Varão de espírito
nobre, muito inteligente e culto, São Martinho I foi sujeito a uma das maiores
humilhações a que um Papa tenha sido exposto, desde o começo da história do
Pontificado.
Vejamos os comentários que Plinio Corrêa de Oliveira:
Vamos analisar uma
nota biográfica referente a São Martinho, Papa e mártir.
Condenado à morte por defender a verdade
São Martinho I
sucedeu a Teodoro, no ano 649.
A alma do novo Papa
deveria ser grande para suplantar as grandes dificuldades do momento. Para
salvar especialmente as Igrejas do Oriente, devia anatematizar a heresia
monotelista. E foi o que fez o novo Papa.
Imediatamente, por
ordem do Imperador Constante II, foi preso numa emboscada e transportado num
navio para o Oriente. Sofreu horrivelmente durante a viagem. Ao chegar a
Constantinopla estava em extremo grau de debilidade; mesmo assim, manietado,
arrastaram-no ao tribunal, chamaram testemunhas falsas que depuseram contra o
Pontífice acusando-o de traidor e herético. Depois de condená-lo, carregaram-no
para junto das cavalariças imperiais, onde se reunia incontável multidão.
São Martinho foi
alçado a um terraço para que Constante pudesse vê-lo da sacada de seu palácio;
depois o juiz que havia presidido o tribunal aproximou-se do ancião mofando:
— Viste como Deus te
livrou de nossas mãos, eras contra o imperador. Deus te abandonou.
Em seguida ordenou
aos soldados que rasgassem as vestes do Papa e lhe arrancassem os calçados.
Entregando-o ao prefeito, recomendou-lhe que o fizesse em pedaços.
Como a multidão se
mantivesse calada, o juiz incitou-a a anatematizar o condenado, mas ouviu-se
somente a voz de umas vinte pessoas. As demais, olhos baixos, dispersavam-se
silenciosamente.
Os carrascos então despojaram
São Martinho de seus farrapos e do pálio sacerdotal. Revestiram-no com uma
túnica aberta de ambos os lados, grotesca e humilhante. Rodearam-lhe o pescoço
com uma argola de ferro, puxaram-no por uma corrente pela cidade até a prisão,
que era a mesma dos criminosos comuns. Sob o frio intenso, tiritava. Permaneceu
preso esperando a morte, mas sua pena foi comutada por prisão perpétua.
No exílio da
Criméia, seu martírio aumentou dia a dia até que o Criador o chamou para Si, no
ano de 655.
Esse pontífice
deixou cartas notavelmente bem escritas, cheias de vigor e sabedoria, bem como
as respostas dadas no tribunal de Bizâncio. Seu estilo é nobre e sublime, digno
da majestade da Sé Apostólica.
Constância e fortaleza em meio a injustos tormentos
Encontramos nessa
narração vários aspectos desse martírio que são instrutivos para nós.
Em primeiro lugar, a
suma respeitabilidade desse Pontífice e a forma especial de tormento a que ele
foi sujeito. Por ser um santo, tinha na mais alta conta a dignidade do trono
pontifício por ele ocupado, compreendendo perfeitamente tratar-se do maior
cargo da Terra.
Não há dignidade de
rei, nem de imperador, nem de nenhum outro que se possa comparar sequer de
longe à dignidade do Vigário de Cristo na Terra, daquele que é sucessor de São
Pedro, a quem Jesus Cristo deu as chaves do Reino do Céu, de maneira que aquilo
que ele abrir estará aberto e aquilo que fechar permanecerá fechado.
Além disso, São
Martinho era um homem de um espírito nobre, muito inteligente e culto, em cujas
cartas se expressava com nobreza e elevação. Portanto, uma pessoa que gostava
de tudo quanto é alto, sublime, digno.
Pois bem, ele foi
sujeito a uma das maiores humilhações a que um Papa tenha sido exposto, desde o
começo da história do Pontificado.
São Pedro,
crucificado de cabeça para baixo, foi tão humilhado ou mais do que ele. Mas
poucos foram os Papas que sofreram um martírio tão terrível como São Martinho.
Trata-se de um
Pontífice romano, que se sabe Vigário de Cristo, e que é jogado no porão de um
navio daquele tempo, desce na cidade de Constantinopla, é arrastado ao tribunal
por hereges monotelistas, para ser condenado; depois é levado diante de uma
imensa multidão, vestido de um modo ridículo, colocam-lhe no pescoço uma argola
de ferro atada a uma corda, e o conduzem como se fosse um animal;
encontrando-se já na iminência de ser morto, ele é arrastado, a pé e descalço,
pela cidade até a outra ponta, para ser preso entre os prisioneiros comuns.
Imaginem a humilhação de um homem que se preza, sofrendo tudo isso!
Mais ainda: fazia um
frio intenso, ele já estava idoso e tiritava. Naturalmente tomavam o tremor
dele como sendo por medo, e muitos terão caçoado dele.
Vê-se a crueldade
desse Imperador Constâncio e dos hereges monotelistas, que o arrastaram. Depois
ele foi mandado para a Criméia e ali, submetido a trabalhos forçados, morreu
por causa das intempéries, da idade, mas em consequência dos maus tratos. Por isso
a Igreja o considera mártir. Até o fim ele não cedeu e, diante do
interrogatório do imperador e do juiz, ele suportou com altivez e soube dizer
ao juiz as verdades que deveriam ser ditas. É um nobre exemplo de constância e
de fortaleza.
Crueldade e indolência, sintomas de um império que caía
Por outro lado,
vemos o Império Romano que caminhava para seu fim. Haveria ainda alguns séculos
para o termo final do Império Romano do Oriente, mas esse fim vinha sendo
preparado de longe por sinais manifestos de decadência. Esse crime praticado
pelo imperador na presença de todo o povo é um sintoma disso. O imperador manda
expor o Papa num terraço onde ele o pudesse ver e, naturalmente, zombando do
Pontífice sacrilegamente.
Todo o povo também
presenciou a cena e o juiz estava querendo induzi-lo a vaiar o Papa. Mas a
atitude do povo foi esta: ficou quieto e depois foi se dispersando. De dentro
da multidão, apenas umas vinte pessoas — provavelmente pagas — vaiaram o Pontífice.
A vaia não teve a menor repercussão, ninguém acompanhou, e as pessoas se
dispersaram lentamente.
Há uma frase famosa
que diz: “O silêncio dos povos é a lição dos reis.” Quer dizer, os povos não
vaiam, não agridem, mas quando eles não aplaudem, os reis ficam compreendendo
haver uma censura. Essa é uma frase do Ancien Régime, e isso era verdade antes
da Revolução Francesa.
Quer dizer, resta
sempre aos povos um recurso que ninguém tem o poder de lhes tirar: é o de não
aplaudir. Como obrigar o povo a aplaudir? Uma multidão imensa, se não quiser
aplaudir não aplaude, e não se pode matar a multidão por causa disso.
Entretanto, nota-se
de um lado o prurido de independência dos imperadores do Oriente contra o Papa,
o que acabaria desfechando no cisma e, posteriormente, na queda do Império
Romano do Oriente. De outro lado, constata-se também a maldade do povo. À
primeira vista, tem-se uma boa impressão do povo porque se recusou a aplaudir;
era, portanto, menos corrupto do que o imperador. Contudo, não deixava de ser
um povo corrompido também, porque se ele sabia que aquele ancião, sendo o
Vigário de Cristo, não deveria ser tratado assim e merecia todo o respeito, o
que fez esse povo que não se revoltou contra os algozes, não protestou e não
vaiou aquele juiz?
Evidentemente,
dispersando-se, a multidão se condenou porque provou saber que aquilo era mau,
e mostrou que se tinha intrepidez de não aplaudir, entretanto, não possuía
coragem de libertar. Ora, o Papa tinha o direito de ser liberto. Isso mostra o
profundo apodrecimento do povo; era um império que caía de podre.
Rechaçados pela Justiça de Deus
Resultado: durante
séculos essa rivalidade entre Constantinopla e Roma, as duas maiores cidades de
cultura latina daquele tempo, foi aumentando. Quando no século XV os turcos
assediavam Constantinopla, estava ali um personagem que pôde até assistir à
queda da cidade e conseguiu fugir a tempo.
Nas cartas que esse personagem
escreveu, ele pôs a seguinte nota: “O povo de Constantinopla, que era herege,
tinha rompido com a Santa Sé, estava apavorado com aquela entrada feroz dos
turcos, que fizeram uma carnificina, reduziram inúmeros indivíduos a escravos,
entraram em conventos, destroçaram tudo.”
E fez este
comentário: “Se se desse aos constantinopolitanos a opção entre salvar a
cidade, voltando a aderir à Igreja Católica, ou continuar na heresia e serem
destroçados pelos turcos, eles prefeririam a heresia e a morte a se unirem
novamente à Igreja Católica.”
Quer dizer, um ódio
tão cego à verdade que eles só queriam saber de aderir à heresia, e preferiam a
morte com a heresia à vida, à dignidade e à honra. Vemos, por aí, como os
adversários da Igreja podem ser fanáticos, a ponto de gostarem mais daquilo que
representa o seu próprio destroçamento do que a união com o que significa a
verdade integral.
Lembro-me de uma
frase de Donoso Cortés, grande pensador espanhol, que dizia o seguinte: Os
homens gostam de verdades, mas nenhum homem, a não ser pela graça de Deus,
gosta da verdade inteira, da verdade global.
A Doutrina Católica
oferece a verdade global. Esta, os inimigos da Igreja odeiam mais do que tudo,
preferindo qualquer erro à verdade total. Assim eram os monotelistas, como
também os cismáticos de Constantinopla séculos depois, e os modernistas do
tempo de São Pio X. Tudo menos a verdade global. Resultado: serão rechaçados
pela Justiça de Deus.
Plinio Corrêa de
Oliveira – Extraído de conferência de 24/9/1973
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