenas
Geraldo se ajoelhou aos pés da imagem de Maria, o Menino Jesus desceu dos
braços de sua Mãe para brincar com ele e, ao despedir-Se, entregou-lhe um
pãozinho.
Sua
Primeira Comunhão não foi menos extraordinária: tendo recebido do pároco uma
categórica resposta negativa, por ser ainda muito novo para receber o Pão dos
fortes, o pequeno Geraldo pôs-se a soluçar no fundo da igreja. Na mesma noite
apareceu-lhe São Miguel Arcanjo e lhe administrou a Sagrada Eucaristia!
Já na adolescência, sinal de
contradição
À
semelhança de Nosso Senhor Jesus Cristo, Geraldo foi, desde os primeiros anos,
um sinal de contradição (cf. Lc 2, 34) nos ambientes que frequentava. Devido ao
falecimento de seu pai, viu-se obrigado a trabalhar como aprendiz de alfaiate.
O dono do estabelecimento se afeiçoou a ele; mas o chefe dos empregados, pelo
contrário, tomou-se de aversão pelo jovenzinho, justamente por vê-lo tão
piedoso. Acusava-o de vagabundo, cobria-o de bofetadas, a ponto de, em uma
ocasião, fazê-lo perder os sentidos. Geraldo jamais se queixava com o patrão;
antes, alegrava-se em padecer por Jesus e repetia a seu carrasco: “Batei, batei
mais, eu mereço este castigo”!5
Algum
tempo depois, pôs-se a serviço de Dom Albini, Bispo de Lacedonia, conhecido por
seu caráter irascível. Durante três anos Geraldo suportou humilhações,
reprimendas, maus-tratos... Numa ocasião, deixou cair na cisterna o molho de
chaves da residência episcopal. Em meio a uma terrível aflição, só encontrou
uma saída: fez descer até o fundo do poço, amarrada na corda, uma imagem do Menino
Jesus, enquanto suplicava: “Só Vós podeis ajudar-me... Se não vierdes em meu
socorro, Monsenhor ralhará comigo. Por favor, devolvei-me a chave!”.6 Puxou a
corda e — oh, maravilha! — a imagem trazia as chaves na mão. Este prodígio e
sua heroica paciência valeram-lhe a admiração de toda a cidade, exceção feita
do próprio prelado. E quando este faleceu, Geraldo demonstrou com suas lágrimas
quanto estimava aquele que tanto o fazia sofrer:
— Perdi
meu melhor amigo! — exclamava desconsolado.
“Mais louco sois Vós, Senhor”!
Tendo
retornado a Muro, Geraldo abriu uma alfaiataria. Enquanto a agulha corria entre
seus dedos ágeis, sua alma elevava-se às alturas da contemplação. Nutria filial
devoção por Maria Santíssima, a quem consagrara sua virgindade, e bastava-lhe
pronunciar seu nome para experimentar transportes de amor.
Inebriado
pela “loucura” da Cruz (cf. I Cor 1, 18), em tudo buscava imitar os sofrimentos
do Salvador: flagelava-se até o sangue, fazia-se de louco para atrair o
desprezo de seus concidadãos, passava dias inteiros sem comer e, às noites,
escalava a torre da catedral para introduzir-se pelas arcadas dos sinos e ir
rezar aos pés do Santíssimo Sacramento. Se, de um lado, o demônio lhe armava
ciladas, aparecendo como um cão furioso ou provocando acidentes, de outro, o
Senhor o recompensava com inúmeras consolações.
Numa
dessas longas vigílias, uma voz suave, vinda do sacrário, rasgou o silêncio
noturno: “Pazzerello! — Louquinho!”.7 A resposta brotou rápida em seus lábios
ardorosos: “Mais louco sois Vós, Senhor, que por amor estais aqui, prisioneiro
no tabernáculo!”.8
Na Congregação do Santíssimo
Redentor
Ser
religioso sempre fora o sonho de Geraldo; contudo, aprouve à Providência
provar-lhe a perseverança antes de aceitar sua entrega. Fracassou em duas
tentativas de ingresso nos capuchinhos e numa curta experiência como anacoreta.
Isto desanimaria qualquer outro, não o jovem Majela!
Alguns
padres da Congregação Redentorista, recém-fundada por Santo Afonso de Ligório,
chegaram a Muro para pregar uma missão. Logo ao vê-los, Geraldo compreendeu ser
esta sua vocação, e solicitou entrada na ordem. O superior, padre Paulo Cafaro,
recusou-se rotundamente, alegando não possuir ele forças para suportar os
rigores da vida religiosa. Como teimasse em sua resolução e o importunasse sem
cessar, o padre Cafaro pediu que sua mãe o trancasse no quarto, no dia da
partida dos missionários. O jovem, porém, usando uma corda fabricada com
lençóis, escapou pela janela e correu atrás dos redentoristas, deixando um
bilhete para a família: “Vou tornar-me santo. Esquecei-me”.9
Alcançou-os
na estrada e os acompanhou até a cidade vizinha, recebendo sempre a mesma
negativa. Por fim, sua santa e serena tenacidade pôde mais que a determinação
férrea do superior: em maio de 1749, aos 23 anos, foi acolhido, a título de
prova, no convento de Deliceto.
Incansável apóstolo, grande
taumaturgo
Começava
para Geraldo a última etapa de sua vida: apenas seis anos o separavam de sua
partida para a eternidade... seis anos fecundos em méritos, ricos de fatos
miraculosos e arroubamentos celestes, entremeados de provações e sofrimentos
quase sobre-humanos.
Considerado
inútil para qualquer trabalho devido à sua extrema magreza, não tardou a
desmentir esta fama. O fogo interior que o consumia supria a falta de robustez,
a ponto de os religiosos afirmarem que rendia por quatro pessoas. Desdobrava-se
em atenções para com os demais e assumia os encargos mais humildes: jardineiro,
sacristão, coletor de esmolas, porteiro... Sua presença tornou-se disputada nas
diversas casas da Congregação. Exímio no cumprimento das obrigações, revelou-se
também apóstolo infatigável e irresistível nas missões. Escreve um de seus
biógrafos: “Seu aspecto, sua simples presença, relatam as testemunhas, valiam
por uma pregação; sentia-se Deus nele. Sua palavra ardente imprimia nas almas o
horror ao pecado, o ardor pela oração, o amor a Jesus e a Maria, e a fidelidade
aos deveres de estado. [...] Exalava-se de sua pessoa um não sei quê de divino
que consolava os corações, curava as almas e arrastava para a virtude”.10
Secundado
pelo dom de milagres concedido pela Providência, produzia abundantes frutos de
apostolado. Os elementos, as doenças e os demônios obedeciam à sua palavra.
Curou um número incontável de enfermos, dentre os quais uma menina paralítica
de nascença. Em várias ocasiões, multiplicou os alimentos e chegou a abrir as águas
de um rio que lhe impedia a passagem.
Um dos
seus mais retumbantes prodígios foi o realizado em Nápoles. Uma multidão
reunida à beira-mar afligia-se ante o espetáculo de uma embarcação cheia de
passageiros que se debatia nas ondas, em meio a uma furiosa tempestade.
Passando por ali, Geraldo lançou-se à água e ordenou ao navio, em nome da
Santíssima Trindade, que se detivesse. Depois o arrastou até a terra, como se
fosse uma palha, e saiu da água com a roupa inteiramente seca. Todo o povo o
aclamava, querendo prestar-lhe homenagens, mas ele fugiu correndo pelas ruas da
cidade.
Um serafim de carne e osso
Todavia,
onde mais se fazia sentir o aroma de sua santidade era no recinto sagrado do
convento. De tal maneira neste religioso exemplar se rivalizavam as virtudes,
que seria difícil apontar uma como a principal. Ninguém mais humilde, mais
obediente, mais observante da regra! Seus próprios mestres tomavam-no como
modelo e os confessores confundiam-se ante a integridade daquele irmão leigo,
neófito na vida religiosa e já elevado aos cumes da perfeição. Alguns de seus
contemporâneos chegaram a afirmar que parecia não ter sido tocado pelo pecado
original, como um serafim de carne e osso!
Os
fenômenos místicos com os quais foi agraciado são um dos traços mais
surpreendentes de sua espiritualidade. “Ao que parece, todos os favores
concedidos por Deus aos outros santos, na ordem mística, quis Ele reuni-los na
pessoa de nosso seráfico confrade”,11 escreve o citado padre Saint-Omer. Com
efeito, num século no qual o racionalismo procurava negar a existência do
sobrenatural e, no fundo, do próprio Deus, a vida de Geraldo mostrava como são
tênues os véus que nos separam do mundo invisível, pelo que devemos nos
compenetrar de estarmos sempre debaixo do olhar de Deus.
Visões,
êxtases, levitações, dom de profecia, ciência infusa, discernimento dos
espíritos, conhecimento à distância, resplendores, bilocações,
invisibilidade... Impossível descrever no exíguo espaço de um artigo cada uma
destas maravilhas!
Citemos
apenas dois exemplos. Em visita ao Carmelo de Ripacandida, entrou subitamente
em êxtase e seu corpo tornou-se incandescente a ponto de derreter a grade de
ferro que ele tocava com as mãos. Também aconteceu-lhe de, ao contemplar uma
bela pintura da Santíssima Virgem, erguer-se do solo até a altura do quadro e,
beijando-o com inefável carinho, exclamar: “Como Ela é bela! Vede como é
bela!”.12
Sob o signo da dor
Faria,
no entanto, uma imagem equivocada a respeito de Geraldo, quem julgasse ter ele
sido um homem meio mágico, imune às tentações e aos sofrimentos. Nada de mais
contrário à realidade! Desde sua entrada na Congregação, padeceu terríveis
provações espirituais, nas quais se julgava abandonado por Deus, prestes a
sucumbir ao desespero. Sua própria descrição, em carta a uma religiosa, é mais
cogente que qualquer narrativa: “Desci tão baixo que não vejo mais sequer a
possibilidade de sair deste precipício... pouco me preocuparia se pelo menos eu
pudesse amar a Deus e Lhe agradar. Mas eis o espinho que transpassa meu
coração: sinto-me sofrer sem Deus. [...] Vejo-me como suspenso sobre o abismo
do desespero. Parece-me que Deus desapareceu para sempre, que suas divinas misericórdias
se esgotaram, que sobre minha cabeça pairam ameaçadores os raios de sua
justiça”.13
Fato
curioso: à medida que Geraldo progredia em virtude, as angústias se faziam mais
frequentes e intensas. Em 1754, um ano antes da morte, sobreveio a grande
prova, terrível e espantosa. De improviso, foi chamado a Pagani, onde então
residia Santo Afonso de Ligório. Era o primeiro encontro do humilde irmão com o
fundador... e quão doloroso! Após cumprimentá-lo, Santo Afonso leu em voz alta
duas cartas nas quais alguém acusava o jovem religioso de um crime cometido
precisamente contra a virtude que ele mais amava: a castidade!
Não
obstante, sem deixar transparecer qualquer emoção, Geraldo permaneceu em
silêncio. Tal atitude equivalia a um assentimento... Surpreso, o fundador
resolveu não expulsá-lo, mas lhe impôs duríssima penitência: privação da
Eucaristia e proibição de tratar com pessoas externas à Congregação. Por mais
de dois meses suportou ele esta situação vexatória, vigiado pelos superiores,
objeto de suspeita de quantos o conheciam. O que mais lhe doía, porém, era a
falta da Comunhão. Custava-lhe conter os ardores do desejo de receber tão
augusto Sacramento. A um sacerdote que o instava a acolitar sua Missa,
respondeu: “Não me tenteis, caro padre, poderia arrancar-vos a Hóstia das
mãos!”.14
Afinal,
a verdade brilhou: outras duas cartas, desmentindo a calúnia das anteriores,
revelaram a Santo Afonso a falsidade da acusação à qual seu coração de pai se
recusava a dar inteiro crédito... Convidado, uma vez mais, a apresentar-se ao
fundador, Geraldo foi recebido com estas palavras: “Meu filho, por que não
falaste? Por que não pronunciaste sequer uma palavra para defender tua
inocência?”.15 Ao que ele replicou: “Meu pai, como poderia fazê-lo, se nossa
regra não admite escusar-se ante as repreensões dos superiores?”.16
“A vontade divina e eu somos uma
coisa só”
Geraldo
já não era deste mundo. Aliás, nunca o fora! Contudo, aquela tribulação apartara-o
ainda mais das coisas terrenas. Em agosto de 1755, durante uma missão, teve a primeira
hemoptise. Seu superior o encaminhou ao convento de Materdomini, para ali se
restabelecer. Longe de regredir, a enfermidade progrediu rapidamente: sangue, febre,
mal-estares sem conta. Nada, todavia, logrou arrancar-lhe sequer uma queixa: “A
vontade divina e eu somos uma coisa só”,17 dizia com alegria. À custa de muito
esforço deixava o leito para passar algumas horas de joelhos diante do
Crucifixo de sua cela.
Também
este período foi marcado por fatos extraordinários: de seu corpo minado pela
tuberculose emanava um perfume tão penetrante que os visitantes identificavam seu
quarto com facilidade. Mais edificante ainda foi sua obediência: tendo recebido
a ordem de ficar curado, levantou-se logo e retomou a vida comunitária por
várias semanas.
Sem
embargo, a vontade de Deus era outra, e em outubro a doença o atacou com maior
rigor. Nos poucos dias que lhe restavam, padeceu, por especial favor do Céu, os
tormentos da Paixão de Cristo. Chegado o dia 15, anunciou que morreria naquela
mesma noite. Recebeu de manhã o Viático e, à tarde, recitou o Salmo Miserere.
Duas horas antes de falecer, vendo aproximar-Se a Rainha dos Céus, ajoelhou-se
sobre a cama e entrou em êxtase. Era cerca de meia-noite quando sua alma
abandonou o corpo.
Imediatamente
sua fisionomia inerte transfigurou-se, adquirindo uma formosura angélica. E
quando o sineiro do convento quis fazer soar o toque dos defuntos, sentiu uma
força irresistível que o obrigou a ressoar o carrilhão das grandes festas!
Em
1893, Leão XIII elevou Geraldo Majela à honra dos altares, como Beato. Onze
anos depois, São Pio X inscreveu no Catálogo dos Santos este exemplar religioso
que manteve sempre intacta sua pureza de coração.
1 SÃO TOMÁS DE AQUINO.
Suma Teológica. I-II, q.69, a.2, ad 3.
2 DUNOYER, CSsR,
Jean-Baptiste. Vie de Saint Gérard Majela, rédemptoriste. Saint-Étienne:
Bureaux de “L ’Apôtre du Foyer”, 1943, p.103.
3 REY-MERMET, CSsR, Thèodule. San Gerardo Maiella, il “pazzerello” di
Dio. Materdomini: Stampa Valsele, 1992, p.51.
4 SAINT-OMER, CSsR, Édouard. Le Thaumaturge du XVIIIe siècle ou la vie, les
vertus et les miracles du Bienheureux Gérard-Marie Majela. Desclée de Brouwer
et Cie, 1893, p.2.
5 DUNOYER, op. cit.,
p.21.
6 Idem, p.32.
7 REY-MERMET, op. cit., p.32.
8 Idem,
ibidem.
9 Idem, p.46.
10 SAINT-OMER, op. cit., p.75.
11 Idem,
p.80.
12 Idem, p.46.
13 DUNOYER, op. cit.,
p.276277.
14 REY-MERMET, op. cit., p.114.
15 Idem,
p.115.
16 Idem, ibidem.
17 Idem, p.133.
Revista Arautos do Evangelho out 2014
Um comentário:
São Geraldo é maravilhoso ! Eu o amo!
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