No
ano de 287, o então Imperador Romano, Diocleciano, promoveu uma feroz perseguição
aos cristãos. Jurara extirpar da face da Terra a religião de Jesus Cristo e,
para isso, ordenou a todos os governantes das províncias que se empenhassem nesta
tarefa.
Ariano,
governador da Tebaida e grande amigo de Diocleciano, logo deu início à
perseguição. Queria com isso agradar ao Imperador, sabendo que seria prontamente
gratificado.
Espalhou
guardas pela cidade e aprisionou muitos cristãos.
Um
diácono, de nome Apolônio, vendo os cruéis e terríveis tormentos que se preparavam
para os cristãos aprisionados, temeu por sua fragilidade e, para tentar fugir
ao perigo de negar a Cristo, achando que não teria bastante ânimo para declarar-se
cristão, inventou uma saída.
Havia
em sua cidade um menestrel de nome Filemon. Insigne por suas brincadeiras,
tocando maravilhosamente a sua flauta, era amado por todo o povo da Tebaida.
Apolônio
mandou chamá-lo, e propondo-lhe certa quantia de ouro pediu que ele se apresentasse
disfarçado em seu lugar, para prestar homenagem aos ídolos.
Filemon
aceitou o encargo e deixando suas flautas em casa de Apolônio, tomou a sua capa
e compareceu à presença do governador Ariano.
* Calorosa
discussão
—
Quem és?! E por que queres falar comigo? - perguntou o governador.
Os
ministros da justiça que ali estavam, disseram:
—
À entrada do palácio disse que era o diácono Apolônio, e de fato, ele parece cristão!
—
Pois se és cristão, que sacrifique aos deuses! Se não, morrerás, sofrendo os mais
horríveis tormentos.
Nesse
momento —ó maravilha do dedo de Deus! —Filemon, mudando de intenção e fazendo
realmente aquilo que apenas iria representar, respondeu:
—Cristão
sou e, porque o sou, não quero sacrificar aos deuses!
—
Sacrifica! E só assim te livrarás dos terríveis tormentos a que serás submetido
até a morte, como aconteceu a Ascias e Leonides.
Inspirado
pela graça de Deus. Filemon respondeu ao governador:
—
Preparado estou para passar por onde eles passaram e, assim, chegar onde eles
agora estão: à glória celeste!
O
governador, percebendo que falava com mais um obstinado cristão, armou um
diabólico plano:
—Vamos,
sacrifica! E assim, salva a tua alma...
—
Ah! Sim, isso eu faço! E não há melhor meio de salvar a minha alma do que entregá-la
a Cristo e por Cristo!
O
governador voltou-se então para seus oficiais e clisse em voz baixa:
—
Vão em busca do menestrel Filemon para ver se ele com suas artes e graças consegue
acalmar este cristão.
Saíram
os oficiais, mas não o tendo encontrado voltaram.
—
Senhor, não o pudemos achar!
—
Que tragam então seu irmão!
Assim
que este chegou, interrogou-lhe o governador:
—
Que é feito de teu irmão?!
Este,
olhando para o falso Apolônio, reconheceu seu irmão:
—
Ora, meu irmão Filemon é este que já está em tua presença, ó governador Ariano!
O
espanto foi geral, pois várias pessoas assistiam à cena. O governador, pensando
tratar-se de uma comédia, começou a rir:
— Ah, ah, ah! Filemon, Filemon! Todos
nós sabemos que nasceste para nos alegrares e despertares o riso.
E
acrescentou com autoridade:
—
Entretanto, não posso permitir que tornes desprezível a dignidade de um governador
com semelhantes brincadeiras!!! Assim, para que os cristãos não fiquem pensando
que agias sinceramente, ordeno-te que sacrifiques aos ídolos!
Contrafeito.
Filemon respondeu:
—
Ó governador, digo-te que em verdade sou cristão! E ainda afirmo que quanto
mais perder pelo amor de Cristo, tanto mais ganho!
Encolerizou-se
de tal modo o governador Ariano ao ouvir tais palavras que, ardendo do desejo de
vingança, decidiu sair à praça pública para julgar tão difícil caso.
Reunindo
numeroso povo, apresentou Filemon, dizendo que se declarara cristão. Erguendo a
voz interrogou a multidão:
—
Que faremos’?! Cortamos com um repentino golpe essa pérfida vida, ou lhe damos
uma morte lenta, para assim lhe prolongar a pena?
O
povo, porém, assustado, ergueu um clamor:
—
Não! Não prives a cidade de todas as suas alegrias!
Alguns
começaram a chorar, querendo mostrar o amor que lhe tinham.
Ariano,
voltando-se para o menestrel, disse:
—
Então, Filemon? Será que o teu coração é mais duro que o bronze? Não vês a
estima que todos têm por ti? Vamos, Filemon. sacrifica aos deuses... E só jogar
um pouquinho de incenso.., nada mais... não estragues a festa que para breve esperamos!
—
Essa festa, nada é em comparação com a que se faz no Céu! Por isso, prefiro faltar
às tuas, para não perder as da Eternidade!
Ariano,
nesse momento, ficara todo vermelho e parecia sufocado pelo cólera:
—O
quê!!! Filemon, presta bem atenção! !!!
Contendo-se
e mudando drasticamente de tom, qual uma serpente a envolver sua vítima,
continuou:
—
Filemon, recusas as felicidades desta terra e ainda irás perder as que supões existir
no outro mundo! Tui não és batizado! E eu sei que os cristãos dizem que no Céu
não se entra sem Batismo! E então, Filemon, o que dizes agora? Aceitas a tua derrota?!
Filemon
não conhecia o batismo de sangue e assim, ferido pelas palavras do governador
voltou-se para a multidão que ali se encontrava e bradou:
—
Se há entre vós um cristão, por favor, ajude-me, pois necessito da força deste Sacramento!
Porém,
ninguém ousou se apresentar.
—
Vês? Ninguém se atreve a fazer oposição a este magnífico tribunal! Vamos, rende-te
e sacrifica aos deuses!
Vendo-se
Filemon cercado de terríveis dúvidas por dentro e de perigosas ameaças por
fora, fugiu!
Sim,
fugiu para o interior de seu coração e ali, rezando fervorosamente, implorou:
Senhor
meu, Cristo Jesus! Não consintas que a tristeza tome o coração de teu servo.
Guiai e governai os meus caminhos de tal modo que eu possa sair pelo meio deste
povo e receba a graça do Santo Batismo.
E
Deus atendeu o seu pedido!
Milagrosamente,
Filemon foi envolvido por uma nuvem invisível à multidão, que levou—o até as
margens de um rio, onde um cristão que ali estava ministrou-lhe o Batismo.
A
mesma nuvem que o transportou, tornou a levá-lo diante do tribunal, sem que
ninguém sentisse a sua ausência!
-
Eis, ó Ariano e povo aqui reunido, sem qualquer ajuda vossa, já sou cristão! Porque
veio meu Deus, que a ninguém teme, e me concedeu o que tanto desejava!
Agora,
ó governador, nada mais me falta! Vamos, continua a tua obra e sem demora
executa os teus desígnios.
Com
esta altiva e ufana resposta, aumentou a ira de Ariano.
Entretanto,
um fato iria deixá-lo ainda mais exasperado.
Apolônio,
tendo sido informado de tudo o que estava acontecendo, correu à praça. Vendo
que Filernon estava prestes a receber a coroa do martírio e movido por seu
heróico exemplo, gritou no meio do povo:
-
Eu sou o verdadeiro Apolônio! Sou cristão e diácono de Jesus Cristo!
Ariano
ordenou que fosse preso imediatamente e ordenou que três robustos soldados
esbofeteassem o seu rosto. O mesmo ordenou que fizessem a Filemon, cuja perda
lhe doía e em cuja apostasia confiava. Chorava o povo e, com este pranto, o
astuto juiz tentava amolecer o coração de Filemon.
Vendo,
porém, a perseverança e a alegria de ambos no meio dos padecimentos, mandou que
lhes furassem os calcanhares com cravos e metessem neles cordas para serem,
desse modo, arrastados pela cidade.
Executada
esta pena, foram novamente apresentados no tribunal, e o juiz, com desprezo e
ar de mofa, disse a Filemon:
—
Então, meu amigo? Onde está o teu Deus para te salvar em tão urgente necessidade?
Porque não socorre a seus adoradores nos princípios do tormento? Vamos, dai-me
ouvidos e sacrificai aos deuses...
Então
Filemon, bom artista que era, mostrou-se mais manso e disse:
—
Está bem! Se queres que eu te escute, ouve-me tu primeiro.
Ariano
pensou que, por certo, Filemon fraquejara.
Continuou
o destemido cristão:
Quero
que faças trazer aqui uma grande caldeira com sua tampa. Quero que mandes
colocar dentro desta caldeira uma criança recém nascida.
Ariano
deu ordem para que tudo isso se fizesse, e perguntou:
—
Queres mais algo, Filemon?
—
Sim! Que venham os arqueiros do exército, com muitas e muitas flechas, e que
todos atirem contra o caldeirão!
Todo
o povo estava intrigado, e Ariano satisfeito, pois conseguira convencer Filemon.
Os
guardas começaram a atirar flechas atrás de flechas, até esgotarem-se.
Filemon
pediu, então, que um dos guardas retirasse de dentro do caldeirão a criança.
Perguntou, em seguida, se ela apresentava alguma ferida.
Feito
o exame, lhe responderam que estava sã e ilesa. Então, voltando-se para Ariano,
Filemon disse num tom muito tranquilo:
—
Tu juiz, me perguntaste onde estava o meu Deus que não me salvara na minha
grave necessidade. Agora te respondo:
—
Eu sou aquele recém-nascido, pois há pouco que nasci das águas do Batismo. A
proteção divina, que cerca e defende seus fiéis servos, é mais forte que o
ferro e um muro de diamante. Logo, que mal me podiam fazer as setas de tua
língua, e todos os tormentos inventados por tua malícia e crueldade? Proclamo,
pois, que não quero me afastar da Fé de meu Senhor Jesus Cristo!
Ariano
não quis saber de mais demoras: mandou que Filemon e Apolônio fossem degolados
e enterrados no mesmo local de Asclas e Leonides, dois mártires do Senhor.
Uma inesperada
conversão
Entretanto,
Ariano, recolhido em seu palácio, estava profundamente marcado com tudo o que
vira e ouvira. Interrogava-se como Filemon pôde enfrentar com tanta alegria os
tormentos pelos quais passou. Não conseguia entender como conseguira ser
batizado. Perguntava-se, também, por que tantos homens e mulheres, velhos e
crianças, aos milhares, convertiam-se à religião de Jesus Cristo.
Lembrou-se,
então, do que Asclas e Leonides lhe disseram, antes de entregarem suas almas a
Deus:
—
Tu não nos vencerás, e nós não perderemos o Céu! Porém, tu converter-te-ás pela
força da oração e acabarás proclamando que há um só Deus, Santo e Verdadeiro, e
que Jesus Cristo é o Senhor!”
Passou
a noite toda em claro... Vendo que o sol começava a despontar, correu até o
lugar onde foram enterrados Filemon, Asclas e Leonides.
—
Em nome de Jesus Cristo, por Quem estes seus servos consumaram o martírio, aqui
estou para ver e crer que não há outro Deus verdadeiro, senão
o mesmo Jesus!
Ariano
convertera-se, e naquele mesmo dia pediu o Batismo!
Ariano é preso
A
notícia da conversão de Ariano espalhou-se por toda a Tebaida e imediatemente
foi preso.
Tendo
conhecimento do caso, o Imperador Diocleciano exigiu que o trouxessem, pois ele
mesmo queria julgá-lo.
Ariano,
antes de partir de Alexandria, pediu que os guardas esperassem um pouco e,
voltando-se para seus criados, disse profeticamente:
—
Esperai aqui, amigos, pelo meu corpo, porque no dia 8 de março, o imperador me
mandará precipitar no mar dentro de um saco, e dali a três dias sairá nesta
litoral um golfinho, perto do meio-dia. Guardai isto na memória e, no dito dia e
hora, recolhereis meu corpo e o levareis no mesmo saco, para enterrar junto de
meu amigo Filemon!
* Diante de
Diocleciano
Tendo
Ariano chegado a Roma, Diocleciano logo quis julgá-lo.
Estava
indignado à vista da conversão daquele que considerava um grande amigo. Ordenou
que fosse carregado de grilhões, algemas e cadeias de bronze. Uma grande pedra
lhe foi atada ao pescoço e o lançaram ao fundo de uma cova, para que ficasse
enterrado.
Tendo
sido cumprido tudo o que mandara, o imperador disse aos soldados que pisassem
em cima dela, dançando e cantando esta letra:
—Vejamos
se vem Jesus a livrar o seu devoto...
Aliviado
pela vingança, voltou o imperador aos seus aposentos.
Porém,
como o Deus verdadeiro não é surdo nem cego, sucedeu que ao entrar em seu
quarto, Diocleciano encontra Ariano deitado em sua própria cama, não só vivo,
mas alegre e confiante.
—
Não te perturbes, Diocleciano! Sou eu mesmo, Ariano, a quem há pouco deixaste
debaixo de montes de terra, pedra e areia. Como disseste: Vejamos se vem Jesus
a livrá-lo...” com efeito Ele veio, e trouxe seu devoto a esta cama para descansar
um pouco dos trabalhos. E para que vejas que Ele é Imperador que prevalece
sobre os imperadores, e que pode livrar os que põem nele toda sua confiança!
Diocleciano,
num misto de aturdimento e indignação, disse:
—
Nunca vi tão potente arte mágica! Vamos ver se ele novamente pode escapar.
Preparai imediatamente um saco, fechai este mágico dentro dele e precipitai-o
no mar!!!
Assim
se fez com Ariano e mais quatro cristãos, os quais tendo sido lançados ao mar
receberam a coroa do martírio.
* Os cinco
golfinhos
Porém,
surgiram nessa hora cinco golfinhos que tomaram seus corpos e os levaram até
Alexandria, conforme tinha profetizado Ariano antes de partir.
Na
hora e dia pre fixados, aguardavam os criados do governador um golfinho com um
saco. Entretanto, vendo aparecer cinco, cada um levando o seu fardo, hesitaram
e disseram entre si:
—
Será esta a profecia de nosso amo Ariano? Mas qual destes cinco corpos será o
dele?
Neste
momento o golfinho maior se adiantou e, depositando na areia da praia a sagrada
carga das relíquias, abriu a boca, da qual saiu urna voz humana que dizia:
—
Não duvideis, pois este é o corpo de Ariano. Os outros quatro são os cristãos
que receberam com ele a coroa do martírio. Levai-os todos ao sepulcro de Filemon.
No
dia em que foram depositados junto dos outros mártires, deram-se muitos milagres:
repentinamente, foi restituída a saúde a vários enfermos e muitos possessos
ficaram livres do demônio. E todos esses milagres redundaram em grande glória a
Deus, bem como consolação e aumento de fervor para todos os cristãos, pois
numerosas foram as conversões que se operaram.
Jacques de Voragíne- La Légende dorée
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