Envolta na bruma atlântica e revestida de um verdor inebriante, a
Irlanda, nação-ilha situada ao norte da Europa, é comparada a "uma
esmeralda encastoada no mar".
Se desvendamos sua história na aurora do século V, nos deparamos com um
país separado por léguas de distância dos demais. Fazia parte dos últimos
rincões da terra conhecida de então. As invasões bárbaras não a atingiram, mas
também não conhecera a civilização romana. Sua escassa população vivia em
aglomerados fortificados de choças, espalhados ao longo de suas costas, rios e
lagos. Os bosques serviam de refúgio aos druidas, sacerdotes pagãos que
dominavam o povo com suas magias.
Nada indicava que esta remota região
do Velho Continente poderia se converter em berço da vanguarda de um impulso
monástico e missionário, que tanto benefício traria à Igreja. Sem embargo, na
encruzilhada histórica subsequente à queda do Império Romano, a Irlanda
desempenhou, segundo eminentes historiadores, o papel de "líder da cultura
do Ocidente".
Como se deu tão surpreendente
transformação?
Grandeza
e humildade de um varão
Sua causa se encontra num homem cujo
nome é inseparável da Irlanda: o santo Bispo Patrício. Sem temor de enfrentar
os demônios do paganismo, ele percorreu a ilha lançando as sementes da Fé e
irrigando-as com o suor de seu rosto e o sangue de sua alma. "Seu sucesso
foi fenomenal: onde ele implantou a Cristandade, esta floresceu e não houve retrocesso ao
paganismo".
Por isso ele merece ser incluído
entre os varões providenciais, propulsores da vida da Igreja, em escala
mundial. Eles são propriamente os homens da destra de Deus. "Os obstáculos
parecem insignificantes diante deles. Tais Santos realizam coisas que nunca
ninguém poderia imaginar, fazendo acelerar muito a marcha da História e o
progresso da Igreja. Isto se pode dizer de São Patrício, mas se deve dizer
também da nação irlandesa".
Entretanto, quiçá seu maior mérito
seja o de não se julgar uma grande figura da História, senão um beneficiário da
bondade divina, da qual se considera devedor: "Eu era como uma pedra
atolada na lama, até que Ele, que é todo-poderoso, veio e, em sua misericórdia,
me levantou e colocou-me no alto da muralha".
As
sinuosas vias da Providência
É ele próprio quem nos conta sua
história, em breves linhas,6 "alternadamente emotivas e discretas",7
que atravessaram os séculos com seu frescor intacto: "Eu sou Patrício,
pecador, o mais rude e o menor de todos os fiéis, e desprezado por muitos. Meu
pai era o diácono Calpornius, filho do presbítero Potitus. Ele era oriundo do
pequeno povoado de Bannavem Taburniae e possuía uma propriedade nos seus
arredores, de onde fui levado cativo".
Nascido na antiga Britânia por volta
do ano 387, a existência de São Patrício teria sido tranquila se um bando de
corsários irlandeses não o tivesse sequestrado quando tinha por volta de 16
anos.
Levado como escravo para a misteriosa
ilha vizinha, por seis anos pastoreou o gado de um sacerdote druida, período
que lhe serviu de preparação para sua missão evangelizadora: dominou a língua
nativa, familiarizou-se com a índole do povo e tornou-se perito conhecedor das
perfídias do culto pagão.
Sobretudo, pelo isolamento do pastoreio e o ambiente da suave paisagem
irlandesa, seu ouvido interior auscultava o sussurro da graça divina, a qual o
levava a viver em íntima relação com Deus: "Mais e mais me tomavam o amor
a Deus e a reverência a Ele devida. Minha fé crescia e minha alma se emocionava
a tal ponto que, no curso de um só dia, eu rezava até cem orações, e outro
tanto à noite. Eu assim o fazia mesmo quando estava nos bosques ou na
montanha".
Fuga e chamado místico
Certo dia, ouviu no fundo de sua alma
uma voz imperativa: "Veja, o seu barco está pronto".10 Reconhecendo
nela uma ordem divina, Patrício pôs-se a caminho, percorrendo enorme distância
até o litoral, em busca de uma embarcação que o reconduzisse à pátria. Depois
de inúmeras peripécias aportou, afinal, na Britânia.
Contando pouco mais de vinte anos e
estando já temperado na forja dos sofrimentos, o jovem britânico entrou para a
vida religiosa. Mais tarde viajou para o Continente a fim de continuar os
estudos e sabe-se que frequentou a abadia de Marmoutier, nas redondezas de
Tours, e a de Lerins, na ilha de Saint-Honorat, onde recebeu a tonsura
eclesiástica.
Apesar de sempre lamentar, em seus
escritos, suas lacunas culturais, devido ao tempo perdido durante a escravidão,
ele era um homem sábio e acompanhou São Germano d'Auxierre numa importante
missão contra a heresia pelagiana. Tendo ido a Roma, recebeu do Papa São
Celestino I o mandato de pregar o Evangelho na Irlanda e foi ordenado
Bispo pelo mesmo São Germano, pouco antes de partir.
A ordem do Sumo Pontífice foi
acolhida com alegria por Patrício, pois, desde seu regresso à Britânia, a
lembrança do longínquo norte nunca o abandonara, e até o atormentava:
parecia-lhe ver "os filhos dos pobres pagãos irlandeses, cujo jugo bem
conhecia, estendendo seus bracinhos em sua direção".
Conta ele em suas memórias, escritas
na ancianidade, que numa noite, recém-chegado do cativeiro, tivera a visão de
um homem, com ares de irlandês, carregando muitas cartas. "Entregou-me uma
delas, que tinha por título ‘A voz dos irlandeses'. Enquanto lia o começo da
carta, parecia-me ouvir as vozes dos habitantes das redondezas do bosque de
Voclut, perto do mar ocidental, clamando numa só voz: ‘Nós vos rogamos, santo
jovem, vinde caminhar outra vez conosco'. Fiquei comovido até o mais fundo do
coração. Sem poder ler mais, acordei. E, graças a Deus, depois de muitos anos,
o Senhor atendeu o seu clamor".
Regresso
à Irlanda
O santo Bispo desembarcou junto à
atual Dublin, provavelmente no ano 432. Tinha por missão uma epopeia
evangelizadora sem precedentes: era um Bispo itinerante empenhado em converter um
povo inteiro.
Começou pelas aldeias costeiras,
obtendo já no início notáveis conversões que muito o satisfizeram. As pessoas
de bem deixavam-se conquistar pelo espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo, que
viam personificado em São Patrício. Sua intransigência com o mal, aliada à
brandura no trato, fazia um contraste harmônico muito próprio de uma alma
cristã e inimaginável entre os pagãos.
Pouco demorou, porém, para ver como
que num relâmpago qual seria sua principal e mais urgente luta: aplainar as
montanhas e vales do paganismo, para poder levantar sobre terreno firme o
edifício duradouro da Fé. Impelido por esta moção da graça, apressou em
adentrar-se na ilha a fim de ter um encontro com os detentores do poder, a
começar pelo velho druida chamado Miliuc, de quem havia sido escravo.
Patrício instou-o a dar ouvidos à
Boa-nova, mas ele tinha o coração endurecido e, num impulso frenético,
trancou-se em sua casa, ateou-lhe fogo e pereceu nas chamas. Bem conhecia este
chefe pagão a previsão dos antigos poetas celtas, segundo a qual um personagem
paramentado e portando um báculo chegaria à ilha e reduziria a cacos o império
dos druidas. Uma sinistra intuição parecia ter-lhe indicado que chegara ao fim
seu domínio.
Fogo
na noite sagrada
O santo Bispo ficou horrorizado com
aquele macabro desfecho. Contudo, tão logo recuperou seu habitual vigor,
arquitetou um plano para revelar as verdades cristãs ao maior número possível
de habitantes da ilha. Escolheu para isto a celebração pagã anual chamada Fogo
dos Baals, que naquele ano de 433 coincidia com a Vigília Pascal.
A nata da população, convocada pelo
rei Laoghaire, afluía à colina de Tara: sacerdotes, oficiais da corte e chefes,
acompanhados cada qual por representantes de seus respectivos clãs. Também não
faltavam os bardos, artistas e músicos que compunham a classe mais influente depois da
casta sacerdotal. E nas encostas se apinhava o povo.
Decidido estava Patrício a jogar o
tudo pelo tudo: se seu empreendimento tivesse êxito, aquelas almas se abririam
à sua pregação; se fracassasse, corria o risco de ser a vítima imolada no altar
que queria derrubar. Assim, "qual outro Elias, cingiu os rins e foi ao
encontro dos druidas reunidos em Tara, para lançar-lhes um desafio ao combate,
na presença daqueles aos quais, durante tanto tempo, haviam eles enganado com
suas artimanhas e oprimido com sua autoridade ilusória".
O Santo chegou acompanhado de um
pugilo de cristãos e subiu a colina de Slane, oposta à de Tara, mas à vista uma
da outra, pondo-se a recolher galhos secos, troncos caídos, tudo quanto servisse
a seu propósito... E eis que, ao cair da noite, uma chama crepitou naquela
elevação e subiu bem alto, rasgando a escuridão com seu esplendor. Era um fogo
pascal de proporções colossais, que representava o sublime anúncio da
Ressurreição: "Exulte o Céu, e os Anjos triunfantes [...] façam soar
trombetas fulgurantes [...], vendo dissipar-se a treva antiga, ao sol do eterno
Rei brilha e se aquece".
Levantou-se na colina de Tara um
coletivo brado de indignação: quem tivera a audácia de acender um fogo na noite
sagrada dos Baals, coisa expressamente proibida? Os sacerdotes, mais sensíveis
aos sinais e símbolos, fremiam: se tal insolência passasse impune, por quanto
tempo conseguiriam eles manter a reverência do povo? Sentindo o perigo
iminente, aconselharam o rei a mandar apagar o fogo. Caso contrário - vaticinou
um dos mais sábios -, "ele jamais se extinguirá na Irlanda. Além disso,
ofuscará todos os fogos acesos por nós, e quem o acendeu vencerá a todos
nós".
Afastando-se do alvoroço geral, o rei
enviou mensageiros para trazer o infrator e apresentá-lo à grande assembleia.
Este se deixou conduzir com docilidade e lhes expôs em poucas palavras, mas com
muita autoridade, as verdades da Fé. Deu-se, então, um estrondoso enfrentamento
entre o sacerdote de Cristo e os druidas, que se prolongou por alguns dias.
Cenas prodigiosas que lembram as intervenções divinas do Antigo Testamento
foram presenciadas: houve um grande terremoto; as trevas cobriram a Terra e
foram dissipadas pelo Santo, que fez o Sol brilhar; a relva se cobriu
inesperadamente de neve pela ordem dos druidas e foi feita desaparecer pela
bênção do Santo, entre muitas outras coisas.
Afeita à banalidade, costuma a
mentalidade moderna relegar os portentos sobrenaturais ao mundo dos mitos.
Todavia, os registros históricos os narram e houve em Tara, naquela Páscoa, uma
radical divisão de campos: converteram-se, entre outros, vários membros da
família real e o chefe dos bardos. As portas para a pregação do Evangelho
haviam sido escancaradas e o infatigável apóstolo não perdeu um segundo sequer
para continuar sua epopeia.
Uma
primavera de graça
Dali em diante, o desenrolar dos
fatos vem marcado pelo perfume inocente das graças primaveris. A Irlanda tinha
se tornado uma nação de Fé pujante, fruto de uma conversão radical. Patrício,
pai e pastor do povo, vive agora cercado de jovens neocristãos. Com um delicado
trevo nas mãos expunha-lhes o mistério da Santíssima Trindade e constatava,
admirado, uma grande afluência de almas desejosas de assumir os conselhos
evangélicos.
"Como foi possível acontecer na
Irlanda que aqueles que nunca tinham tomado conhecimento de Deus, e sempre
haviam adorado ídolos e coisas impuras, fossem agora um povo do Senhor e se
chamassem filhos de Deus? Como foi possível que os filhos e as filhas dos reis
da Irlanda se fizessem monges e virgens de Cristo?".17 Este rápido
despertar de um movimento monástico foi fortalecido por existir na ilha -
apesar das rústicas exterioridades - uma sociedade intelectual muito
desenvolvida, em especial nas letras. Com a ruína dos druidas, a Religião
Católica não teve dificuldades em assimilar e requintar aquela estrutura cultural.
A História da Igreja comprova o triunfo de
Cristo nesta nação, que se tornaria foco de irradiação da Fé para a Europa,
graças a São Patrício. "Depois de trinta e três anos de apostolado, ele
faleceu, deixando a Irlanda quase toda convertida e, ademais, repleta de
escolas e comunidades, destinadas a ser berço de missionários para o
Ocidente".
Para os que perseveram...
Tudo isso remete àquele fogo novo - a
Luz de Cristo - aceso por Patrício e à sua entranhada prece, que jamais se
afastaria daquelas almas: "Estou pronto e desejo ardentemente que Ele me
conceda beber de seu cálice, como concedeu a outros que O amavam. Portanto,
nunca permita Deus que eu perca o povo por Ele conquistado nos confins da
Terra".
E a este varão, que acendeu a chama
vitoriosa da Fé em terras onde dominavam as trevas de paganismo, foi concedido
o prêmio do verdadeiro apóstolo: "Os que tiverem introduzido muitos nos caminhos
da justiça luzirão como as estrelas, com um perpétuo resplendor"
(Dn 12, 3).
Revista Arautos do Evangelho, Março-2016
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